Não será fácil de explicar, mas ao longo das discussões que envolveram nosso grupo e nosso tema de pesquisa nos debruçamos acerca de classificações que vemos como sendo fulcrais para entender em que medida o Estado pode trazer uma perspectiva contra-hegemônica (à sombra gramsciniana) para constituir o que Boaventura de Souza Santos chamou de cosmopolitismo subalterno.
O projeto político da esquerda, que levou ao cabo as experiências socialistas do século XX tem de ser reformulado ao olhos do autor. Não basta disputar o Poder e chegar ao controle do Estado. Uma nova leitura traz à tona uma perspectiva de luta na qual não enxerga o Estado como único sujeito da transformação social. Se os partidos comunistas do século XX discutiam táticas e estratégias para alcançar o Estado, hoje a esquerda (permeada ou não no poder) deve estabelecer pontes para que o Estado se modifique e possibilite a estimada transformação.
Estabelecemos a priore que o Estado se efetiva diante da sociedade, se legitima e se constitui através de dois espaços: 1. Efetivação Normativa 2. Política Pública Convencional e na nova constituição do Estado também a 3. Política Pública Inovadora.
Os critérios que utilizaremos será se a postura estatal:
a) se dá ou não através de um meio hegemônico - aqui todas as medidas que partem da produção estatal são através de um meio hegemônico.
b) é uma ação hegemônica ou contra-hegemônica - é hegemônica se contribui para a manutenção do Estado enquanto um contrato de classe reproduzindo o status quo; é contra-hegemônico quando se dispõe a posicionar-se em favor da transformação social na direção da eliminação das classes.
c) tensiona ou não o Estado - aqui o elemento na nova configuração do Estado diz respeito à perspectiva de o Estado não reter só para si mesmo a possibilidade de transformação mas comungar com a sociedade - e desta forma disputá-la - o projeto de mudança social. Isto é, o Estado aqui figura como protagonista no processo de síntese dialética trazendo para dentro da norma da prática quotidiana não somente as demandas dos movimentos sociais mais os modos pelos quais os movimentos constroem suas realidades, inclusive aceitando em vários momentos a possibilidade de construções paralelas à ordem positiva estatal.
Sendo assim, o ponto 1. Efetivação Normativa pode representar quatro configurações distintas em que se coloca a primeira em um:
a) meio hegemônico b) uma ação hegemônica c) e não tensiona o Estado <quando, por exemplo, cria-se legislação para que se adeque o comércio e as regras de mercado aos padrões ecológicos em que fosse possível a conformação empresarial e o incentivo mercadológico para isto, pois não há qualquer transformação das estruturas nas quais são pensadas o mercado e o capital, há somente uma aglutinamento de um elemento novo>
a segunda em um:
a) meio hegemônico b) uma ação hegemônica c) e tensiona o Estado < aqui quando a produção normativa não se obstina somente em ser hegemônica conservando as lógicas e as condições atuais de reprodução do sistema, mas, reitera essa hegemonia através do retrocesso reacionário diante da atual realidade, como quando, por exemplo a Câmara dos Vereadores de Piracicaba produz legislação que obrigue que todos os vereadores e membros presentes realizem uma oração cristã baseada na Bíblia antes do início de todos os trabalhos diários, representando aqui um retrocesso nos paradigmas do Estado Laico. Tensiona assim o Estado para uma outra forma que não a liberal-positiva, ainda que essa represente um parecido projeto hegemônico.>
a terceira em um:
a) meio hegemônico b) uma ação contra-hegemônica c) e não tensiona o Estado <neste quando ainda que representativo e rompante de um projeto que se digladia contra a hegemonia vigente buscando novos espaços e percepções dos direitos que não são devidamente efetivados não se produz na forma a inovação para além das construções históricas das conquistas de direitos e da luta por melhorias da qualidade de vida de todos. É assim quando efetivamos, por exemplo, os direitos homoafetivos, não inovamos na forma mas sim no conteúdo normativo.>
a quarta em um:
a) meio hegemônico b) uma ação contra-hegemônica c) e tensiona o Estado < por fim, em matéria de Efetivação Normativa, chegamos ao ponto em que o Estado na produção legislativa se dispõe a construir novas perspectivas de construção social e até de relação estado-sociedade. Nisso reside a inovação, o Estado aqui não só cobra, possibilita, promove, fiscaliza, dá condições para que X ou Y sejam feitos, mas, ele também aliena poder próprio à alguns grupos, procura o diálogo com novas formas de movimentos sociais e ainda dá sedimento para que o novo seja incitado na sociedade e nas diversas organizações. O Estado aqui atua como protagonista no processo de disputa da sociedade, na disputa da hegemonia, nas suas dimensões estruturais e super-estruturais. O Estado aqui se abre para os movimentos sociais e se deixa ser permeabilizado por eles. Como exemplo a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária para dentro do Ministério do Trabalho, que discute a nova perspectiva produtiva e dos meios de produção não-capitalistas para dentro do Estado.>
Com a Efetivação Normativa já explorada partimos agora para nosso ponto 2. Política Pública Convencional em que coloca-se a discussão podendo ser através de:
a) meio hegemônico b) ações hegemônicas c) não tensiona o Estado < na medida em que o Estado dá prosseguimento às Políticas habituais em que o coloca em um patamar de distanciamento da sociedade civil organizada e reitera o projeto liberal-positivista de uma razão que governa e rege a ordem suspensa de atributos culturais, políticos, ideológicos ele realiza através de politicas publicas interventoras estes três aspectos. Tal qual aconteceu na Cracolândia onde o Estado tendo em vista uma realidade reafirmou seu compromisso com a hegemonia sem inovar no meio nem modificar a forma ao produzir um processo de higienização social.>
ou também, através de:
a) meio hegemônico b) ações contra-hegemônicas c) não tensiona o Estado <aqui o Estado se manifesta em favor da legitimação e efetivação de direitos sociais constituídos na luta à margem da lei, pelos movimentos sociais, mas manifesta-a através da incorporação habitual das demandas sociais para a dimensão da política pública. Tal manifestação não deixa em nenhum momento de posicionar o Estado como um ente anômalo e alienígena do processo de produção social e das camadas populares, aqui o Estado ainda se demarca como uma entidade de classe resultante de um pacto com a burguesia e nela referenciado. Ainda que, através de politicas publicas, pintando a história de tese e antítese, de contradição dialética, vá na contramão deste contrato ao promover e incentivar o fortalecimento das camadas populares e de suas lutas. Assim o é quando o Estado promove o Minha Casa, Minha Vida dando condições de moradia digna e fortalecendo a luta pela habitação popular no país. Ou ainda quando alicerceia uma ocupação de sem-teto/terra expropriando a propriedade em favor dos desprovidos.>
Por fim o ponto no qual mais se coloca o debate proposto por Boaventura de Souza Santos na atual conjuntura de forças reside na implementação de 3. Política Pública Inovadora. Estas, finalmente, que recalibram não somente a atuação da esquerda para dentro de um projeto socialista e emancipatório mas sobretudo reorganizam a perspectiva do Estado moderno para o próximo período. Pois agem através de um:
a) meio hegemônico b) ações contra-hegemônicas c) e tensionam o Estado < Em termos classificativos e analíticos em nada se diferencia esta atuação da quarta possibilidade de atuação da Efetivação Normativa supracitada mas não quer dizer que os resultados e os processos sejam pares iguais. Na Efetivação Normativa há uma abertura de diálogo mas também um aprisionamento das possibilidades na medida da normativização positivada e na postura até certo ponto passiva do Estado diante da dinamicidade da realidade.Já na implementação das Políticas Públicas Inovadoras há uma postura pró-ativa por parte do Estado em dialogar, em construir espaços novos na perspectiva na emancipação coletiva. Aqui a politica pública emancipa, não somente por que é objetiva e dialoga assertivamente com a radicalidade do problema, mas, por que ela é construída sob a égide do embate com o novo, do diálogo com os grupos da base e fundamentalmente sob a possibilidade de transformação do Estado, sob o risco que corre o estimado contrato de classe, do qual vicia-se o Estado, quando por meio de políticas públicas realiza-se o jogo e joga-se na trincheira dos que não são signatários desse acordo positivado em prol do status quo. Assim, realiza-se, Política Pública Inovadora quando, por exemplo, o Estado se dispõe a incentivar o uso de uma moeda paralela à oficial e comum a todo o mercado interno, como é o caso das Moedas Sociais, administradas muitas vezes por Bancos de Micro-Crédito, outra inovação da conduta estatal que possibilidade uma nova reorganização de forças externas ao Poder centralizado e também uma nova reorganização de formas no que tange a própria atuação do Estado. Desta forma o Estado é tensionado por si mesmo na sua atuação junto à realidade material e abre caminhos para novas construções. Coloca-se o Estado à disposição das lutas sociais e à disposição de futuros tensionamentos.
A Economia Solidária como pontua o Prof. Paul Singer na obra-base do tema, Introdução à Economia Solidária, tem sido uma forma única pelo qual o trabalho não-capitalista desenvolvido e/ou conservado historicamente, respectivamente por exemplo, na produção social de cooperativas ou de comunidades tradicionais tem apresentado uma organicidade em torno de Redes de Colaborações Solidárias, como cunhou o Prof. Euclides Mance, que podem apresentar não somente uma alternativa ao sistema mas sim um Sistema Alternativo. Diante desse ponto paradoxal coloca-se a inflexão histórica que pode vir a ser o ponto no qual o sistema moderno produtor de mercadorias, até então imaculado e batizado pela vigência da modernidade como coloca Robert Kurz, encontra sua superação histórica na Economia Solidária e sua contribuição para a um projeto de emancipação coletivo da humanidade (pode-se cunhar de socialismo sem medo). É importante salientar que a Economia Solidária (e o projeto de cosmopolitismo subalterno) não deve se posicionar como sendo o outro pólo do capitalismo (como foi o socialismo real no séc. XX) mas sim a sua possibilidade de superação. Não se trata de uma oposição bipolar por que nesta reside o fato da comunhão dos pressupostos materiais-teóricos e consequentemente a limitação e o alcance constitutivos de novos paradigmas. Sendo assim a contra-hegemonia, embora possa parecer uma luta antes de tudo contra o capitalismo, é uma luta antes de tudo para a sua superação e não para reafirmá-lo através da negação. Sem dúvida é uma linha tênue e discreta que separa essas duas distinções, mas, fulcral para entender em que compasso se coloca nossa dimensão histórica-ontológica.
O Direito, quando interessado nesse projeto de emancipação, não pode se contentar em ser a retaguarda da Revolução, em dar respaldo jurídico para o MST ou para que o Cesare Battisti fique no Brasil como refugiado político. O Direito não pode contentar-se com esta postura por que não vai renovar-se, mas vai positivar-se ainda mais, não disputará a sociedade nem produzirá contra-hegemonia. Nessa linha, o direito produz hegemonia na medida em que acha estar fazendo emancipação. Produz direita na medida em que se pensa esquerda.
Mas há outras posturas equivocadas dentro deste possível projeto emancipatório: a do Direito como emancipação apocalíptica. Pachukanis, teórico jurídico do começo do século, acredita na produção de um direito marxista na medida em que este se destrua com a ascensão do projeto revolucionário e de emancipação social. Neste o Direito figura apenas como um candelabro do processo histórico. Aliena-o da consciência e da dependência de classe burguesa mas também não vincula-o com o proletariado ascendente. Deixa-o à deriva e ao relento dos ostracismo teórico e das perspectivas, ainda que utilitaristas, de sua participação junto à sociedade. Aqui, e devemos negar esse projeto jurídico-político, o direito é visto com olhos de descaso e de segundo plano pela esquerda e seu projeto. Não se trata de um recalque corporativista da nossa parte (esquerdistas do direito), mas, sim de um cálculo político inexato e estapafúrdio de um projeto político-revolucionário que definitivamente não logrou a emancipação coletiva até onde se almejava (isto é, falamos da União Soviética). Se o Direito é o elemento em que mais se traduz a linguagem da utilização burguesa da propriedade privada não significa que devemos nos debruçar pouco para a sua viabilidade de transformação, mas, do contrário, é nele que devemos recair nossos olhos dado o seu comprometimento e o seu trânsito para dentro do Estado burguês e da Globalização Hegemônica. Sendo assim também não é nesse Direito que construiremos nossa emancipação.
Por fim, temos também de rejeitar a leitura do Direito enquanto a vanguarda da transformação social. Rejeitá-la, talvez, por motivos mais simples e mais apriorísticos do que os expostos anteriormente. Não se trata, antes de tudo do Direito, mas não deve ser aceitável qualquer condução de transformação em que caiba uma intelligentsia na vanguarda da problematização e condução dos indicativos políticos que não estes sendo construídos diretamente pelos indivíduos que sofrem na materialidade a carência da superação do atual modelo, isto é, os trabalhadores. A vanguarda é sobretudo uma elite para dentro do processo de superação de uma outra elite. Combate-se a direita produzindo direita. Um tom contraditório que finca suas raízes na condução do processo inviabilizando qualquer emancipação. Para além do pressuposto, tem-se também um erro de avaliação. O Direito normativiza e cristaliza os processos politico-sociais, e ainda que inove e traga o inesperado, nunca é novo genuinamente. Pode se tratar do novo no campo das normas, mas, mesmo este resulta de um processo de correlação de forças e emanação do campo da superestrutura ou indiretamente da estrutura convencional que rege a vida em sociedade. Sendo assim o Direito não poderia estar doravante no processo de emancipação socialista como não esteve no projeto de emancipação burguês-iluminista do séc XVIII por conta do seu baixo alcance na materialidade da estrutura econômica e da sua irrisória capacidade de conduzir sozinho o processo político-social em comparação, por exemplo, com a economia.
Rejeitamos as três leituras anteriores de Direito enquanto construtor de um cenário emancipatório por que calcamos nossa perspectiva, como estabelece o autor, em um novo cenário de construção do projeto de transformação da esquerda. O Cosmopolitismo Subalterno nas palavras de Boaventura só será factível na medida em que refizermos o trajeto de atuação. Se a constituição lógico-formal até então deu-se pela linha construtiva "sociedade>estado>poder", abrem-se novos trajetos e caminhos como "estado>poder>sociedade" ou ainda "estado>sociedade>poder" desvendando novas formas de se constituir as lutas históricas e também novas perspectivas de remodelação do Estado. Diante disto, o Direito deixa de ser o aparador de mesa, a elite da classe ou ainda a retaguarda retrógrada, mas, passa a encontrar-se como sujeito do processo de transformação buscando estratagemas e brechas no Estado para fazer deste o punhal da emancipação. O direito passa a contribuir para a organização dos trabalhadores e dos cidadãos de um modo geral com a justeza de um soldado que se apresenta à batalha, com a honestidade e a transparência de ter com o que contribuir e saber como fazê-lo. Nem à frente nem atrás do processo, nem antes nem depois da tempo histórico, mas, concomitantemente com todos os outros o Direito passa a ser sujeito de sua história e partícipe da emancipação humana. Este uso alternativo do Direito, mas também do Estado, é que dá condições para tais elucubrações e para o trilhar deste projeto.
Na primeira estrofe de Os Lusíadas, o épico da vida, do impossível tornando-se real, está na obstinação do novo, do inesperado, mas sobretudo na sua vinculação com uma expectativa pré-estabelecida: "Novo Reino, que tanto sublimaram;". A construção aqui brevemente esboçada diz respeito a este Novo Reino também, um novo reino sim calcado na reorganização diante do que já encontramos, pois, não se trata de parir o novo espontaneamente e deixar que este tome forma orgânica e sistemática por simples harmonia alheia, e supostamente sozinho resistindo às peripécias épicas de ser o novo tal qual o dilema apresentado por Camões, pois isso não acontecerá. Se trata de fazer nascer o novo incitando-o, dando-o forma: casco, proa, vela, e enfim, nau.
Trata-se, como Camões já adiantava, de não só fazer as caravelas e lançá-las ao mar, a esmo, a torto e a direito, mas é preciso sobretudo ter Cais. Cais para que voltem perdidos e indecisos. O projeto de emancipação e de transformação do Estado do qual falamos até então diz respeito a um grande engenho, uma grande empresa, como foram as navegações do século XV, e é preciso bússola para nos nortear, nos orientar; cais para podermos nos resguardar e confiar; e trajeto para termos para onde ir. A associação do Direito com a Economia Solidária e com outras formas não-capitalistas de produção parecem trazer as características necessárias para que se faça Vespúcio, Colombo e Vasco da Gama. Para que se construa novos paradigmas de associação e da relação teoria e prática.
Se temos um mote e um trajeto de viagem este é o de desvendar os espaços pelos quais podemos construir novas rotas, encontrar novos continentes, mas sobretudo mudar o nosso "Velho Mundo". Nossa rota, através da Economia Solidária e da permeabilização do Estado é a de construir efetivamente, com a contribuição do Direito, um projeto contra-hegemônico. E nossa assertiva certamente diz respeito ao fato de navegarmos hoje "por mares nunca de antes navegados,".
Vitor Quarenta - 1º ano - diurno
Jacques Iatchuk - 1º ano - diurno
Jéssica Duquini - 1º ano - noturno
Raul do Carmo - 1º ano - noturno
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