Dando seguimento à análise
do fenômeno do ativismo judicial, o foco desse texto será discutir tal questão
relacionando-a à Ação Direta de Inconstitucionalidade de (ADI) n. 6987, que
busca que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheça o crime
de injúria racial como espécie de racismo, destacando-se e examinando-se os
movimentos sociais a ela ligados e o enorme potencial democrático que ela
apresenta.
A
ADI n. 6987 foi imputada em 2020, pelo partido Cidadania, em uma ação
distribuída ao ministro Nunes Marques. Segundo o partido,
não reconhecer a injúria racial como espécie do crime previsto no artigo 20 da
Lei 7.716/1989 (Lei de Racismo) torna ineficaz o repúdio constitucional ao
racismo, por não considerar imprescritível e inafiançável uma das suas
principais formas de manifestação no mundo contemporâneo. O tema já estava em
julgamento no Plenário através do Habeas Corpus (HC) 15248, em que a defesa
de uma mulher com mais de 70 anos, condenada por ter ofendido uma trabalhadora
com termos racistas, pede a declaração da prescrição da condenação. No caso, o debate acerca da tipificação
criminal da injúria racial na Lei de Racismo se dá devido aos questionamentos
sobre os seus impactos sociais. Uma parte da linha de argumentação dispõe que a
Lei de Racismo enquadraria crimes que atingiriam a coletividade negra como um todo,
enquanto a injúria racial atingiria apenas o indivíduo a quem ela fora
destinada, sem demonstrar uma intenção de desmerecer toda a comunidade negra
brasileira. As implicações desse tipo de pensamento serão discutidas um pouco
mais adiante.
Primeiramente, se mostra importante discutir a
legitimidade de tal discussão ser realizada no Judiciário. Por se tratar de questão
envolvendo uma expansão legislativa, há de pensar, em um primeiro momento, que
a única esfera de poder de fato legítima para que essa discussão seja abordada
é o Legislativo, que trata não somente da criação de leis, mas também apresenta
uma maior representação popular, devido à sua formação democrática. Contudo, é
inegável que, nos últimos anos, existe uma crise de representatividade entre a
nação brasileira e os seus representantes legislativos, nascida, como explica o
sociólogo Antoine Garapon, do desenvolvimento natural da democracia, mas também
da polarização política da nação. O resultado disso, segundo a tese do sociólogo,
é a maior procura por parte dos grupos sociais pelo Judiciário, com seu
potencial racionalizador e universal, a fim de solucionar seus conflitos e de
assegurar seus direitos, em um fenômeno que ele descreve como magistratura do
sujeito. Como exemplos claros disso temos decisões recentes realizadas no
Plenário como a liberalização da interrupção de gravidez no caso de fetos anencefálicos
e a criminalização da homofobia, em que foram realizadas expansões
interpretativas de leis já existentes com a intenção de magistrar os direitos
em conflitos de grupos sociais historicamente oprimidos. Quanto ao
questionamento da representação social no Supremo, apesar dos membros das suas
turmas não serem escolhidos por meio de votações populares, a presença popular
também se mostra presente no Judiciário, à medida que, em casos como esse, que
lidam com questões de direitos fundamentais, a mobilização do Judiciário parte
das lutas sociais. Dessa forma, no caso em questão, como em tantos outros já
anteriormente julgados, seria realizada, com legitimidade, uma expansão de
compreensão dentro do espaço dos possíveis (termo criado pelo sociólogo Pierre
Garapon para designar o material jurídico relevante existente) através da via
legislativa. Basta agora compreender do que se trata tal expansão.
Os questionamentos acerca dos impactos sociais da injúria
racial como forma de racismo legalmente reconhecida são baseados na mesma
construção social degradante que tais crimes costumam reafirmar: o racismo
estrutural, um problema recorrente e historicamente enraizado no imaginário
coletivo brasileiro, por conta dos anos de escravidão. O sociólogo Achille Mbembe,
um dos nomes contemporâneos mais importantes no campo de estudos sobre questões
sociais raciais, explica com enorme profundidade do que consiste o termo
‘’racismo estrutural’’ em sua obra ‘’Crítica a Razão Negra’’. Segundo o autor,
haveria uma diferença, historicamente arquitetada, entre a visão ocidental do
negro e a visão negra do negro. Ambas as visões são influenciadas pelo
preconceito enraizado, porém, aquela é fruto direto deste e da evolução
histórica da dominação ocidental sobre os negros.
Essa
dominação, o autor explica, se estenderia a esferas da vida diferentes,
englobando o corpo, a identidade e até mesmo a construção de narrativa própria
da comunidade negra. Nesse sentido, a visão ocidental enraizada no imaginário
dos brasileiros está associada a essa dominação, tendo se tornado, atualmente,
o principal meio por qual ela age. Ao invés de dominar e prender os corpos dos
negros, prende-se a sua liberdade ao construir a sua imagem a partir de
idealizações pejorativas. Realiza-se um alterocídio do indivíduo negro e de
toda a história da comunidade, como explica o Mbembe, através de uma
enfabulação e desumanização do outro.
O
racismo estrutural permeia a sociedade brasileira, infiltrando-se até mesmo no
campo do Direito. Apesar da igualdade e a liberdade serem direitos
constitucionalmente garantidos, a a sua aplicação material depende e variáveis
interseccionais de desigualdades reais, tais como o racismo. O modo como o
Direito enxerga o racismo reflete as ideias da autora Sara de Araújo acerca do cânone
hegemônico imperialista do conhecimento. Segundo a autora, o modo de conceber e
produzir conhecimentos considerados de valor e legítimos em geral se
configuraria em uma monocultura do saber, pois seriam fortemente influenciados
por valores eurocêntricos, devido ao histórico colonialista atrelados a eles.
Por isso, a vivência negra, por exemplo, e todos os impactos que o racismo
provoca em sua comunidade não seriam de fato abarcados pelo Direito, não em sua
totalidade, o que explica a necessidade de realizar uma expansão do campus jurídico
a fim de começar a abarcar tais experiências.
A
injúria racial, tanto em sua ocorrência empírica, quanto em sua atual
tipificação legal, seria uma das expressões mais recorrentes desse racismo
estrutural e dessa monocultura do saber. Como já explicado, a concepção
pejorativa que movem essas ofensas contra indivíduos negros é construída a
respeito da comunidade negra como um todo, o que torna impossível dizer que a
injúria não ofende a coletividade e apenas sujeitos em particular. O fato da
injúria racial não ser considerado um crime de tamanha proporção quanto os atos
de discriminação elencados na Lei 7.716/1989, digno de ser considerado imprescritível
e inafiançável, demonstra claramente uma desconsideração, intencional ou não,
das vivências negras, ligado à dominação eurocêntrica dos saberes do campo do
Direito, que reproduz precisamente a visão preconceituosa ocidental do negro,
descrita por Achille Mbembe. A mobilização social do Judiciário por parte da
comunidade negra demonstrar, portanto, a luta desse grupo social pela abertura
do campus jurídico às suas histórias e necessidades, no sentido de reafirmar os
ideais democráticos constitucionalmente fundados neste país. Dessa maneira,
mostra-se mais do que necessário que o Direito se expanda a posteriori
para abranger uma interpretação mais realista e democrática dos direitos
fundamentais assegurados a anteriori na Constituição de 1988.
As
consequências sociais e jurídicas da decisão a favor do enquadramento da
injúria racial no rol de crimes da Lei de Racismo de 1989 seriam diversas. Em
um nível estratégico, tal reconhecimento traria uma maior legitimidade e força
jurídica às posteriores lutas do grupo, a fim de continuar combatendo as
desigualdades estruturais que bloqueiam o acesso pleno de seus direitos. Já em
um nível constitutivo, a decisão seria um ataque direto ao racismo estrutural
da população brasileira, e contribuiria não apenas para construir uma sociedade
mais justa e igualitária, ajudando a destruir a visão ocidental do negro e suas
ramificações, como também expandiria as compreensões dos saberes jurídicos,
tornando-se mais diversos e democráticos, plantando uma muda no campo fértil de
uma ecologia de saberes.
Assim,
como conclusão, resta a afirmação de que a decisão a favor de uma nova
tipificação da injúria racial, mais proporcionalmente coerente com seus
impactos sociais graves e sua configuração como uma das principais armas do
racismo estrutural no país, se prova necessário e condizente com os princípios
constitucionais que regem o atual sistema jurídico brasileiro.
Nome: Isabela Maria
Valente Capato R.A:
221221468
1ᵒ ano de Direito –
período matutino
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