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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

ADI n. 6987, racismo estrutural e o potencial de transformação social relacionado ao ativismo social

 

Dando seguimento à análise do fenômeno do ativismo judicial, o foco desse texto será discutir tal questão relacionando-a à Ação Direta de Inconstitucionalidade de (ADI) n. 6987, que busca que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheça o crime de injúria racial como espécie de racismo, destacando-se e examinando-se os movimentos sociais a ela ligados e o enorme potencial democrático que ela apresenta.

            A ADI n. 6987 foi imputada em 2020, pelo partido Cidadania, em uma ação distribuída ao ministro Nunes Marques. Segundo o partido, não reconhecer a injúria racial como espécie do crime previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989 (Lei de Racismo) torna ineficaz o repúdio constitucional ao racismo, por não considerar imprescritível e inafiançável uma das suas principais formas de manifestação no mundo contemporâneo. O tema já estava em julgamento no Plenário através do Habeas Corpus (HC) 15248, em que a defesa de uma mulher com mais de 70 anos, condenada por ter ofendido uma trabalhadora com termos racistas, pede a declaração da prescrição da condenação. No caso, o debate acerca da tipificação criminal da injúria racial na Lei de Racismo se dá devido aos questionamentos sobre os seus impactos sociais. Uma parte da linha de argumentação dispõe que a Lei de Racismo enquadraria crimes que atingiriam a coletividade negra como um todo, enquanto a injúria racial atingiria apenas o indivíduo a quem ela fora destinada, sem demonstrar uma intenção de desmerecer toda a comunidade negra brasileira. As implicações desse tipo de pensamento serão discutidas um pouco mais adiante.

            Primeiramente, se mostra importante discutir a legitimidade de tal discussão ser realizada no Judiciário. Por se tratar de questão envolvendo uma expansão legislativa, há de pensar, em um primeiro momento, que a única esfera de poder de fato legítima para que essa discussão seja abordada é o Legislativo, que trata não somente da criação de leis, mas também apresenta uma maior representação popular, devido à sua formação democrática. Contudo, é inegável que, nos últimos anos, existe uma crise de representatividade entre a nação brasileira e os seus representantes legislativos, nascida, como explica o sociólogo Antoine Garapon, do desenvolvimento natural da democracia, mas também da polarização política da nação. O resultado disso, segundo a tese do sociólogo, é a maior procura por parte dos grupos sociais pelo Judiciário, com seu potencial racionalizador e universal, a fim de solucionar seus conflitos e de assegurar seus direitos, em um fenômeno que ele descreve como magistratura do sujeito. Como exemplos claros disso temos decisões recentes realizadas no Plenário como a liberalização da interrupção de gravidez no caso de fetos anencefálicos e a criminalização da homofobia, em que foram realizadas expansões interpretativas de leis já existentes com a intenção de magistrar os direitos em conflitos de grupos sociais historicamente oprimidos. Quanto ao questionamento da representação social no Supremo, apesar dos membros das suas turmas não serem escolhidos por meio de votações populares, a presença popular também se mostra presente no Judiciário, à medida que, em casos como esse, que lidam com questões de direitos fundamentais, a mobilização do Judiciário parte das lutas sociais. Dessa forma, no caso em questão, como em tantos outros já anteriormente julgados, seria realizada, com legitimidade, uma expansão de compreensão dentro do espaço dos possíveis (termo criado pelo sociólogo Pierre Garapon para designar o material jurídico relevante existente) através da via legislativa. Basta agora compreender do que se trata tal expansão.

            Os questionamentos acerca dos impactos sociais da injúria racial como forma de racismo legalmente reconhecida são baseados na mesma construção social degradante que tais crimes costumam reafirmar: o racismo estrutural, um problema recorrente e historicamente enraizado no imaginário coletivo brasileiro, por conta dos anos de escravidão. O sociólogo Achille Mbembe, um dos nomes contemporâneos mais importantes no campo de estudos sobre questões sociais raciais, explica com enorme profundidade do que consiste o termo ‘’racismo estrutural’’ em sua obra ‘’Crítica a Razão Negra’’. Segundo o autor, haveria uma diferença, historicamente arquitetada, entre a visão ocidental do negro e a visão negra do negro. Ambas as visões são influenciadas pelo preconceito enraizado, porém, aquela é fruto direto deste e da evolução histórica da dominação ocidental sobre os negros.

Essa dominação, o autor explica, se estenderia a esferas da vida diferentes, englobando o corpo, a identidade e até mesmo a construção de narrativa própria da comunidade negra. Nesse sentido, a visão ocidental enraizada no imaginário dos brasileiros está associada a essa dominação, tendo se tornado, atualmente, o principal meio por qual ela age. Ao invés de dominar e prender os corpos dos negros, prende-se a sua liberdade ao construir a sua imagem a partir de idealizações pejorativas. Realiza-se um alterocídio do indivíduo negro e de toda a história da comunidade, como explica o Mbembe, através de uma enfabulação e desumanização do outro.

O racismo estrutural permeia a sociedade brasileira, infiltrando-se até mesmo no campo do Direito. Apesar da igualdade e a liberdade serem direitos constitucionalmente garantidos, a a sua aplicação material depende e variáveis interseccionais de desigualdades reais, tais como o racismo. O modo como o Direito enxerga o racismo reflete as ideias da autora Sara de Araújo acerca do cânone hegemônico imperialista do conhecimento. Segundo a autora, o modo de conceber e produzir conhecimentos considerados de valor e legítimos em geral se configuraria em uma monocultura do saber, pois seriam fortemente influenciados por valores eurocêntricos, devido ao histórico colonialista atrelados a eles. Por isso, a vivência negra, por exemplo, e todos os impactos que o racismo provoca em sua comunidade não seriam de fato abarcados pelo Direito, não em sua totalidade, o que explica a necessidade de realizar uma expansão do campus jurídico a fim de começar a abarcar tais experiências.

A injúria racial, tanto em sua ocorrência empírica, quanto em sua atual tipificação legal, seria uma das expressões mais recorrentes desse racismo estrutural e dessa monocultura do saber. Como já explicado, a concepção pejorativa que movem essas ofensas contra indivíduos negros é construída a respeito da comunidade negra como um todo, o que torna impossível dizer que a injúria não ofende a coletividade e apenas sujeitos em particular. O fato da injúria racial não ser considerado um crime de tamanha proporção quanto os atos de discriminação elencados na Lei 7.716/1989, digno de ser considerado imprescritível e inafiançável, demonstra claramente uma desconsideração, intencional ou não, das vivências negras, ligado à dominação eurocêntrica dos saberes do campo do Direito, que reproduz precisamente a visão preconceituosa ocidental do negro, descrita por Achille Mbembe. A mobilização social do Judiciário por parte da comunidade negra demonstrar, portanto, a luta desse grupo social pela abertura do campus jurídico às suas histórias e necessidades, no sentido de reafirmar os ideais democráticos constitucionalmente fundados neste país. Dessa maneira, mostra-se mais do que necessário que o Direito se expanda a posteriori para abranger uma interpretação mais realista e democrática dos direitos fundamentais assegurados a anteriori na Constituição de 1988.

As consequências sociais e jurídicas da decisão a favor do enquadramento da injúria racial no rol de crimes da Lei de Racismo de 1989 seriam diversas. Em um nível estratégico, tal reconhecimento traria uma maior legitimidade e força jurídica às posteriores lutas do grupo, a fim de continuar combatendo as desigualdades estruturais que bloqueiam o acesso pleno de seus direitos. Já em um nível constitutivo, a decisão seria um ataque direto ao racismo estrutural da população brasileira, e contribuiria não apenas para construir uma sociedade mais justa e igualitária, ajudando a destruir a visão ocidental do negro e suas ramificações, como também expandiria as compreensões dos saberes jurídicos, tornando-se mais diversos e democráticos, plantando uma muda no campo fértil de uma ecologia de saberes.

Assim, como conclusão, resta a afirmação de que a decisão a favor de uma nova tipificação da injúria racial, mais proporcionalmente coerente com seus impactos sociais graves e sua configuração como uma das principais armas do racismo estrutural no país, se prova necessário e condizente com os princípios constitucionais que regem o atual sistema jurídico brasileiro.

 

Nome: Isabela Maria Valente Capato                                                          R.A: 221221468

1ᵒ ano de Direito – período matutino

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