O pensador Pierre Bourdieu, em sua obra “O Poder Simbólico”, demonstra como os habitus (tendências culturais que influenciam o comportamento de indivíduos, de acordo com seus meios) presentes em determinados campos sociais são expressões dos valores dominantes da sociedade. É sob essa perspectiva que pode-se pensar na produção intelectual e nas relações sociais de determinadas instituições- como o universo jurídico- a partir de uma percepção que envolva os valores de um sistema capitalista e de uma lógica ocidental como influentes no âmbito do Direito. Nesse sentido, ao discorrer em “Crítica da Razão Negra” acerca da escravidão e do racismo como formas de racialização da servidão, intrumentalizados com fins de ampliar a acumulação primitiva, assim como de engendendrar os Estados liberais contemporâneos, Achille Mbembe demonstra como a produção do Negro e das noções de raça são valores dominantes, determinantes, portanto, para os habitus do campo jurídico. A partir do exposto, e com base na palestra ministrada pelo professor Dr. Jonas Rafael dos Santos acerca da questão da raça em Mbembe, é possível refletir acerca da relevância dessa categoria social para se analisar o Direito.
De acordo com Mbembe, o racismo sofreu mutações durante o tempo, sendo expresso pela implementação do tráfico negreiro por países europeus; identificado nas altas taxas de migração dadas pelo “terror ao Outro” que se impôs nas fronteiras dos países e também na expansão imperialista do poder estadunidense. O professor Jonas ainda acrescentou em sua fala: o racismo não foi somente inventado, como legalizado e institucionalizado. A partir do século XVII construiu-se um longo trabalho legislativo que fortaleceu as bases da desigualdade racial, expresso pela concepção de que pessoas negras não eram como todas (eram essencialmente diferentes, produzidas como o Outro, o pré-humano, uma existência objetável). Assim, nota-se a produção da incapacidade jurídica do Negro, que passa a ser desprovido de direitos e da assistência dos tribunais em conflitos sociais. Nesse sentido, é possível perceber que o Direito foi também uma instituição responsável pela construção da noção de raça. Ao reafirmar as noções também vindas de outros campos (como a política e a economia) de que a pessoa negra é vista como não humana e a África é concebida como não lugar, o âmbito jurídico torna-se um instrumento de fundamentação para o Alterocídio (processo de genocídio, marginalização e abafamento da existência preta). Mbembe afirma: “produzir o negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração” (p. 40, 2014) e, portanto, entende-se que o Direito, composto por habitus de uma sociedade capitalista, também não se esquiva da instrumentalização do racismo, a fim de concretizar modelos específicos de servidão.
Ao observar o histórico jurídico brasileiro e internacional, há uma série de casos de uso e produção de normas como fortalecimento do racismo. Como exemplo, nota-se a presença de leis que institucionalizaram a escravidão na Constituição Imperial brasileira, a qual, em seu artigo 6º, define a cidadania brasileira como pertencente às pessoas nascidas no Brasil, quer sejam “ingênuos ou libertos”. A produção legal, com sua forte influência liberal, não definiu de maneira explícita a existência da escravidão, mas, ao afirmar que existiam indivíduos libertos no contexto observado, presume-se a existência de pessoas escravizadas, as quais, inclusive, foram excluídas da cidadania (CAMPELLO, 2013). Na atualidade, também é perceptível a não neutralidade no Direito, especificamente quanto a questões raciais, na criminalização de drogas e o consequente combate ao tráfico dessas, denominado também como guerra às drogas, acima de tudo em espaços marginalizados e majoritariamente ocupados por pessoas pretas. Nathália Oliveira, da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, diz “Em um país racista como o Brasil, em que o cano do revólver é apontado só para as periferias, criou-se uma justificativa e um imaginário de que o tráfico de drogas acontece apenas nas favelas, o que não é verdade. Já está comprovado que o tráfico é uma indústria transnacional da ilegalidade” (PEDRINA, 2021). Pensar no Direito como uma ferramenta legal que justifica a perseguição política de corpos negros favelados é entender a importância da raça para o campo jurídico.
Ademais, Boaventura de Souza Santos, em “Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada”, obra na qual analisou as condições na favela de Jacarezinho, acrescenta mais um exemplo da questão racial nesse contexto. Ao relatar como o serviço de advocacia não eram utilizado pela comunidade, haja vista que suas ocupações não são consideradas legais e resolver conflitos internos da população poderia colocar suas habitações em risco, Boaventura demonstra como a produção oficial do Direito insere pessoas pretas e periféricas em uma condição marginal de “existência ilegal”. Portanto, notar a produção social do Negro como a existência pré-humana e como Outro permite a percepção do uso do Direito para tal fim, quando a negritude passa a ser percebida como coletividade de existência não oficial, marginalizada, ilegal. É nesse teor que podem ser analisadas as medidas de bloqueio fronteiriço e antimigração nos países europeus e nos Estados Unidos, acima de tudo em relação a povos não-brancos, que já foram colonizados e que sofrem do aqui mencionado “terror ao Outro” em suas nações. Leis e tratados internacionais que visam conter o trânsito nos espaços hegemônicos e restringí-lo a pessoas europeias e estadunidenses tornam a existência de povos árabes, africanos e latinos também ilegal, a qual se submete a uma realidade abafada, às margens, que se esquiva do universo jurídico.
Não menos importante, faz-se essencial compreender que a noção de um Direito neutro e isento de raça é, nos termos de Bourdieu, uma expressão da sua racionalização e busca por construções de uma neutralidade, com excertos e ideias que se propõe impessoais. Tal condição, que produz o Negro como o Outro e reafirma em suas proposições o Alterocído, é uma marca do que Mbembe chama de efabulação dada pelo Ocidente e pela Europa, que busca construir-se como um espaço de valores universais: morais, éticos, oficiais, neutros, legais. É sob esse espectro que pode-se notar como a ideia de um risco de politização do judiciário (na tradição do legalismo) e os discursos que buscam igualdade formal e ignoram o direito à diferença, quando expresso na criminalização do racismo ou no fomento de políticas afirmativas como as cotas raciais, é uma criação jurídica também dotada de racialidade, pois expõe os valores sustentados pela branquitude. Pensar em um Direito dotado de raça e majoritariamente racista é notar a necessidade de uma recriação de sua finalidade, a qual promova igualdades raciais por meio de sua mobilização, fundada por agentes sociais não brancos. Perceber o Direito dessa forma é compreendê-lo a partir de uma ótica que se insere e relaciona com a sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. [Cap. VIII: "A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico", p. 209-254]
CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A escravidão no império do Brasil: perspectivas jurídicas. 2013. Disponível em: <https://www.sinprofaz.org.br/artigos/a-escravidao-no-imperio-do-brasil-perspectivas-juridicas/#:~:text=A%20escravid%C3%A3o%2C%20muitas%20vezes%2C%20%C3%A9,13%20de%20maio%20de%201888>. Acesso em: 13 Dez. 2021.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. [Cap. 1: “A questão da raça”, p. 25-74]
PEDRINA, Bianca. Qual o impacto da Guerra às Drogas nas periferias e no aprofundamento do racismo? Nós, mulheres da periferia. Notícia. 24 Jun. 2021. Disponível em: <https://nosmulheresdaperiferia.com.br/qual-o-impacto-da-guerra-as-drogas-nas-periferias-e-no-aprofundamento-do-racismo/>. Acesso em: 13 Dez. 2021.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.
-Letícia Magalhães, Noturno.
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