“Somos a
memória desse mundo [...]. Sem nós, os homens seriam pouco mais que cães, não
lembram nada além da última refeição e nem veem nada além da próxima. Quando
você sai eles uivam como se você não fosse voltar.”. Guardando as devidas
proporções e relativizações que fazem com que o medievo fantasioso e
significativamente religioso da série Game of Thrones destoe da realidade,
pode-se deferir que as palavras proferidas pelo Arquimeistre - crítica à indiferença pela cientificidade que acomete os Reinos - no início desse
excerto, apontam a importância dos estudos e de um protótipo de ciência esquecida e deixada em segundo plano dentro
do núcleo da história a qual desenrola-se em um paralelo sútil ao cenário
contemporâneo.
Em
Westeros, um dos quatro continentes em que se passa a série, as pessoas que se
dedicam à ciência, ou seja, os ‘meistres’, os ‘arquimeistres’ e os seus aprendizes,
delegam seus tempos e suas paixões a fim de se dedicarem aos estudos de diversas
áreas, principalmente das “ciências naturais”, em um lugar específico chamado
Cidadela, reduto de produção de conhecimento apartado das mundanidades buscando
empreender, a partir de evidências, experimentações e relatos históricos a
sistematização de todo o conhecimento racional produzido até então. Caracteristicamente
contrários aos encantamentos míticos que circundam o cerne da série, a Cidadela
exporta para além dos Sete Reinos do continente seus meistres, os quais, por sua
vez, acabam convivendo e suprimindo, na medida do possível, a ação da religião pelo
uso da cientificidade, demonstrando claramente, desde o início, essa como sendo
uma forma de disseminar uma nova ordem a ser desenvolvida com uma função universal e dominante.
Até aí, tendo
em vista o caráter epistemológico da Sociologia imbuída pelos estudos de Francis
Bacon e René Descartes, vê-se uma proximidade em relação ao caminho percorrido
pela ciência até ela começar a encarar os campos antes tomados pela
superstição, pelo mágico e pela alquimia com uma das histórias que a série
pretende retratar. O “labor da mente” preconizado por Bacon em “Novum Organum”
é a sustentação do caráter dominante da ciência, buscando a universalidade e a
neutralidade e caracterizando a ciência de intervenção que visa desfigurar os
ídolos prejudicialmente arraigados em inúmeras sociedades. No entanto, a ponte
principal que a série de TV Game of Thrones faz com a realidade no que diz
respeito ao seu núcleo científico é o desaparecimento cada vez maior, entre as
temporadas, da figura, do comprometimento, da credibilidade e dos ensinamentos
dos ‘meistres’, isto é, da racionalidade científica, a medida em que a implosão
do reino acontece numa disputa cega pelo poder que leva diversos governantes a
proclamarem seus respectivos direitos ao trono. Nesse momento, assiste-se a uma
proliferação de tendências místicas que desenrolam na série um papel central na
vida e nas ações tomadas pelos protagonistas, profecias, religiões e magias são
timoneiras de conduta que acabam, muitas vezes, por onerar populações e
bonificar os grandes governantes em seus anseios pela conquista do trono.
Por sua vez, o contexto brasileiro atual colapsado, principalmente, a partir dos
acontecimentos seletivamente orquestrados de 2013, o resultado das eleições de
2014 e o impeachment de 2016, possibilitou a deficiência em se alastrar
medidas racionalmente empregadas no campo político dando abertura ao surgimento
de uma nova classe que distoa das até então classes dominantes, pois esta busca
uma dominação integral do tecido social através de mecanismos de persuasão
constantes, principalmente no âmbito sociopolítico. Por isso, assim como na
arte televisiva, a partir de momentos de instabilidade e efervescência, a opção
por funcionalizar a promoção dos ídolos é mais aceitável. Desconsidera-se a
verdade e a racionalidade para que se alcance, de maneira emocional, ponderações
políticas. Tem-se, hodiernamente, um Congresso em que lideranças e ideias políticos
pautadas em vertentes religiosas conservadoras tomam frente e ganham corpo,
impedindo o andamento de medidas progressistas que auxiliariam uma sociedade
enlameada por aspirações personalistas, uma sociedade de cães que ladram sem
rumo esperando apenas as próximas refeições, ou seja, a satisfação efêmera e
egoísta necessária para uma existência sem questionamentos e indagações.
Leonardo Henrique de Oliveira Castigioni
1º Ano Direito - Noturno
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