De acordo com conceitos criados pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, existem diversos campos sociais que compõem o espaço social, cada qual com os próprios valores, podendo ser contrários, ou não, em relação aos demais campos. Um desses campos é aquele correspondente à sigla LGBTQIA+, acopladora das orientações sexuais e identidade de gênero que fogem da heteronormatividade.
A supramencionada sigla foi criada em tempos contemporâneos, diante de muita luta, a fim de gerar maior visibilidade àqueles que, inseridos em uma sociedade que repudia, tácita ou explicitamente, a diversidade sexual e a de gênero, sofrem preconceito por não se encaixarem no que é considerado normativo no tecido social. A respeito desse preconceito, é importante ressaltar que ele é fruto da violência simbólica, uma vez que determinados valores morais e culturais do campo dominante [sociedade heteronormativa] se sobrepõem em relação ao campo dominado [LGBTQIA+].
Sendo assim, a luta do grupo LGBTQIA+ ainda é incessante. Esse campo social está, a todo momento, em busca de mais direitos. Uma dessas reivindicações é acerca do reconhecimento da união homoafetiva como instituto jurídico, assim como a união heteronormativa (entre homem e mulher) já o é, seja no âmbito do poder simbólico, seja no âmbito político.
A omissão acerca da união homoafetiva equiparada com a união heteroafetiva nos ordenamentos brasileiros fez com que os tribunais assumissem, mediante movimentação popular, uma função que não é propriamente sua: tutelar a demanda dos sujeitos, algo que é denominado como “magistratura do sujeito”, sendo este conceituado pelo jurista Antoine Garapon. Assim, a questão supracitada é atendida pelo STF como ADI n° 4.277.
A decisão dos ministros foi unânime em favor do reconhecimento da união homoafetiva como instituto jurídico. Contudo, é importante pontuar que a omissão e a negligência por parte do campo político-legislativo são criticados à luz de Garapon, levando em consideração o conceito de “magistratura do sujeito” já introduzido.
Ademais, é válido ressaltar que, no relatório da ADI, realizado pelo ministro Ayres Britto, é abordado os princípios que seriam quebrados caso o pedido fosse considerado improcedente. Em primeiro lugar, o princípio da igualdade, o qual impede que seja conferido um tratamento diferenciado a situações e a pessoas substancialmente iguais. Em segundo lugar, o princípio da liberdade, manifestação autônoma “de orientar-se sexualmente e em todos os desdobramentos decorrentes de tal orientação”. Em terceiro lugar, o princípio da dignidade da pessoa humana: os projetos de vida, individual ou coletivo, quando razoáveis, devem ser respeitados, considerados e reconhecidos. Em quarto lugar, o princípio da segurança jurídica: “a atual incerteza quanto ao reconhecimento da união homoafetiva e suas consequências jurídicas acarreta insegurança jurídica tanto para os partícipes da relação homoafetiva, quanto para a própria sociedade”. Em quinto lugar, o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade: restringir pessoas de mesma hierarquia configura-se mero preconceito ou autoritarismo moral.
Em seu voto, o ministro Celso de Mello retoma esses princípios, além de sustentar que essa divisão dicotômica de união homem/mulher é fundada em preconceito e “que não mais resiste ao espírito do tempo”. Essa sustentação se comunica com uma das características que a ciência do Direito deve evitar, apontada por Bourdieu: instrumentalização, ou seja, a ideia de que o direito deve ser protagonizado somente em prol do campo social dominante. Isso porque, na verdade, o Direito deve acompanhar o avanço social.
Sob esse sentido, nota-se que muito do aspecto homofóbico se esvaiu, em comparação a tempos anteriores. Outrossim, é válido ressaltar que o ministro sustenta que deve-se estimular “a união de toda a sociedade em torno de um objetivo comum”, assim congregando os valores de igualdade, tolerância e liberdade, os quais representam fundamentos de uma sociedade genuinamente democrática.
Além da questão de não ser reconhecido a união homoafetiva, foca-se no conflito entre o art. 226 CF/1988 e o art. 1.723 CC/2002. O primeiro diploma legal, por um lado, estabelece a família como base estatal, tendo o Estado como dever protegê-la. O segundo, por outro lado, reconhece, literalmente, união estável o relacionamento heteroafetivo como entidade familiar. Contudo, considerando a hierarquia normativa, esse conflito pode ser resolvido levando em consideração que a Constituição oferece validade aos ordenamentos que estão abaixo dela. Assim, o Código Civil deve ser interpretado à luz da Constituição. Quanto a respeito da própria Constituição, esta deve ser interpretada levando em consideração que, em primeiro lugar, a Lei Maior não interdita a relação homoafetiva e, em segundo lugar, os direitos fundamentais consagrados em seu texto normativo, além dos princípios supramencionados, ressaltados também no voto do ministro Celso de Mello.
Ainda nessa linha de raciocínio, é importante salientar que houve, sim, um certo aspecto antecipação na decisão expressa do julgado, uma vez que os preceitos fundamentais da igualdade, de segurança jurídica, da liberdade e da dignidade da pessoa humana, tornam inaceitável qualquer procedimento que fomente a intolerância, a discriminação e a desigualdade em razão da orientação sexual.
Beatriz Naomi Horikawa Chaves
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