Para Antoine Garapon, a Justiça assumiu feição maior nos últimos tempos, pela sua demanda inédita. Isso tanto se traduz por meio da quantidade, com mais casos no Judiciário, quanto por meio da qualidade, um conteúdo não antes submetido ao Judiciário, agora, é submetido. O autor, então, propõe razões para tal fenômeno e explica-o. De acordo com Garapon, no mundo contemporâneo, a autoridade tradicional se dissipou, com a fórmula de que os homens são iguais e com a cristalização do individualismo, de modo que uma nova autoridade teve que ser “inventada”. Esta nova autoridade foi atribuída ao magistrado. Ele afirma: “o preço a ser pago pela liberdade é o maior controle do juiz, a interiorização do Direito e a tutelarização de alguns sujeitos”. Ademais, a partir do afastamento entre as pessoas, que desconfiam mais umas das outras, e da inabilidade dos sujeitos determinarem a sua situação, inclusive através da Política, a Justiça é acionada com maior frequência, para solucionar os conflitos. É a isso que Garapon alude: “através da Justiça, esse dogma democrático (a autonomia dos cidadãos) entra em contradição com a fragilidade do indivíduo de carne e osso”. Um efeito é a fixação das normas no imaginário das pessoas, a fim de compensar a falta de padrões externos de conduta, o que o autor chama de interiorização do Direito. Também os desamparados são tutelados pelo Judiciário.
Para Pierre Bourdieu, o Direito é disputa. Os agentes, ao tomar certa interpretação do texto jurídico, apropriam-se de força simbólica. Uma vez que este acolhimento da lei é feito e racionalizado, isto é, revestido da lógica do Direito, torna-se um ponto em meio ao espaço dos possíveis. As diferentes visões, dentro do espaço dos possíveis, batalham entre si para o que há de ser a decisão definitiva dos operadores e das instituições do Judiciário. Dessa maneira, o Direito não se isola das lutas sociais, das relações de força e de poder que existem na sociedade, mas pertence à realidade conflituosa.
É útil, então, ir para o caso concreto, com a intenção de analisá-lo, mas também de colocá-lo sob as duas teorias apresentadas. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, proposta ao STF, pede que as uniões homoafetivas sejam reconhecidas enquanto uniões estáveis, de forma que o Art. 1.723 do Código Civil seja interpretado conforme a Constituição Federal. Primeiramente, o que não é proibido expressamente na Constituição é permitido. O §3º do Art. 226 admite a união estável entre o homem e a mulher, no entanto, não afirma que é a única possível. Como diz o advogado Paulo Iotti, no julgamento do STF, “dizer que é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher é diferente de dizer que ela é reconhecida apenas entre o homem e a mulher – o ‘apenas’ não está escrito, Excelências, e como não está escrito este apenas, não há limite semântico no texto”. Isso faz com que possa plenamente ser feita a interpretação extensiva do Artigo ou a analogia para o reconhecimento da união estável homoafetiva. Assim, pode-se pensar no conceito de união estável, que, segundo o mesmo Paulo Iotti, corresponde ao “amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura”. O Barroso, por sua vez, afirmou como pressupostos da união estável “o afeto e o projeto de vida em comum”. Negar tais definições e situações às relações homoafetivas seria também negar essencialmente o princípio da igualdade, uma vez que colocaria o afeto entre pessoas do mesmo gênero como inferior ao afeto heterossexual, por não receber o mesmo tratamento do Estado, tampouco ter acesso aos mesmos direitos. A CF/1988 assume que todos são iguais, sem distinção de qualquer natureza no Art. 5º, e proíbe quaisquer formas de discriminação no inciso IV do Art. 3º. Também há o princípio da liberdade, segundo o qual ninguém pode ser impedido de fazer o que a lei não interdita, e de viver conforme os seus desejos e de ser quem se é. O princípio da dignidade da pessoa humana, ademais, enuncia que ninguém deve ser instrumentalizado para cumprir com as intenções de outro, contudo, a pessoa humana deve ser um fim em si mesmo e titular da garantia de existir com segurança, liberdade e felicidade, sem ser desrespeitado ou desprezado. A CF/1988 assegura a dignidade no inciso III do Art. 1º. Portanto, não se pode impedir que pessoas do mesmo gênero sejam reconhecidas como família, de acordo com as mesmas regras da união estável heterossexual e com as mesmas consequências. Como disse o Barroso, “a vida boa é feita dos nossos afetos, a vida boa é feita dos prazeres legítimos, a vida boa é feita pelo direito de procurar a própria felicidade”. Não assegurar isso ao cidadão que não seja heterossexual, mas que seja LGBTQIA+, seria a falência última do Estado Democrático e dos princípios basilares da Constituição de 1988.
Cabe, com isso, assumir a discussão de Garapon: a Justiça ingressa no campo da Política, faz da sociedade jurídica? O sociólogo diz, em sua obra, “a Justiça realiza a posteriori o que o direito positivo concebia a priori. O amanhã torna-se impensável; o futuro, indomável. O direito do Juiz não pode ser outro senão um direito para o amanhã”. De certa forma, a resposta é sim, o que não quer dizer que a iniciativa do Supremo seja negativa, inconstitucional ou indesejável. A democracia não é o governo da maioria, não consiste apenas de deliberações quaisquer dos parlamentares eleitos. Na realidade, trata-se da proteção categórica dos direitos fundamentais, os quais devem operar como escudo protetivo das minorias e dos subalternizados, sendo que o Judiciário é o incumbente da defesa dos princípios da Constituição e, por conseguinte, protetor dos direitos de todos. Desse modo, é ilógico, que, em virtude do Congresso não ter decidido sobre os direitos LGBTQIA+, a Justiça fique impedida de agir em tal matéria; pois seria permitir que direitos fundamentais dessa população continuem a ser violados e se escusar da função atribuída pela CF/1988, de salvaguardar os Direitos Humanos. Tampouco poderia o Congresso legislar em desacordo com a CF/1988 e ferir direitos de minorias. Também é importante apontar que os enunciados normativos não são aplicados por mera subsunção da situação à lei, isso é o Direito do passado, na atualidade, o juiz é reconhecido como intérprete altivo, o qual faz uso de procedimentos do Direito, da proporcionalidade, de correntes interpretativas como a sistemática-teleológica, da razão crítica, para compreender as cláusulas da Constituição em relação com o mundo social e, assim, atribuir sentido ao texto. O Supremo é encarregado de avaliar omissões ou atitudes inadequadas do Poder Público, a constitucionalidade de normas ordinárias e executar valores da CF/1988, estejam estes explícitos na Carta Magna ou não, e de maneira independente aos dizeres do legislador. Como constata o Ministro Barroso, a Política e o Direito não são separados de modo absoluto, somente relativo, e estão destinados a se relacionar, contudo, o que diferencia o ativismo judicial da judicialização da Política é a observância do Judiciário aos limites intransponíveis de sua função e aos procedimentos do Direito, à transparência, ao texto da Constituição e à argumentação cautelosa. Barroso diz: “o Direito e a Política, se possível com maiúscula – são os dois pólos do eixo em torno do qual o constitucionalismo democrático executa seu movimento de rotação. Dependendo do ponto de observação de cada um, às vezes será noite, às vezes será dia”. Na ADI 4.277, pelas razões já citadas, não há ativismo judicial. Paulo Iotti defende: “direitos fundamentais não são passíveis de deliberação por voluntarismos majoritários” e “interpretar a Constituição não é ativismo judicial, tendo o STF meramente identificado direitos já existentes/decorrentes da própria Constituição”.
Para falar de Bourdieu, das disputas existentes no campo dos possíveis, é necessário ir um pouco mais a fundo no que diz respeito às violações aos direitos e agressões sofridas pela comunidade LGBTQIA+. João Silvério Trevisan, em seu livro Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade, menciona um conto de Aguinaldo Silva, em que um homem gay visita o Cine Íris - segundo Trevisan “paraíso popular da pegação guei carioca” - para encontrar certa frase escrita nas paredes do banheiro local. Trevisan diz que o personagem “tateia na escuridão do cinema” e passa pelos homens comprimidos nos cantos “em agitado intercâmbio erótico”, apenas para conferir a seguinte frase na parede de uma privada: “o Cine Íris também é Brasil”. À isso Trevisan afirma “independentemente da conotação que se dê ao fato ou do que pensam os mais conservadores, a existência do Cine Íris (e territórios correlatos) é parte da vida brasileira. Ao realizar a pesquisa e escrever este livro, minha intenção foi exatamente esta: ajudar a recompor um território tantas vezes camuflado (quando não apagado) da vida e da cultura brasileiras”. A utilidade do exposto por Trevisan em seu texto é jogar luz sobre o movimento, as lutas, as violações e as conquistas LGBTQIA+ no Brasil, tanto no passado quanto no presente, com histórias e personagens apagados amiúde da memória coletiva e da História. Jamais se deve esquecer, ao debater tópicos como esse, que discute-se a vida de fato de pessoas, suas batalhas constantes, como são atingidas por uma realidade predominantemente contrária a elas e como movimentos de longa data agiram para que a situação fosse outra; razão pela qual se deve evidenciar as vivências LGBTQIA+, suas reações e sentimentos, seu cotidiano e sua perspectiva, seu presente e seu passado, sempre se atentando ao lugar de fala. Dessa forma, o campo dos possíveis contém um conflito antigo, de resistência, altivez e difíceis lutas daqueles que divergem dos padrões heteronormativos, e como aos poucos a visão da sociedade sobre a existência LGBTQIA+ mudou, contra os grupos homofóbicos que, por muito tempo, oprimiram e silenciaram. No STF, estes perderam, entretanto, o mundo concreto não é tão simples, e a exclusão, a discriminação e a violência não estão findas pela decisão tomada na ADI 4.277, ainda que represente significativa conquista.
Judith Butler, em Problemas de gênero, constata que há um imperativo cultural, uma coerção do campo hegemônico para que o indivíduo siga normas de comportamento lhe atribuídas. Assim, tem-se a intimidação daqueles cuja identidade de gênero ou sexualidade distingue do pretendido pelo contexto social. A partir disso, Butler aponta a “heterossexualidade compulsória” imposta pelo discurso hegemônico e tenta abrir caminho para a “construção variável da identidade”. Cabe olhar para a ADI 4.277 e compreendê-la em meio a uma sociabilidade convulsiva, de agressão e sub-representatividade, de discursos predominantes heteronormativos, como também de batalhas e lentas vitórias. Por fim, a trincheira dos Direitos Humanos envolve altercações dentro do Direito e também fora dele, pela mudança sistemática dos imperativos culturais e da composição dos espaços de representação e de poder. Para ilustrar o que foi e o que será, é interessante retomar o momento da CPI da Pandemia em que o senador Fabiano Contarato recebe ofensas homofóbicas de um depoente. Contarato, casado com um homem e pai de dois filhos, relembra a ADO 26 do STF e afirma: “a sua família não é melhor do que a minha”. Essa é a conquista e essa é a luta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário