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domingo, 22 de abril de 2018

Materialismo dialético revisitado: a práxis estética e a transformação social

A acentuação especulativa às formas específicas de desenvolvimento histórico propôs, na medida em que as influências soviéticas alavancavam-se nas produções culturais ocidentais, um embate teórico e produtivo na atribuição específica da arte em seu estatuto ideológico. O elo funcional entre o realismo social e o expressionismo abstrato, no entanto, construía-se nos moldes da interpretação materialista dialética, a ação era, porém, concebida de modo distinto. Não obstante, enquanto essas produções manifestavam-se crescentemente ao enraizamento das premissas marxistas; haveria um posicionamento distante entre a angústia subjetivada de Jackson Pollock e as retratações do miséria e morticínio de Boris Taslitzky, que partia, entretanto, de uma mesma realização determinada. O núcleo básico entre as obras produzidas implicava necessariamente na interligação de valores sociais sobre a arte, estes, todavia, eram refletidos e necessariamente defendidos por críticos quanto ao seu caráter divergente e transformador.

A arte, da mesma forma que a ciência é posicionada como objeto de reflexão por compreender em si parte da elaboração sintética da história, apresenta sua funcionalidade essencial em imputar a transformação estrutural. Marx e Engels, conquanto, buscaram enfatizar de forma abrangente a ideologia e sua qualidade consolidadora recorrida pelas classes dominantes. Entretanto, é válido afirmar que as obras pioneiras da estética marxista surgiram ainda em contato pessoal com Engels, vez que este trocava correspondências com Franz Mehring, este último teórico político e literário que mediava em suas críticas inspirações marxistas. A rigorosidade determinista entre a superestrutura e sua força espiritual dominante, a qual já propusera Marx, foi importada de forma significativa para a teoria artística pela primeira vez por Georgi Plekhanov, que afirmava a arte como um produto de intermédio entre a economia, justificando sua conformação pela mediação da divisão de classes e seus aspectos de dominação.



A solidificação da cultura soviética acompanhou-se da necessidade de utilização prática da arte em suas convenções formais, era sobretudo necessária uma mobilização e um posicionamento definitivo da arte e seu papel transformador. A ambivalência questionada intervia-se quanto ao parâmetro primordial do materialismo dialético: o artista, de mesmo modo o qual é colocado o papel do ser em geral, como produto de sua estrutura que independe da sua vontade. Em 1934, Andrei Jdanov, correligionário das teorias sociais stalinistas, propõe o Realismo Socialista, enaltecendo a imprescindibilidade do artista como participante do movimento revolucionário. Desta forma, as obras direcionavam-se especialmente ao cunho ideológico do Partido. Outros teóricos, como Georg Lukács, que em sua primeira fase literária, ainda na Hungria, dedicava-se à crítica artística, viera a reforçar, em sua permanência na União Soviética, as ideias de Jdanov, afastando a criatividade estética de suas pressuposições abstratas e relativas ao belo. Para os adeptos do Realismo Socialista, logo, as manifestações vanguardistas da Europa Ocidental no início do século XX eram de originalidade burguesa e não contribuíam com os objetivos revolucionários no papel artístico, que particularizavam-se substancialmente em expor os males da estrutura capitalista, em tornar mais nítida a contradição entre proletariado e burguesia. A teoria marxista afirma a superestrutura como uma decorrência da base econômica estrutural. No Realismo Socialista havia, porém, uma preocupação inegavelmente excessiva e automática em submeter a superestrutura à mudança estrutural, à consciência de classe e consequentemente à visão de totalidade, vez que estas possuem uma importante funções na consolidação superada (aufhebung) das formas de produção. As explorações teóricas do modernismo eram, deste modo, sufocadas pela necessidade utilitária da arte com a realidade.

Nada obstante, a ortodoxia soviética quanto à arte era alvo de crítica por parte marxistas como Bertolt Brecht, Walter Benjamin e o então exilado Leon Trótski. Em suma, estes autores criticavam a deturpação e, partindo da base econômica, a automatização excessiva da superestrutura, na qual a arte ocupava um papel bruto e superficial. Algo que não confirma, porém, a aproximação de principalmente Trótski à uma aceitação da ''arte pela arte'', pois, para o autor esta deveria estar arraigada com a materialidade. O autor russo exerce um importante papel ao publicar, juntamente com André Breton, fundador do surrealismo, o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, onde afirma:

"Segue-se que a arte não pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer diretiva estrangeira e a vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder atribuir-lhe, para fins pragmáticos, extremamente estreitos. Melhor será confiar no dom de prefiguração que é o apanágio de todo artista autêntico, que implica um começo de resolução (virtual) das contradições mais graves de sua época e orienta o pensamento de seus contemporâneos para a urgência do estabelecimento de uma nova ordem." (TROTSKI, BRETON, p. 7)¹

Por outro lado, as defesas de Trótski não contemplavam a ousadia subjetiva do então crescente Expressionismo Abstrato. A contextualização histórica do pós-guerra torna a ambivalência entre a expressão e sua fundação na realidade ainda mais contrastante, de forma que a progressividade artística demonstrava-se apenas na superação de metas abstratas. A faceta temporária de artistas como Mark Rothko, Jackson Pollock e Barnett Newman era defendida por influentes críticos estadunidenses como Clement Greenberg, que inseria estes traços abstratos sob uma interpretação política e discordante — as obras eram voluntariamente metafísicas e contra-públicas. Todavia, na Europa Ocidental, as produções artísticas as quais aproximavam-se de modo tênue das observações propostas por Trótski eram criticadas pela imprensa burguesa, que considerava a técnica aplicada por artistas como Fougeron, conservadoras devido ao seu realismo apresentado.



''O mesmo câncer que consome a linguagem, desintegra-se sob nossos olhos. Parece que, de repente, a honra do homem é colocada em silêncio, no indizível. O artista proíbe-se de significar como um poeta a cantar. Suicídio epidêmico, demissão voluntária?'' (ARAGON, citado em S. Guilbaut, p. 64)²

Tornou-se indispensável a incursão teórica dos aspectos que consideram a produção artística como um reflexo de seu modo de produção. A variação e a simultaneidade das criações demonstravam de modo ainda mais específico a inseparabilidade do artista com seu meio, negando uma autonomia subjetiva, pois esta de modo a imprimir, por exemplo, a angústia, contrapunha-se em possibilidades de uma angústia vivenciada no período das guerras. O posicionamento do Expressionismo Abstrato era consequentemente plural, de modo que a natureza de suas expressões vinculava-se ao seu contexto histórico e sua angústia demonstrava, em uma impossível desagregação com o aspecto social, uma relativa transformação.

Em um contexto histórico de extremos, a arte, figurada sob um aspecto do materialismo dialético, concretizou-se de maneiras diversas. O reflexo da realidade sobre a obra de arte, não estipula de modo completo a produção do trabalho exercido pelo artista e não preenche em toda sua significação apenas o materialismo como reflexo. Há especialmente, na subjetividade uma particularidade observável em sua objetivação material. Deste modo, pode-se afirmar que o deslocamento do processo criativo para uma influência direta da superestrutura, não a transforma, apenas corrobora com seus aspectos. A produção artística não opera, portanto, apenas em sua contradição interna, isto é, aquela que origina a prática criativa, como vislumbravam críticos ao Expressionismo Abstrato, mas transgride, gradualmente em sua superação estética, a superestrutura, transformando-a em uma dialética externa entre o público e a obra.

Citações:

¹TROTSKI, Leon; BRETON, André. Por uma Arte Revolucionária Independente, p. 7 (Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/poruma.pdf)
²GUILBAUT, Serge. Reconstructing Modernism Art in New York, Paris and Montreal 1945-1964, p. 64 (Adaptado)

Referências:

MARX, Karl & Engels, Friedrich. O Manifesto Comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998 (Caps. I e II, p.07-44).
MARX, Karl. Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. Covilhã: LusoSofia Press, 2008.
ENGELS, Friedrich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São Paulo: Centauro, 2005.
LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965
HEGEL, G. W. F. Estética: a Ideia e o Ideal. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores)
HEGEL, G. W. F. Estética: o Belo Artístico ou o Ideal. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores)
GUILBAUT, Serge. Reconstructing Modernism Art in New York, Paris and Montreal 1945-1964. Cambridge: The Conde Nast Publications Inc, 1979

Imagens disponíveis em:

https://dg19s6hp6ufoh.cloudfront.net/pictures/613336732/large/photo.jpeg?1521106951 (André Fougeron, Les Parisiennes au marché, 1947-1948)

https://assets.vogue.com/photos/5891442e8c64075803acf0d0/16:9/pass/jackson-pollock-fashion-influence-00.jpg ("Vestidos de baile para a primavera", Vogue, 1º de março de 1951, foto de Cecil Beaton de uma modelo diante de Ritmo de outono, de Pollock)


Marco Antonio Raimondi, Direito Noturno
Turma XXXV










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