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quinta-feira, 12 de setembro de 2019

A Magistratura do Sujeito e a Judicialização manifestados no Supremo Tribunal Federal

O Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 4277 é exemplo claro do crescente processo de judicialização de que tratam os autores Antoine Garapon e Ingeborg Maus. A ADI tinha por objetivo o reconhecimento da inconstitucionalidade do Art. 1.723 do Código Civil de 2002, que em seu caput prevê o reconhecimento da entidade familiar como sendo a união estável entre homem e mulher.  Para os requerentes, a especificação do gênero quando do dispositivo legal estaria ferindo alguns princípios constitucionais como o da Isonomia, e ao não reconhecer uniões homoafetivas estaria também ferindo princípios como a dignidade da pessoa humana. Consta também da Ementa (fls. 612) a referência à direitos como o direito à auto estima, à felicidade, bem como também se cita a autonomia da vontade embasando a procedência do pedido. 
    Analisando sociologicamente o pedido, e à luz dos autores, percebemos como sendo uma claríssima expressão de um processo de crescente Judicialização, ou seja, de um processo no qual segmentos da sociedade diante da inércia política às suas demandas solicitam e manobram as vias judiciais para suprir essas lacunas. Como citado por vários dos Ministros, perduram no Legislativo propostas de modificações legais desde a década de 90 visando atender a demanda dos que se sentem ofendidos pela restrição heterossexual da união. Mostra-se, portanto,  que os sujeitos no presente julgado reivindicam uma tutela pública que não se efetiva pelas vias que deveria - políticas ou legislativas -, evidenciando o que Garapon caracteriza como sendo o processo de “Magistratura do Sujeito”. Evidente concluir-se que cada vez mais o Judiciário vem sendo chamado a resolver problemas que fogem de sua função arbitral ao reivindicarem uma função tutelar do referido Poder, ou seja, por reivindicar tutelas que não são obtidas pelas vias convencionais. Deste ponto que o autor conclui que o Judiciário tem se aperfeiçoado para atender essas novas demandas e reivindicações eclodindo assim na Magistratura do Sujeito. 

Chama-se a justiça no intuito de apaziguar o molestar do indivíduo sofredor moderno. Para responder de forma inteligente a esse chamado, ela deve desempenhar uma nova fruição, forjada ao longo deste século, a qual poderíamos qualificar de magistratura do sujeito. (p. 139). 

    O próprio Ministro Gilmar Mendes, quando de seu voto na lide em tela, faz referência à esse processo. Ao dizer (fls. 757) que a Jurisprudência do S.T.F. tem evoluído - e citando o exemplo da Lei Nº 9.868/99  - Gilmar diz que decisões que antes eram tidas como “atípicas” vêm se tornando cada vez mais “típicas”, ou seja, algumas decisões com teores que antes eram vistos de forma estranha, hoje já são mais comuns e “normais’’ ao cotidiano da Corte. Mas então cabe-nos questionar: quais seriam as características, os teores das decisões que antes causavam estranhamento e agora estão se normalizando? Não é possível deduzir expressamente da fala do Ministro, porém podemos abstrair do seu contexto que trata-se da característica “aditiva” das decisões. Adiante no raciocínio, o Ministro exemplifica com alguns julgados precedentes da Corte que já vem se desenvolvendo nesta uma tendência de que as decisões não mais tenham receio de ter um caráter aditivo (adicionar à norma), como que se estivesse havendo um processo de evolução entre um passado limitado apenas à interpretar o texto para um futuro agora com a liberdade para proferir decisões que adicionam conteúdo ao texto normativo. Como exemplo o referido Ministro cita as ADI’s 1.105 e 1.127, que segundo ele “ao conferir interpretação conforme à Constituição a vários dispositivos do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), acabou adicionando-lhes novo conteúdo normativo, convolando a decisão em verdadeira interpretação corretiva da lei” (fls. 758). 
    Podemos considerar esse processo citado pelo Ministro e aqui dissertado como sendo uma expressão do processo de Judicialização bem como da Magistratura do Sujeito, que por se caracterizar pelo processo de adaptação do Judiciário às novas demandas de caráter tutelar, pode ser relacionado com essa evolução do teor das decisões do S.T.F., onde  vêm se notando cada vez mais a presença do caráter aditivo/modificativo de textos normativos por parte das decisões. Neste mesmo sentido argumenta o Ministro ao dizer ser “certo que o Supremo Tribunal Federal já está se livrando do vestuoso dogma do legislador negativo, aliando-se, assim, à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva” (fls 760). O despir-se deste vestuoso dogma e a consequente passagem à linha das decisões aditivas podem em muito serem tidos como consequência de todo esse processo de Judicialização citado pelos autores. 
    Embora saibemos da necessidade deste caso específico de se aprovar a Constitucionalidade do Reconhecimento da União Estável homoafetiva, cabe-nos contudo como futuros operadores do Direito fazer constar alguns problemas em torno da forma com que esta se deu, ou seja, em torno dessa utilização do Judiciário como concessor de medidas tutelares que possuem cunho de alteração legislativa, críticas ao próprio processo de Judicialização.  Para o jurista Profº Lênio Streck, a procedência do pedido implicaria transformar o Tribunal em uma Corte com poderes de mutação constitucional, o que sabe-se ser competência exclusiva do Poder Constituinte Derivado através de Emendas Constitucionais. Declarar a inconstitucionalidade do referido Artigo seria ofender expressamente o referido Poder e usurpar de competências que não são do Judiciário, uma vez que segundo o próprio Gilmar o texto do Código Civil é “quase um decalque” (fls. 766) da Norma Constitucional, inviabilizando assim em muito a argumentação da inconstitucionalidade. Ora, como julgar Lei Ordinária como inconstitucional se a mesma replica quase que ipsis litteris a própria Norma Constitucional? Se há insatisfação com a referida deve-se haver portanto Emenda Constitucional pois o que se objetiva implica em alteração do próprio texto constitucional. 
Felizmente - pois sabemos que uma eventual Emenda não resolveria com a devida celeridade a lide -, ao se ver diante de um caso que demandava a aplicação da Magistratura do Sujeito, um caso onde houve a Judicialização de um descontentamento social, a Corte sopesou a questão com princípios básicos como a Dignidade Humana e a Isonomia e decidiu por unanimidade pela procedência do pedido, porém  fazendo-se constar em vários votos - conforme relatamos aqui - que mesmo concordando com a “legitimidade” do pedido, deve-se ter cuidado na abertura desses precedentes. Hoje temos uma Corte que - por essas e outras decisões como a ADPF 54 - se mostra, dentro do espaço do possível, humana e atenta às mazelas e necessidades sociais, porém vale lembrar que a composição do STF é dada por nomeação do Executivo, e que tal composição “humana e atenta à necessidades sociais” não é eterna ou imutável. Sendo assim, ao abrirmos este precedente de permitir interpretações aditivas/alteradoras do texto constitucional podemos estar sem querer abrindo precedentes à futuros abusos por parte do Judiciário no sentido de perigosamente usurpar competências alheias e proferir decisões que - diferentemente dessas - expressem certos retrocessos. 

ADELINO MATTOS MARSHAL NETO 
1° DIREITO MATUTINO. 

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