Ao julgar a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental de número 186, o Supremo Tribunal Federal
reconheceu não só a constitucionalidade das cotas raciais nas universidades e
cargos públicos ou privados, mas também o papel do Estado na desconstrução de uma
narrativa excludente.
É interessante notar a convergência
da regulação e emancipação do Direito, ao mesmo tempo em que há um embate de
narrativas. Como dizem Fabiana Luci Oliveira e Virgínia F. da Silva, em
especial no que tange os discursos em julgados, “Nas narrativas estão contidas
representações sociais e estas exprimem realidades coletivas, são coisas
sociais e produto do pensamento coletivo”¹, assim, esse embate de narrativas é
fruto da heterogeneidade dos grupos sociais, e é saudável para o Direito que
exista, de modo a acarretar em sínteses melhor adequadas, elaboradas, ou
eficazes para o problema enfrentado.
Ainda, no que se refere aos discursos
empregados, é importante notar o viés de negação do problema racial em alguns
trechos da ADPF, chegando a afirmar “[...] que, no Brasil, ninguém é excluído
pelo simples fato de ser negro [...]”², fato demostrado em inúmeras pesquisas,
livros e discussões sobre o assunto, inserindo essa narrativa no chamado “mito
da democracia racial”, já que, apesar de não ter havido discriminação
legislativa na maior parte do país, a situação de desvantagem de negros em
relação a brancos no imaginário coletivo foi construído e mantido por séculos
em reportagens, conversas, discussões, donde se vê até hoje seus efeitos (baixa
representatividade de pessoas negras em cargos de alto prestígio social, maior
taxa de encarceramento, salário menor em relação a colegas brancos que desempenham
uma mesma função, etc) – é mítico acreditar que esses efeitos negativos numa
camada especifica da população se deve a diversos outros fatores menos da condição racial. Lembrando,
porém, que raça é apenas um recurso metodológico utilizado nessas discussões,
já que não encontra respaldo científico, apenas social (é uma ferramenta
demonstrada de exclusão social, que, no contexto brasileiro, se construiu com
base em fenótipos, ou seja, na aparência externa do indivíduo, estabelecendo
uma pigmentocracia entre a população – aqueles de pele mais clara e traços mais
caucasianos, como nariz fino, lábios pequenos, cabelos lisos, etc., têm melhor
inserção social do que aqueles com traços diversos, ainda que dentro da mesma
camada econômico-social, que para Boaventura de Sousa Santos poderia ser identificado
como um problema pré-contratualista, já que é prometido, no discurso cotidiano,
ascensão social a todos os grupos que se esforçarem, não importando sua cor de
pele, gênero, orientação sexual, condição física ou mental.
Outro problema identificável nas
narrativas contrárias à implementação de cotas raciais é a dificuldade em lidar
com uma possível existência de medidas imediatistas e paliativas e medidas que
pudessem inserir todos num mesmo patamar de oportunidades. Quanto a isso, os
ministros do STF identificaram importância e oportunidade de implementação da
discussão nos círculos sociais quando há implementação de políticas de ação
afirmativa, tornando o problema da exclusão social mais palpável, realista,
alcançável, já que camadas populacionais que outrora não teriam tanto contato
entre si poderão construir essas narrativas em conjunto.
Por fim, no âmbito legalista, como primeiranista
não considero ter referenciais suficientes para entrar nesse mérito, me
restringindo a lembrar que a legislação brasileira já possuí, além de
fundamentos constitucionais para a existência de ações afirmativas (como
interpretado no julgamento da ADPF 186, por exemplo) e tratados internacionais
por nós retificados, legislação ordinária tratando do tema (lei 12.711/2012), a
ser revisada em 2022, conforme a mesma, concluindo que, ainda que não realize pretensões de grupos diversos a implementação das chamadas cotas raciais, o Estado Brasileiro atualmente as adota, tendo assumido compromissos internacionalmente para combater o preconceito racial no país, podendo essas medidas serem interpretadas como um modo de combate, utilizando o direito para correção de desigualdades.
- Tatiane E. Lima, 1º ano de Direito - Matutino
¹ OLIVEIRA,
Fabiana Luci; SILVA, V. F.. “Processos judiciais como fonte
de dados: poder e interpretação”. Sociologias
(UFRGS. Impresso), RS, p. 251, 2005.
² ADPF 186/2009, fls. 28.
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