Poucos escritores brasileiros captaram com precisão as transformações
socioeconômicas da antiga capital federal no início do século XX. Lima Barreto, que
viveu somente 42 anos, vivenciou as transformações que arrombavam a retina de uma
belle époque regada à canastrice bastante restrita à região central do Rio de Janeiro de
início de República. O crítico e escritor João Antônio definia Lima Barreto com um dos
grandes escritores humanistas, com permanente espírito de luta, assim como Dickens,
Gogol e Gorki. Azucrinava, do subúrbio, os abastados de Botafogo com vistas ao Pão
de Açúcar. O subúrbio nada mais era do que seu reduto social e inegavelmente
sanguíneo, marcado na cor da sua pele e na pele de seus parentes mais distantes.
Alcoólatra, deprimido, suas crônicas em jornais cariocas por quase vinte anos
satirizavam os beneficiados pela excludente transformação urbana da cidade, criticava a
administração pública da corte, desdizia a necessidade de ensino superior e valorizavam
os esquecidos pelo establishment, a periferia da corte. Entre bebedeiras e internações em
sanatórios, revelou um Brasil urbano, cujas elites se europeizavam com a mesma
voracidade que dava pontapés aos suburbanos descendentes de escravizados.
É possível tentar compreender Lima Barreto, seu universo por intermédio de
Weber e Jessé Souza? Para tanto, tomemos dois textos: “Carroça dos cachorros” e “A
Universidade”.
“Carroça dos Cachorros” é uma crônica publicada em 1919 na revista
Marginália. Nela, Lima Barreto faz uma delicada descrição da relação humana com
cachorros. No texto há uma crítica ao serviço da cidade de recolher os cães de rua e dos
moradores (especialmente femininas) de recolher os animais, impedindo o recolhimento
e morte dos bichinhos. E compara a carrocinha à caleça de ministros do Estado
imperiais, com pomposos cavalos à frente. O autor bendiz as mulheres que protegem os
animais das polícias e dos guardas. A lei está no direito de perseguir e as mulheres
pobres estão no direito de proteger.
Em tempos de Revolta de Vacina e de proliferação de cortiços na cidade,
percebe-se a preocupação do autor em tentar compreender ações sociais (neste caso,
reativas de proteger uma fonte de afeto) de seus mais comuns – pretos e pobres. A causa
– a administração pública que, de acordo com o autor, acha que entende o que é
importante para o povo sem consultar este último. As personagens do texto são pobres
de dinheiros, mas são carinhosas e afetuosas, que nutrem suas crias humanas e não
humanas. Revela-se, assim, ao esconder os cães, a expressão cultural do subúrbio: o
direito à alegria de cuidar dos cães, e tal direito não deve ser tolhido pela administração
municipal. Percebe-se, assim, a expressão Weberiana do poder e da imposição da
vontade de quem o detém de forma oficial. Pergunta-se: as carrocinhas seriam os
estímulos externos e a dominação se materializava nas atitudes dos guardas públicos?
No caso dos cães escondidos não capturados pela força pública, venceu o povo. O ato
de esconder os cães revelou a não aceitação de um modo de vida de fora, não sendo
caracterizada a legitimação weberiana.
Na crônica “A Universidade”, publicada na revista Feiras e Mafuás em 1920,
critica a criação de universidades no Brasil. Entende que o mundo “moderno” exige
profissões técnicas e que a criação de centros de estudo seriam palacetes de pompas
decorativas. A crítica é contundente pela desnecessidade de universidades, estas como
extensões das casas de privilegiados, com o adendo de que tais privilégios agora, teriam
o alicerce da lei. Seria a produção de diplomas para rapazes sem vocação, perpetuando o
contorno de parte da tolice popular de convocar mais um “doutor”.
Lima Barreto defende que os estudos de medicina, engenharia e direito deveriam
ser bancados por quem quisesse fazê-los. E doutrinas gerais e espirituais, para melhor
compreensão do mundo, deveriam estes serem oferecidas pelo Estado. Critica que o
professor brasileiro quer pompa e luxo e posição.
Seria a universidade do texto de Lima Barreto um retrato weberiano da realidade
brasileira do início da República? As instituições não são externas aos indivíduos. Ao
contrário: criam hierarquia de valor comportamental. Em instituições de ensino em que
brancos e ricos em sua grande maioria tem acesso, o status de doutor é restrito. A
inutilidade da universidade preconizada por Lima Barreto pode ser interpretada de
forma weberiana pela desigualdade de acesso a bem educacional, caracterizando caráter
de classe. E a própria instituição seria perpetuadora de desigualdade social.
Jessé Souza cita Weber em “A Ralé Brasileira”: “durante toda a história
humana, os ricos, charmosos, saudáveis e cultos não querem apenas saber-se mais
felizes e privilegiados, eles precisam se saber como tendo “direito” à sua felicidade e
privilégio. Para se compreender porque existem classes positivamente privilegiadas,
por um lado, e classes negativamente privilegiadas, por outro, é necessário se
perceber, portanto, como os “capitais impessoais” que constituem toda hierarquia
social e permitem a reprodução da sociedade moderna, o capital cultural e o capital
econômico, são também diferencialmente apropriados. O capital cultural, sob a forma
de conhecimento técnico e escolar, é fundamental para a reprodução tanto do mercado
quanto do Estado modernos.”
Lima Barreto critica de forma veemente o embelezamento europeizado do Rio
de Janeiro, e a “modernização” do Estado republicano adere-se à tentativa de criação de
universidades. E a ralé de Jessé Souza é útil para a sociedade ao desempenhar
subempregos.
CURSO: DIREITO – Período Noturno
Disciplina: Introdução à Sociologia
*Ricardo Camacho Bologna Garcia – Número UNESP: 211221511
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