Embora
a vigência da Lei de Cotas (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012) complete mais
de 4 anos e o STF - Supremo Tribunal Federal, em abril de 2012, tenha fixado um
novo precedente, considerando constitucionais as cotas nas universidades, ainda
subsiste polêmica acerca da reserva de vagas nas universidades públicas para
egressos da educação básica pública, pretos, pardos, indígenas, entre outros
grupos. Esta decisão do STF enquadra-se na discussão de Boaventura de Sousa
Santos acerca da possibilidade de emancipação social viabilizada pelo Direito. No
caso em comento, os juristas da Corte Suprema transcenderam a lógica mercadológica
que responsabiliza unicamente o indivíduo pelo próprio desenvolvimento;
enfrentaram o fascismo social que naturaliza o domínio de espaços, como as
universidades, por grupos detentores de poder econômico e a usurpação de
prerrogativas estatais, como a educação, por instituições que estabelecem meras
relações privadas de consumo na prestação de serviços públicos; romperam com um
modelo capitalista de quadro jurídico minimalista e valeram-se do Direito como
instrumento de mudança, contra - hegemônico.
Muitos
dos argumentos contrários às políticas de ações afirmativas alicerçam-se em
mitos construídos no senso comum, ou seja, em falsas percepções sobre o mundo.
Em diversos ambientes físicos, virtuais e até mesmo no meio acadêmico,
vocifera-se contra o sistema de reserva de vagas nas universidades públicas,
partindo-se de exemplos isolados de pessoas desfavorecidas que obtiveram
sucesso sem a necessidade de proteção estatal específica, alegando-se afronta
ao princípio da isonomia e possível comprometimento da qualidade da educação
superior brasileira com o ingresso de alunos supostamente menos preparados.
Para
refutar a argumentação que considera situações específicas de ascensão social
de indivíduos desfavorecidos e não beneficiados por políticas públicas, pode-se
afirmar que não é razoável menosprezar a necessidade das ações afirmativas, com
base em casos de sucesso, como o do ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, que é
negro e de origem humilde, pois, no Brasil, prepondera a exclusão social,
especialmente contra os pretos e pardos, o que pode ser exemplificado com o
fato de a população carcerária brasileira constituir-se por 60,8% de negros (disponível
em http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/noticias/junho/mapa-do-encarceramento-aponta-maioria-da-populacao-carceraria-e-negra-1).
A
alegação de afronta ao princípio da isonomia quando da instituição da política
de ações afirmativas para ingresso na educação superior pode ser rechaçada pela
lição da Professora Carmen Lúcia Antunes Rocha, citada por Barbosa (2003): “O
conteúdo, de origem bíblica, de tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais na medida em que se desigualam – sempre lembrado como sendo a
essência do princípio da igualdade jurídica – encontrou uma nova interpretação
no acolhimento jurisprudencial concernente à ação afirmativa. Segundo essa nova
interpretação, a desigualdade que se pretende e se necessita impedir para se
realizar a igualdade no Direito não pode ser extraída, ou cogitada, apenas no
momento em que se tomam as pessoas postas em dada situação submetida ao
Direito, senão que se deve atentar para a igualdade jurídica a partir da
consideração de toda a dinâmica histórica da sociedade, para que se focalize e
se retrate não apenas um instante da vida social, aprisionada estaticamente e
desvinculada da realidade histórica de determinado grupo social”. Nesse
diapasão, afirma Boaventura de Sousa Santos (2003): “(...) temos o direito a
ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser
diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de
uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza,
alimente ou reproduza as desigualdades”.
No
tocante à exploração histórica dos negros no Brasil, os quais foram alijados da
educação formal, situação esta que já preocupava o movimento abolicionista do
século XIX e que justifica, sim, a implementação de políticas de reserva de
vagas nas universidades públicas, recomenda-se a leitura do artigo Movimento
Negro e Educação (disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n15/n15a09.pdf.),
assim como da coletânea de textos sobre o tema “Educação e ações afirmativas:
entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica”, que pode ser acessada no
seguinte endereço eletrônico:
Já
a infundada preocupação acerca da redução da qualidade da educação superior
brasileira com o ingresso dos alunos beneficiados pelas cotas foi refutada por
diversos estudos que comprovaram não haver correlação entre baixo desempenho acadêmico
e as diversas modalidades de acesso à universidade. Para corroborar tal
afirmação, cumpre compartilhar o artigo do pesquisador da Universidade de
Brasília, Jacques Velloso, o qual concluiu que não há “diferenças sistemáticas
de rendimento a favor dos não-cotistas, contrariando previsões de críticos do
sistema de cotas, no sentido de que este provocaria uma queda no padrão acadêmico
da universidade"(http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/240/253).
Por
fim, salienta-se a relevância das políticas de ações afirmativas para democratizar
o acesso às universidades públicas, principais produtoras de conhecimento, o
qual, à medida que se consolidar a inclusão dos diferentes grupos oprimidos
historicamente, poderá ser construído/reconstruído sob múltiplas perspectivas.
Ressalta-se, ainda, que as políticas públicas em comento representam a
mitigação de um contexto de exclusão social evidente no Brasil, entretanto, o
empoderamento inicial que elas promovem poderá resultar em uma emancipação
social efetiva.
Marcos
Paulo Freire –Direito Noturno
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