O Supremo Tribunal
Federal e a união entre pessoas do mesmo sexo
Saymon
de oliveira Justo
A ADI
4277 (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e a ADPF 132 (Arguição de
Descumprimento de Preceito Constitucional) foram julgadas conjuntamente pelo Supremo
Tribunal Federal em maio de 2005. Ambos os julgados tratam da equiparação da
união homoafetiva à união estável. Formalmente o STF não julgou a possibilidade
do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, mas ao equiparar os dois
institutos, permitiu que os efeitos do Artigo 1726 do Código Civil sejam
aplicados a união de pessoas do mesmo sexo. Diz o referido artigo do Código
Civil: “A união estável poderá converter-se
em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro
Civil”. Assim, ao equiparar a união entre pessoas do mesmo sexo à união
estável, a decisão do STF permite que os casais homoafetivos solicitem a
conversão da união em casamento, conforme o artigo acima citado do Código
Civil.
Os referidos julgados expressam um
conflito que transcende o campo jurídico e que se desdobra no legislativo, no
espaço cultural, religioso, enfim, em vários setores da sociedade. Trazendo o conceito
de “campos”, de Pierre Bourdieu, percebemos por traz dos litígios em torno da
interpretação da Constituição e da tentativa de racionalização, o embate entre o
campo religioso, o campo social e diversos campos que se interseccionam. A
resistência do Legislativo em regulamentar o tema, por exemplo, expressa a
influência do campo religioso sobre o parlamento, inclusive corporificando-se em
bancadas religiosas. Por outro lado, temos a comunidade LGBTQIA+, que além da
luta no campo social, traz suas demandas ao campo cultural e até ao parlamento,
através de seus representantes, mesmo que em escala menor.
Quanto ao chamado “espaço dos possíveis”, temos a própria
Constituição Federal, que abre espaço para as diversas interpretações colocadas
pelos grupos em litígio. No Artigo 226 da Constituição Federal encontramos
claramente a caracterização de casamento como a união entre homem e mulher: “§ 3º Para
efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a
mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento”. Entretanto, tanto a ADPF 132 quanto a ADI 4277 buscam no
próprio texto constitucional o abrigo para a decisão proferida.
Nesse sentido, trazemos o Ministro
Ayres Britto, relator da ADI 4277, que fundamenta sua decisão do Artigo 5º da
Constituição, que trata da “da
liberdade (inciso II do art. 5º) e da dignidade da pessoa humana (inciso IV do art.
1º)”. Quanto ao princípio da liberdade,
argumenta o Ministro que “a autonomia
privada em sua dimensão existencial manifesta-se na possibilidade de
orientar-se sexualmente e em todos os desdobramentos decorrentes de tal
orientação”. Em relação à dignidade, continua o Ministro na mesma ADI, “todos os projetos pessoais e coletivos de
vida, quando razoáveis, são merecedores de respeito, consideração e
reconhecimento”.
Em
resumo, a Constituição Federal constitui um espaço dos possíveis para a racionalização e a universalização dos argumentos em litígio, uma vez que uma
interpretação mais restrita do texto possibilita um entendimento mais limitado
do casamento, enquanto a historicização
da norma, ou seja, o colocar o entendimento da norma em consonância com as
mudanças no corpo social, autorizam a decisão tomada pelo STF dentro dos
limites do próprio texto constitucional. Dessa forma, podemos compreender a
decisão do Supremo Tribunal Federal a partir dos conceitos de
universalização/neutralização colocados por Pierre Bourdieu, uma vez que ela se
fundamenta na “universalidade” da Constituição Federal e se expressa em
linguagem em conformidade com a norma constitucional.
Por
fim, chegamos ao ponto no qual podemos refletir sobre as referidas ADI e ADPF
sob o arcabouço teórico de Antoine Garapon. Nesse aspecto, trazemos o conceito
de “magistratura do sujeito”, ou
seja, uma vez que o indivíduo se percebe como apartado de toda e qualquer
proteção, ele mobiliza o Direito e busca no judiciário o único amparo possível.
Na ADI 4277, proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, percebemos a
fragilidade das pessoas beneficiadas pela decisão, pois o não reconhecimento da
união homoafetiva implica na ausência de direitos básicos, no caso, de
servidores estaduais: salário-família, auxílio doença, pensão em caso de morte
de um dos cônjuges, auxílio funeral, financiamento imobiliário, entre outros.
Em
relação à questão da usurpação de atribuições do Poder Legislativo pelo
Judiciário a questão parece não se fundamentar, pois a própria Constituição
Federal normatiza o controle de constitucionalidade feito pelo Supremo Tribunal
Federal e é justamente isso que ele faz no referido caso. O Artigo 102 da
Constituição estabelece o Supremo Tribunal Federal como “a guarda da Constituição” e nesse sentido, na referida questão onde
o conceito de casamento contido no Artigo 226 da CF parece em conflito com
preceitos dos Artigos 1º e 5º (liberdade, dignidade da pessoa humana,
igualdade), cabe ao STF, como definido em lei, o papel de sanar esse conflito.
Conforme
Ingo Wolfgand Sarlet, as constituições possuem um caráter de permanência, pois
precisam manter a estabilidade do Estado, mas devem possuir também mecanismos
de mudança, pois do contrário correm o risco de se tornarem “letra morta” e
totalmente apartadas da sociedade que buscam tutelar. Nesse sentido, o que o
STF fez nos referidos julgados foi o que Garapon chama de historicização da norma, ou seja, dentro dos limites do texto
constitucional, adaptou sua interpretação às novas demandas sociais. Na inação
do Poder Legislativo, o Judiciário tão somente deu interpretação ao texto
constitucional em acordo com a proteção dos direitos fundamentais e com as
novas demandas sociais. Não criou lei, não extrapolou suas atribuições e nem a
Constituição. Dessa forma, em relação aos referidos julgados, não se sustenta a
acusação de “ativismo judiciário”.
Por
fim, a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação tanto a ADI 4277 como em
relação à ADPF 132 representa um aprofundamento da democracia, uma vez que
reconhece o “espírito” da Constituição cidadã de 1988, que tem como projeto
inerente uma sociedade mais justa e com plenas garantias aos direitos
individuais. Nesse sentido, a equiparação da união homoafetiva a união estável
apenas garante a igualdade, a liberdade e a dignidade da pessoa humana
expressas nos Artigos 1º e 5º da Constituição.
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