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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

 

                 O Supremo Tribunal Federal e a união entre pessoas do mesmo sexo         

                                                                                Saymon de oliveira Justo

 

            A ADI 4277 (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e a ADPF 132 (Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional) foram julgadas conjuntamente pelo Supremo Tribunal Federal em maio de 2005. Ambos os julgados tratam da equiparação da união homoafetiva à união estável. Formalmente o STF não julgou a possibilidade do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, mas ao equiparar os dois institutos, permitiu que os efeitos do Artigo 1726 do Código Civil sejam aplicados a união de pessoas do mesmo sexo. Diz o referido artigo do Código Civil: “A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil”. Assim, ao equiparar a união entre pessoas do mesmo sexo à união estável, a decisão do STF permite que os casais homoafetivos solicitem a conversão da união em casamento, conforme o artigo acima citado do Código Civil.

            Os referidos julgados expressam um conflito que transcende o campo jurídico e que se desdobra no legislativo, no espaço cultural, religioso, enfim, em vários setores da sociedade. Trazendo o conceito de “campos”, de Pierre Bourdieu, percebemos por traz dos litígios em torno da interpretação da Constituição e da tentativa de racionalização, o embate entre o campo religioso, o campo social e diversos campos que se interseccionam. A resistência do Legislativo em regulamentar o tema, por exemplo, expressa a influência do campo religioso sobre o parlamento, inclusive corporificando-se em bancadas religiosas. Por outro lado, temos a comunidade LGBTQIA+, que além da luta no campo social, traz suas demandas ao campo cultural e até ao parlamento, através de seus representantes, mesmo que em escala menor.

            Quanto ao chamado “espaço dos possíveis”, temos a própria Constituição Federal, que abre espaço para as diversas interpretações colocadas pelos grupos em litígio. No Artigo 226 da Constituição Federal encontramos claramente a caracterização de casamento como a união entre homem e mulher: “§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Entretanto, tanto a ADPF 132 quanto a ADI 4277 buscam no próprio texto constitucional o abrigo para a decisão proferida.

            Nesse sentido, trazemos o Ministro Ayres Britto, relator da ADI 4277, que fundamenta sua decisão do Artigo 5º da Constituição, que trata da “da liberdade (inciso II do art. 5º) e da dignidade da pessoa humana (inciso IV do art. 1º)”. Quanto ao princípio da liberdade, argumenta o Ministro que “a autonomia privada em sua dimensão existencial manifesta-se na possibilidade de orientar-se sexualmente e em todos os desdobramentos decorrentes de tal orientação”. Em relação à dignidade, continua o Ministro na mesma ADI, “todos os projetos pessoais e coletivos de vida, quando razoáveis, são merecedores de respeito, consideração e reconhecimento”.

            Em resumo, a Constituição Federal constitui um espaço dos possíveis para a racionalização e a universalização dos argumentos em litígio, uma vez que uma interpretação mais restrita do texto possibilita um entendimento mais limitado do casamento, enquanto a historicização da norma, ou seja, o colocar o entendimento da norma em consonância com as mudanças no corpo social, autorizam a decisão tomada pelo STF dentro dos limites do próprio texto constitucional. Dessa forma, podemos compreender a decisão do Supremo Tribunal Federal a partir dos conceitos de universalização/neutralização colocados por Pierre Bourdieu, uma vez que ela se fundamenta na “universalidade” da Constituição Federal e se expressa em linguagem em conformidade com a norma constitucional.

            Por fim, chegamos ao ponto no qual podemos refletir sobre as referidas ADI e ADPF sob o arcabouço teórico de Antoine Garapon. Nesse aspecto, trazemos o conceito de “magistratura do sujeito”, ou seja, uma vez que o indivíduo se percebe como apartado de toda e qualquer proteção, ele mobiliza o Direito e busca no judiciário o único amparo possível. Na ADI 4277, proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, percebemos a fragilidade das pessoas beneficiadas pela decisão, pois o não reconhecimento da união homoafetiva implica na ausência de direitos básicos, no caso, de servidores estaduais: salário-família, auxílio doença, pensão em caso de morte de um dos cônjuges, auxílio funeral, financiamento imobiliário, entre outros.

            Em relação à questão da usurpação de atribuições do Poder Legislativo pelo Judiciário a questão parece não se fundamentar, pois a própria Constituição Federal normatiza o controle de constitucionalidade feito pelo Supremo Tribunal Federal e é justamente isso que ele faz no referido caso. O Artigo 102 da Constituição estabelece o Supremo Tribunal Federal como “a guarda da Constituição” e nesse sentido, na referida questão onde o conceito de casamento contido no Artigo 226 da CF parece em conflito com preceitos dos Artigos 1º e 5º  (liberdade, dignidade da pessoa humana, igualdade), cabe ao STF, como definido em lei, o papel de sanar esse conflito.

            Conforme Ingo Wolfgand Sarlet, as constituições possuem um caráter de permanência, pois precisam manter a estabilidade do Estado, mas devem possuir também mecanismos de mudança, pois do contrário correm o risco de se tornarem “letra morta” e totalmente apartadas da sociedade que buscam tutelar. Nesse sentido, o que o STF fez nos referidos julgados foi o que Garapon chama de historicização da norma, ou seja, dentro dos limites do texto constitucional, adaptou sua interpretação às novas demandas sociais. Na inação do Poder Legislativo, o Judiciário tão somente deu interpretação ao texto constitucional em acordo com a proteção dos direitos fundamentais e com as novas demandas sociais. Não criou lei, não extrapolou suas atribuições e nem a Constituição. Dessa forma, em relação aos referidos julgados, não se sustenta a acusação de “ativismo judiciário”.

            Por fim, a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação tanto a ADI 4277 como em relação à ADPF 132 representa um aprofundamento da democracia, uma vez que reconhece o “espírito” da Constituição cidadã de 1988, que tem como projeto inerente uma sociedade mais justa e com plenas garantias aos direitos individuais. Nesse sentido, a equiparação da união homoafetiva a união estável apenas garante a igualdade, a liberdade e a dignidade da pessoa humana expressas nos Artigos 1º e 5º da Constituição.

 

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