No Capítulo V do atual
Código Penal brasileiro, somos introduzidos aos diversos crimes contra a honra
do indivíduo. Dentre eles, cita-se como exemplo a injúria racial, prevista pela
artigo 140, § 3o, que prevê ao praticante reclusão de um a três anos
e multa. O conceito de injúria racial baseia-se na ideia de uma ofensa dirigida
a um único indivíduo em específico e, sob uma análise defeituosa, não atacaria
todo um grupo social. Diferentemente deste, o crime de racismo, previsto pela Lei
no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, busca abranger as situações em
que a ofensa é dirigida a uma parcela da população em geral, não a uma única
pessoa. Entretanto, considerando a realidade histórica do Brasil – que ecoa na
contemporaneidade – e a aplicação prática dessa diferenciação, observa como a
definição de injúria racial é supérflua, visto que toda prática de “injúria” é
uma manifestação racista do agressor.
De início, tendo em vista a formação escravocrata de
nosso país, o racismo estrutural é algo intrínseco a sociedade como um todo.
Por meio dessa prática cotidiana, diversas condutas violentas contra a
população negra são constantemente normalizadas e tipificadas. Nesse âmbito,
não se pode diferenciar injúria racial de racismo, pois toda e qualquer ofensa
direcionada a um indivíduo por conta de sua cor é reflexo de um comportamento influenciado
por uma sociedade que cotidianamente ofende toda a parcela negra da população. Em
outras palavras, não há diferenciação, porque, considerando nossas estruturas
sociais, todo ataque provém de ideais enraizados na comunidade brasileira.
Ademais, a diferenciação entre esses delitos acaba por favorecer unicamente os criminosos,
visto que, para se defenderem perante a lei, seus respectivos advogados tendem
a alegar que a prática criminosa condiz com o crime de injúria e não de racismo,
visando uma pena mais branda para o desviante.
É nesse cenário contraditório que, por meio da Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6987, o partido Cidadania requereu ao
Supremo Tribunal Federal (STF) o reconhecimento da injúria racial como espécie
de racismo. Como já apresentado acima, acatar a solicitação do partido é essencial
para combater o racismo estrutural brasileiro. À luz de diversos sociólogos, juristas
e filósofos, a dissertação que se segue busca analisar a importância dessa equiparação
para um Estado Democrático de Direito e como foi possível a ascensão desse debate,
tendo em vista o racismo intimamente atrelado a população brasileira.
De início, sob a ótica de Pierre Bourdieu, vale ressaltar como a
constante luta da população negra vem alterando positivamente o espaço
dos possíveis. Definido pelo sociólogo como tudo aquilo que se é realizável
em um meio, o espaço dos possíveis é reflexo direto das dinâmicas sociais nele
existentes, sendo estas, historicamente, as mais intolerantes
possíveis para com as minorias raciais. Entretanto, o espaço dos possíveis é
delimitado pelo campo jurídico. Tendo por base que o referido pensador
considera o direito como a junção da lógica positiva da ciência com a lógica
normativa da moral, observa-se que o direito não será algo estático, visto que
os parâmetros que definem a moral tendem a variar de acordo com o tempo e
espaço em que se inserem. Assim sendo, levando em conta que o espaço é o de um
Estado Democrático de Direito e que vivemos em um tempo de constante
reconhecimento de direitos graças ao conflito entre os marginalizados e a ordem
racista, é incabível a permanência de um sistema que busque amenizar um crime
praticado há séculos contra essa parcela da população.
Após a análise do pensamento de
Bourdieu no contexto citado, passemos agora para o estudo das ideias de Antonie
Garapon. Para o jurista, a plenitude da democracia é alcançada ao rompermos as
amarras impostas pelos denominados magistrados naturais –
comportamentos típicos de uma ordem retrógrada, como o machismo, a homofobia e
o racismo – e recriar a organização social por meio do direito. Para superar os
magistrados naturais, no entanto, é necessário que o sujeito exerça a
magistratura de sua própria vida, ou seja, participe ativamente de batalhas que
busquem o rompimento com a ordem natural. Nesse viés, nota-se que solicitações
como a do Cidadania a respeito do racismo não são frutos de um mero
“paternalismo judicial”, mas sim de uma luta constante que reflete o
protagonismo dos agentes oprimidos nessas conquistas. Ademais, ainda no quesito
de romper com a ordem vigente, decisões judiciais devem colaborar com os
embates sociais travados por meio da antecipação do direito, isto
é, devem pensar o direito como uma ferramenta de transformação social e não
como um instrumento que reproduza e legitime atitudes discriminatórias que já
se encontram enraizadas em muitos cidadãos. Na questão analisada, portanto,
deve haver o reconhecimento da injúria racial como uma manifestação do racismo
para que não haja a legitimação de condutas criminosas.
Dando sequência, o foco da análise
será agora o pensamento de Michael McCann a respeito do direito e sua função no
meio em que está inserido. Consoante aos ensinamentos do professor, vivemos em
um contexto marcado por um fenômeno denominado mobilização do direito.
De acordo com seu conceito, essa é a mobilização dos próprios sujeitos de
direito para reivindicar seus interesses. Alinhado ao conceito já
apresentado de magistratura do sujeito, ocorre aqui uma transição na ideia dos
tribunais como os principais garantidores de direito, passando esse ofício para
os agentes em si. Deste modo, mais uma vez se observa em como decisões
judiciais, há exemplo da ADI analisada, são frutos principalmente de um cenário
de instabilidades geradas por aqueles que reclamam seus direitos básicos e uma
ordem de caráter opressora. Tais mobilizações exercem influência primeiramente
no chamado nível estratégico, ao pressionar autoridades judiciais para que
providências sejam tomadas, e, posteriormente, em nível constitutivo, que passa
a adotar os decretos proferidos como parte da vida cotidiana – ou, caso haja
resistência, há desde pressões exercidas pelo meio para exigir mudanças
comportamentais até consequências penais, como no caso analisado.
Por fim, cabe agora uma análise de
conceitos da jurista Sara Araújo alinhados aos ideais do filósofo Achille Mbembe.
Para ela, o direito, em sua forma pura, busca assegurar os ideais eurocêntricos
em que foi embasado, gerando o que a autora define como uma “linha abissal”
entre o norte e o sul, separação que vai muito além da geográfica.
Nesse viés, não podemos estabelecer e manter princípios regidos por uma ordem
colonizadora cuja realidade é completamente distinta da latino-americana, sob
pena de cairmos na denominada monocultura do saber – o conhecimento
adquirido de fontes eurocêntricas seria a verdade absoluta. Engatilhando para o
pensamento de Mbembe, com base na obra “Crítica da razão negra”, as fortes
bases colonialistas acarretam diretamente na permanência do racismo estrutural,
já que vê aqueles que são diferentes do “modelo europeu” como inimigos em
potencial. É nesse âmbito, pois, que é de extrema importância romper com as
amarras históricas para se alcançar um resultado democrático no presente, já
que “o mundo é diferente da ponte pra cá”.[1]
Em suma, observa-se que, por conta do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, consequência direta de seu passado escravista e por adotar o padrão europeu como molde, há a tentativa de mascarar uma prática criminosa. Deste modo, concluo reafirmando: solicitações como a da ADI 6987 são consequências diretas das lutas travadas pela comunidade oprimida. Ao pressionar a sociedade como um todo, os agentes sociais adquirem influência necessária para alterar os parâmetros do espaço dos possíveis e, por conseguinte, superar os magistrados naturais, fato que seria impossível sem a organização pela mobilização do direito e suas consequências na esfera social, política e jurídica. Somente rompendo com padrões colonialistas, atingiremos a plenitude de nossa democracia e cumpriremos a verdadeira função do direito.
Mateus G. F. de Souza
Turma XXXIX - Matutino
[1] Racionais
MC’s: "Da ponte pra cá"
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