Discriminação
S.f. Ação ou efeito de discriminar,
distinguir ou diferenciar.
Ação de afastar, segregar ou
apartar.
Ao leitor mais atento e
inteligente, perceberá que houve mudança drástica da percepção do “Direito” do
primeiro caso apresentado para este. Naquele, o direito era opressor. Aqui,
defensor dos oprimidos. Já indo ao encontro de Boaventura (que se esbarra em
Hegel, o “vilão” de outros tempos, que lia o Direito sob lentes de libertação)
aqui falamos sobre a instrumentalização do direito, que pode ser emancipatório
ou excludente, de acordo com quem (e porque) se utiliza dele. É o que consiste
em fazer uma “ruptura com a noção hegemônica de Direito”, ele diz: “Uma coisa é
utilizar um instrumento hegemônico num dado combate político. Outra coisa é
utilizá-lo de uma maneira hegemônica”.
É
incontestável que o Brasil tem, constitucionalmente, o objetivo fundamental de
construir uma sociedade livre, justa e solidária, assim como promover a redução
das desigualdades, sem preconceito de raça ou qualquer outra forma de
discriminação. Por óbvio, também não se nega que a população negra sofreu por
muitos anos e ainda sofre com uma discriminação racial que, muitas vezes, nos
reduz as oportunidades, que nos leva a uma situação de “Pré-contratualismo”,
que trata Boaventura, em que “consiste em impedir o acesso à cidadania a grupos
que anteriormente se consideravam candidatos à cidadania”. Esse acesso, segundo
o autor, está em um “duplo”, que tenciona entre regulação social e emancipação
social e o Direito seria o promotor dessas mudanças sociais, uma vez que os
combates pela inclusão social se daria nos “moldes” capitalistas, liberais de
contrato, ou seja, a inserção deveria ser jogada de acordo com as novas regras,
não mais com as estratégias revolucionárias de séculos anteriores.
A
minha percepção que surge é de um cosmopolitismo subalterno, do qual trata
Boaventura, porém, que abarca apenas uma manifestação de exclusão da periferia
do mundo, enquanto deveríamos lutar (e melhorar) as condições de todas as
vertentes minoritárias com ações que realmente mostrassem eficiência e inclusão.
No que tange a isto, o autor lista 3 tipos de ação da legalidade cosmopolita em
relação à não-cidadania: que seria a ação global mediante reivindicação da
política internacional de direitos humanos; a ação nacional acionando o Estado
para a garantia de níveis mínimos de inclusão e a ação local reivindicando a
defesa de determinada comunidade diante a ação de forças de exclusão externas
(legais ou ilegais). Recorrer ao direito é legitimo, ainda mais se vivencia em
uma sociedade estratificada, como pontua o autor: em uma “sociedade civil incivil”. Que é formada pelos totalmente excluídos,
contudo, a ótica enfeixada, que mira em apenas uma parcela do problema, e faz dela
palanque ideológico, merece todas as ressalvas, pois pode levar o que
Boaventura chamou de “fascismo social” em que “para se defenderem” (aqui,
imagino também em defenderem seus pontos de vista) as pessoas enfeixam
“enclaves fortificados” e acabar por furtar-se ao debate real sobre as
questões, tal qual faz o Estado. Outro ponto salutar e passível de reflexão, é
utilizar do Estado para tal, justo ele o causador e legitimador de todas
atrocidades cometidas contra a humanidade em séculos anteriores, juntamente com
o Direito e a religião.
Contudo,
com inúmeras ressalvas, talvez a luta por igualdade do século XX tenha
esbarrado nos 20% do nosso século. Por que contentar-se com 20% se, com a
honesta e real emancipação, poderíamos ter 100%? Os 20% é a personificação do
“jeitinho brasileiro” e da “cordialidade forjada” de nosso povo. Os 20% nada
mais é do que a falência do Estado, em não dar conta, durante 128 anos, de
promover uma educação salubre, integra, honesta e que abarque todos os campos
sociais. Os 20% é a manifestação de um paternalismo atávico, que tenta a todo
modo “amansar” cidadãos com “mimos, afagos” e deixar de lado o que realmente
importa: a mudança social, econômica e educacional do país, que é precária. Os
20% é deixar de vez os apontamentos constitucionais de isonomia, de alcance de
um país mais educado (haja vista nossos péssimos índices em educação), é abonar
o “jeitinho brasileiro” (não só no "tapar buracos", mas dando brechas para que as cotas sejam burláveis por pessoas que não as necessitam), é deixar de lado preceitos fundantes da nossa CF/88
como: Art. 4°, IX; Art. 5°, e o mais
importante, o Art. 19°, em seu inciso III: “criar
distinções entre brasileiros ou preferências entre si”, além de não
fazer muito sentido, em um país tremendamente miscigenado e que, sem parcimônia
ou medo de errar, 99% da população é descendente de negros, índios e europeus, criar
distinções com bases racialistas. Há inúmeras vertentes e analises sobre o
sistema de cotas raciais, uma delas pode ser entendida como “conservadora”, que
é justamente manter o negro em condição subalterna, daquele que necessita de
muletas, já que o Estado, em sua pífia atuação conseguiu apenas vislumbrar
“cotas” e nenhuma mudança efetiva. Ainda
paira sobre nós, negros, a sombra de incapacitado. A outra, diz ser
emancipatória, mas faz coro a primeira.
As
críticas as cotas são muitas, desde seu adimplemento ineficiente (pois não
acabaria com as desigualdades tão gritantes apenas com um diploma), bem como
sua ação meramente paliativa, não indo com profundidade nas questões, como a
carga tributária altíssima que pune os mais pobres e negros (mostras de um
Estado inchado e custoso não significa “bem estar social”), como também por não
haver critérios objetivos que possa estabelecer quem comporia os integrantes
das cotas raciais. Ou seriamos obrigados a criar “tribunais de raça” ou “de
sofrimento”, para avaliar quem sofreu mais ou menos e quem é “negro o
suficiente” para o usufruto. Além do mais, se o peso para tal, forem os
sofrimentos de diversas etnias, poderíamos ai incluir tantos outros povos
perseguidos e mortos em outros tempos. Tampouco o progresso
não pode ser alcançado por meio de líderes raciais ou étnicos, e pode ter
efeito em muitas vezes reverso, ao não atender os reais necessitados, que são
os mais pobres, como avalia Thomas Sowell, renomado economista norte-americano
e negro, estudou a questão das cotas nos EUA, na Índia e na África. Sua obra Ação afirmativa pelo mundo: Um estudo
empírico (2004) revela que as
discrepâncias que as cotas queriam diminuir foram não só mantidas, mas
ampliadas. Em todos os lugares em que implementou-se a política, houve um
aumento significativo dos conflitos entre os grupos beneficiados e os não
beneficiados.
É
claro, e certo, que Boaventura também deixa espaço para refletirmos sobre as
cotas no âmbito de “testes”, é o que exprime como “Estado experimental”, uma
dada experimentação institucional, em que o novo desenho institucional do
Estado exige combates por configurações alternativas. Sendo o mais recente dos
movimentos sociais, o Estado acarreta consigo uma grande transformação do
direito estatal. E mais certo ainda, é pensar nos ditames de "igualdade" x "justiça", como sempre lembrado por Aristóteles: "Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade."
Se
caminharmos para a diferenciação, além de trazer à tona as teorias de raça (ou
racialistas), de que não pertencemos a uma só raça, a raça humana, o fato não
colabora para uma cultura de progresso que atinja todos, que pode levar a uma
visão particularista, do qual também trata Boaventura. Muito em breve estaremos
fadados a selecionar não só vagas em universidades, mas também, assentos nos
ônibus, lugares de lazer e, pasme, talvez condomínios exclusivos. Mas isso já
foi testado, especificamente pelo Estado norte-americano, com leis de Jim Crow.
Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem;
Lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize.
Victor Hugo Xavier, 1° Direito - Noturno.
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