Os reflexos da dialética social que mobiliza o Direito perante as cortes podem ser observados mesmo quando a controvérsia reside em questões processuais. Foi o caso da ADC 19 e da ADI 4424, que versaram sobre aspectos da instrução judicial nos crimes referentes a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Na ADC 19, o STF afirmou a constitucionalidade do dispositivo da Lei Maria da Penha que vedava a aplicação do procedimento sumaríssimo nos crimes dessa natureza, ainda que a pena cominada, tecnicamente, permitisse-o. Ou seja, ainda que presente requisitos que atraíssem para o caso a competência do Juizado Especial Criminal, a lei, e, em controle de constitucionalidade, o STF, reconheceram a relevância social da matéria, reservando tais casos à instrução mais meticulosa e abrangente do procedimento criminal comum.
Já na ADI 4.424, foi decidido que lesões corporais resultantes de violência doméstica contra a mulher devem ser processadas por meio de ação penal pública incondicionada. Ou seja, havendo indícios dessa violência, o MP pode fazer a denúncia independentemente de representação da vítima.
Verifica-se, em ambos os casos, a mobilização do Tribunal frente a uma luta social que se institucionaliza. Essa mobilização é tanto indireta, em razão da mera existência da Lei Maria da Penha – cuja materialização eventualmente obrigou a Corte a se manifestar sobre –, quanto direta, evidenciada pela participação de entidades ligadas a movimentos sociais na ADC 19. De qualquer forma, ambos os julgados podem ser observados como a continuação de uma pauta social que tem como paradigma a edição da lei em tela.
No primeiro julgado citado, a mensagem é clara: ainda que determinada conduta possa ser classificada como de menor potencial ofensivo, dentro deste contexto – de violência doméstica contra a mulher –, ela não será assim processada. Já o segundo julgado, ao permitir que o MP não se condicione à representação da vítima, passam a ser objetos da lei os casos em que a situação de vulnerabilidade da mulher é tamanha que, mesmo diante de agressão, ela não se vê em condições de denunciar o agressor.
Portanto, a atuação da Corte fortificou as disposições da lei em questão e ampliou seus mecanismos de proteção. Nos termos de Mc Cann, esse enquadramento legal mais severo opera em nível constitutivo, fomentando o repúdio à violência doméstica e encorajando denúncias. Também opera em nível estratégico, pois abre mais caminhos para que diversos atores possam levar eventuais agressões à apreciação judicial, que se processará ainda que a vítima não esteja em condições, por motivos de coação do agressor ou de qualquer tipo de vulnerabilidade, de representação.
As decisões trazidas pacificaram divergências que existiam a respeito da aplicação da Lei Maria da Penha. Em ambos os casos, as decisões do STF foram ao encontro do caráter protetivo desse diploma, ampliando o alcance do Estado nos casos de crimes de violência doméstica contra a mulher, ainda que se tratasse de questões eminentemente processuais. Toda mobilização social que antecedeu e resultou na edição da Lei n. 11.340/2006, 6 anos depois, toma a via judicial na forma das ações trazidas neste texto. Essa dinâmica evidência que o fenômeno da judicialização não se inicia nos tribunais e nem se restringe a eles, mas é fruto de uma ação coletiva espontânea que, agora, busca outros caminhos, além do político, para a efetivação de direitos.
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