Diante da omissão do Legislativo em cumprir seu papel de legislar, o Poder Judiciário emerge como a esperança de resolução das demandas de minorias historicamente marginalizadas. Não há constatação mais certa do que a que visualiza o Brasil como um dos países mais intrinsecamente permeados pela desigualdade e pelo preconceito, não havendo uma atuação efetiva por parte de quem possui, de fato, aptidão para reverter este cenário por meio da lei, as partes que sentem, literalmente, na pele as consequências desta inércia são levadas a depositarem suas reivindicações no bojo das decisões dos tribunais. A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ajuizada pelo Partido Popular Socialista, ao defender a criminalização de todas as formas de homofobia e transfobia, ou por se enquadrarem no conceito de racismo, ou por vislumbrar' “discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais" e, também, o reconhecimento do descumprimento do dever de legislar do Congresso, representa fielmente este fenômeno.
As próprias instituições legitimadas para dar voz às minorias passam a apreciar esse novo âmbito de atuação dos tribunais, como é o caso do Grupo Gay da Bahia-GGB, que luta a mais de 30 anos pela defesa e promoção dos direitos e garantias das pessoas LGBT, denunciando abertamente as manifestações de preconceitos e discriminações despejados sobre essa classe, que ao figurar como amicus curiae na ADO 26 / DF, enfatizou o Poder Judiciário como a esfera do Estado mais sensível e mais atuante na consagração dos direitos e das demandas da população LGBT. Em sentido inverso precipitou sobre o Legislativo a crítica a sua resistência em aprovar qualquer projeto de lei que verse sobre o tema, o que pode ser exemplificado pelo fato de que há mais de 13 anos o PLC nº 122/2006 vem sendo debatido, sem nenhuma previsão de aprovação, diante dessa inércia dispensa-se sobre os membros do Congresso, representantes democraticamente eleitos pelo povo, a atestação de que não representam essa parcela da população.
Tal contexto reflete o objeto de análise dos trabalhos de Michael McCANN, que ao tratar da mobilização do direito, ou seja, das "ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores" , expõe o aumento da relevância das decisões dos juízes diante de uma vasta categoria de importantes questões sociais, principalmente no que se refere ao tratamento das minorias raciais, étnicas e sexuais, mas, em uma abordagem diferente, ele desloca o foco dos tribunais para os usuários, para os atores que o mobilizam e para as interações nas disputas travadas, trazendo uma perspectiva dos “usuários”. O Poder Judiciário é apenas mais um ator e não "o autor" desse fenômeno, são os sujeitos que estão mobilizando o direito e o provocando, fazendo com que ele aja de maneira contra hegemônica
O Judiciário tornou-se, no Brasil, um dos maiores impulsionadores dos direitos e garantias da população LGBT, que, pelo preconceito enraizado, não usufruem de estima social equiparada aos demais estratos sociais, enfrentam um não reconhecimento que os precipitam em desnivelada participação ativa na vida social. Por meio do Poder Judiciário tais grupos estabelecem uma luta por reconhecimento, aprendem a se visualizar como seres capazes de gozar de determinadas propriedades ou capacidades, a referirem a si mesmos como sujeitos, por meio deste reconhecimento jurídico. Esses sujeitos sociais passam a ter consciência de serem sujeito de direitos, e, assim, a promover uma consciência de direitos. A mobilização do direito é um ato, uma postura política que, dentro de uma dinâmica de conscientização, propicia a luta pela consolidação dos direitos das classes marginalizadas, demonstrando que não só as elites mobilizam o direito, mas que as classes subalternas também recorrem aos tribunais. A mobilização do direito, nesses casos, não exemplifica apenas mais um uso estratégico da lei, envolve as interações dos vários atores do campo jurídico, os seus reflexos na sociedade não devem ser medidos apenas através do ganho da causa, mas, sim, por todas as circunstâncias que ela engendra, pelos diferentes efeitos que causa, pela política de reconhecimento que ela promove, pelos efeitos institucionais e sociais gerados por ela.
A decisão do STF foi por enquadrar as práticas homofóbicas e transfóbicas nas espécies de racismo, visualizado em sua dimensão social, como ideologia segregacionista que se baseia na defesa de inferioridade de um grupo em relação a outro. Tal atuação demonstra que o Judiciário vem assumindo um papel estratégico na resolução de questões-chave, promovendo o engajamento e o fortalecimento de determinadas lutas, influenciando suas estratégias. Os tribunais, dessa forma, constituem vivências sociais, reafirmam identidades, promovem o reconhecimento de grupos marginalizados por parte do direito a partir das decisões favoráveis a eles. Mobilizar o direito, portanto, não é uma expressão de fragilidade democrática, mas, sim, de um reconhecimento cívico, os indivíduos passam a se reconhecer como cidadãos, assim, é um indicador de vigor democrático, de medida da vitalidade e não da fragilidade da democracia, empoderando e promovendo a autoestima da população LGBT ao publicizar suas demandas.
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