Total de visualizações de página (desde out/2009)

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

A luta pela efetivação de direitos, assegurar o espaço dos possíveis ou ativismo judicial?


  O julgado da ADI 4.277, versa sobre uma questão ainda latente na atualidade: o reconhecimento de direitos para a união homoafetiva. Tal conflito chegou ao STF por meio do pedido da ABGLT (Associação Brasileira de Gays Lésbicas e Transgêneros) que vivendo em um país extremamente repressivo, preconceituoso, no qual os índices de violência contra a comunidade homoafetiva se assemelham a países islâmicos-locais em que a homossexualidade é expressamente proibida- possuem direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, a integridade física, restringidos todos os dias por conta das agressões tanto verbais quanto físicas. A comunidade LGBTQIA+ não possuía garantias jurídicas nem para existir com segurança, consequentemente, muito menos para ter garantido o caráter de união estável a seus relacionamentos, mesmo que esses sejam análogos aos heteronormativos. Seus integrantes lutavam, e infelizmente, ainda lutam para existir em paz, para poderem andar na rua sem medo da violência, que tenta os coagir a não expressar sua sexualidade. É nesse contexto que a ABGLT, pleiteando que o conflito presente no campo social fosse transposto para o campo jurídico, e desse modo, pudesse assegurar, para a população homoafetiva que direitos, já há muito assegurados para a população heteronormativa, logo existentes no espaço dos possíveis, só não reiterados para essa comunidade que ainda carece de proteção jurídica, fossem efetivados. 

Tal questão chega ao campo jurídico pela demanda popular, desconfigurando o que alguns denominam de ativismo judicial, já que a Suprema Corte do país foi instigada a tratar do tema após essa mobilização social. O direito foi provocado pela população que sem amparo algum precisou recorrer ao campo jurídico, tendo em vista que a questão é negligenciada no âmbito legislativo, obrigando sua migração para o Judiciário, o que foi denominado por Antoine Garapon de magistratura do sujeito, pois busca-se o direito mediante a crise da representação política, a qual mostrou-se como causa para a omissão legislativa sobre pautas de minorias. A efetivação de direitos existentes no espaço dos possíveis, mas destinados a grupos marginalizados, tem sido algo infactível no Brasil atual, e a mobilização do STF para debater acerca do reconhecimento de direitos à união homoafetiva é um retrato dessa tentativa do campo social em afirmar o que é dado pela própria Constituição Federal como espaço dos possíveis.   

No entanto, isso não se dá de maneira natural, uma vez que grupos contrários, movidos pelo habitus heterossexual buscam a perpetuação de seus costumes, e sendo assim se posicionam de forma contrária a equiparação de união heteronormativa a uma homoafetiva, grupos esses que até então tinham seus interesses assegurados inclusive pela perspectiva jurídica, tendo em vista que durante muito tempo possuíram o direito de dizer o direito, e assim o fizeram. Como consequência, seus ideais foram aqueles que ditaram as normas, isso, de certo modo, até justifica a dificuldade de pautas como essa chegarem as instâncias legislativas, pois são ignoradas pela maioria dos parlamentares que se encontram dentro desse habitus homofóbico, o qual se recusa a assegurar direitos para a comunidade homossexual, se pautando, principalmente, no artigo 226 o qual estabelece a união estável, como relação entre homem e mulher. Argumentando contra isso, o ministro Ayres Britto, mostra que o expresso no artigo o está, justamente, para combater esse ideário patriarcal que desigualava o homem e a mulher dentro do relacionamento, a redação foi realizada com o intuito de proteger a autonomia da mulher dentro da relação, evidenciando que ambas as partes estariam em caráter de igualdade. Tendo isso em vista, é inviável pautar-se nesse argumento para vedar a constituição de união estável entre pessoas do mesmo gênero. 

Tais fatos evidenciam que mesmo inseridos em um contexto majoritariamente averso a consagração de direitos para uniões homoafetivas, o STF entendeu que os direitos destinados a união heterossexual deveriam sim ser transpostos de modo equânime a união entre pessoas de mesmo sexo. Baseando a decisão na interpretação da Constituição Federal que veda o preconceito em seu artigo 3°, inciso IV, nos princípios da dignidade da pessoa humana (art.1°, inciso III), na liberdade sexual que constitui também a autonomia da vontade, na proteção da intimidade e da vida privada (art.5°, inciso X) e na interpretação que a definição de família não poderia ficar reduzida a casais heteros sob pena de violar os princípios supracitados, e entendendo que o todos possuem o direito subjetivo de constituir uma família. A referida decisão protege o ideal democrático de respeito a pluralidade social, política e cultural e fornece previsão legal para que a democracia seja exercida pelos cidadãos de forma mais igualitária, já que essa parte da população que era discriminada e impedida de exercer direitos assegurados a casais heteros em questões fundantes como as previdenciárias, as relacionadas a moradia e saúde. Após a ADI, foi conseguida a equiparação de direitos a todas as formas de família, desse modo, é notável o avanço a um caminho para uma maior igualdade material entre esses grupos diversos, o que proporciona a aplicação, na realidade, de preceitos democráticos, pois é sabido que o poder econômico interfere na possibilidade de exercício da cidadania. 

Com isso, percebe-se que a ocorrência da ADI 4.277 exemplifica também, o conceito de historicização da norma, cunhado por Pierre Bordieu, mostrando que essas devem estar de acordo com a realidade atual, precisam estar equiparadas com o tempo histórico em que são aplicadas, não é possível que a legislação seja imutável frente a tantas lutas e mudanças existentes na sociedade, todo esse julgado demonstrou como expressões com sentido amplo e vago puderam ser aplicadas concretamente pelo tribunal, e direcionadas a sociedade atual, através da interpretação da Constituição pela Suprema Corte. 

Em suma, a decisão tomada pela concessão de direitos a união homoafetiva e sua caracterização como união estável, foi alcançada por conta da demanda popular, o judiciário foi instigado a atuar devido a movimentação do campo social que o mobilizou, reiterando direitos já previstos pela Constituição. Desse modo, o Judiciário atuou dentro de suas competências ao atender a população que o acionou por conta da omissão legislativa acerca do tema, desconfigurando o que alguns denominam de ativismo judicial (abuso da prerrogativa por parte do Judiciário), já que somente foi assegurado a comunidade LGBTQIA+ direitos que já se encontravam no espaço dos possíveis, uma vez que eram previstos para casais heteronormativos. 

Marina Cassaro 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário