O ramo jurídico, suscetível a variados mecanismos interpretativos concernentes à sua natureza estrutural, inspira renomados intelectuais, tais quais Pierre Bourdieu, a realizarem valiosas análises sobre inerências e peculiaridades do meio. Torna-se possível, desse modo, o estabelecimento de conexões entre esses estudos e recentes decisões e questões polêmicas do ordenamento jurídico brasileiro.
Sob esse prisma, cita-se, em um primeiro plano, a Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) utilizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em virtude do desrespeito aos princípios constitucionais do artigo 1°, referente à dignidade da pessoa humana, do artigo 6° (caput), do artigo 5°, tratante da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, bem como do artigo 196, no que tange ao direito à saúde. O causador de tal lesão refere-se ao conjunto normativo pelos arts. 124, 126 e 128 (incisos I e II) do Código Penal, já que juízes e tribunais vêm usufruindo inspiração deste em detrimento da Constituição Federal quando o tema circunda a proibição de se efetuar a antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos.
Nesse sentido, pode-se relacionar a ideia de Bourdieu nesse aspecto, haja vista sua linha de raciocínio voltar-se contra Hans Kelsen e seus seguidores no momento em que os mencionados aludem à independência do Direito em face das forças externas, perspectiva que, de acordo com o pensador e com o caso, não são concretas, quando há a percepção de divergentes forças, isto é, diferentes agentes, tentando adaptar o ordenamento jurídico segundo seus próprios fundamentos e pressões sociais. Uma possível exemplificação do decorrido verifica-se na interpretação de Barroso, na qual buscou-se demonstrar que a antecipação terapêutica do parto não consubstancia aborto, em decorrência do último abranger a vida extra-uterina em potencial, o que não ocorre com o ser anencéfalo.
Ademais, ao defender a dinâmica do Direito como um engendramento da lógica positiva da ciência com a lógica normativa da moral, perpetua-se, assim, uma hierarquização de campo, inibitória de discrepantes interpretações, como ocorre na situação brasileira, da qual o conservadorismo e a moral judaico-cristã são preponderantes nos cidadãos do país, fazendo com que determinada visão de aborto, geralmente em um nível de defesa da vida do recém-nascido, seja imposta. Daí o uso da expressão "espaço dos possíveis" pelo autor, ressaltando os constantes limites à hermenêutica do campo jurídico, ainda mais na visualização de mandamentos religiosos contrastando com princípios feministas, defensores estes do direito à saúde da gestante, a qual torna-se prejudicada pela permanência do feto anencéfalo, nos âmbitos físico, moral e psicológico.
No entanto, como consequência direta de um maior atendimento do meio jurídico aos anseios hodiernos populacionais, os "operadores" do Direito, durante a atividade prática do mesmo, imbuem-se de uma adaptação das normas ao caso concreto, fazendo com que exista uma luta simbólica de interpretações, sendo uma baseada na teoria pura enquanto a outra nos aspectos circunstanciais da realidade. É clarificada essa situação quando Nelson Hungria, em "Comentários ao Código Penal", coloca que "não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher." Outrossim, há a interpretação de que não se viabiliza qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade à mulher gestante, constituindo o parto um alto risco.
Percebe-se, pois, como o Direito é suscetível à atuação das forças externas e da lógica normativa da moral, características estas promotoras da transformação do ordenamento jurídico em um campo de enfrentamento hermenêutico.
Giovanna Siessere Gugelmin - Direito - Matutino - Turma XXXV.