Pierre Bordieu, na obra O poder simbólico, discorre acerca do formalismo e do instrumentalismo do campo jurídico . Segundo o autor, o formalismo, exercido pelos doutrinadores, entende o direito como força independente e fundamental em si mesmo; enquanto o instrumentalismo, exercido pelos operadores do direito, tem um papel casuístico o qual está a serviço da classe dominante.
Diante disso, a interpretação do direito está a mercê de uma concorrência entre a divisão do trabalho jurídico, uma vez a hermenêutica representa uma força simbólica derivada das normas. Assim, existe no ordenamento uma construção gramatical voltada para a neutralização e a universalização, capaz de despersonalizar o sujeito passivo e criar uma imagem imparcial e objetiva do sujeito enunciador. Além disso, a universalização não abre espaços a variações individuais, fazendo com que a norma seja uma aplicação geral. A força simbólica do direito se encontra justamente nesses dois pontos. Ao empregar técnicas de hermenêutica eleva-se, ou rebaixa-se, a capacidade da norma jurídica, o que gera diferentes aplicações e realidades.
A crítica tecida aqui a uma teoria “pura” do direito, cujo maior expoente é Hans Kelsen, vai no sentido de que o direito não possui nele mesmo seus próprios fundamentos porque tem uma autonomia relativa e permeável a dinâmica social. Prova disso é o fenômeno da judicialização, o qual vem ganhando muita força no cenário brasileiro. Como elucidado por Luiz Roberto Barroso, em Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, o poder judiciário vem sofrendo fortes influências das demandas emanadas da população, especialmente dos movimentos sociais de caráter contra-hegemônico. Isso é evidenciado ao observar as ações de controle de constitucionalidade exercidas pelo Supremo Tribunal Federal, como por exemplo a Arguição de Descomprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, cuja matéria é interrupção da gravidez de feto anencéfalo.
No referido julgado, decidiu-se que a interrupção da gravidez decorrente da anencefalia do cérebro não seriam enquadrados nos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal brasileiro, o qual disciplina pena de quatro anos de prisão para mulheres que praticarem tal ato. Além disso, usou-se também de princípios constitucionais, como dignidade humana, para aprovação do enunciado. É possível observar, portanto, que não se trata de uma nova elaboração legislativa, mas sim de um emprego diferente da interpretação do ordenamento jurídico.
Como trata-se de uma matéria de importância feminina, grupo historicamente inferiorizado, percebe-se que há polêmica. O corpo da mulher continua sendo objeto de disciplina do Estado e até por isso o aborto é criminalizado, numa prática um tanto contraditória em um ordenamento que tipifica o feminicídio e o promove logo na sequência. E, embora a conquista da ADPF 54 tenha sido importante, o deputado federal José Aristodemo Pinotti defende que a terminologia aborto não cabe aos casos de anencefalia do feto, uma vez que não existe potencialidade de vida extrauterina. Destarte, a antecipação terapêutica do parto tem diferença substancial do aborto.
Recentemente, correu na Câmara dos Deputados o Projeto de Emenda Constitucional 181, o qual objetiva criminalizar formas de aborto já permitidas por lei. Essa PEC vem como resposta a 1º turma do Supremo Tribunal Federal que, em decisão histórica, decidiu não considerar crime a interrupção no primeiro trimestre de gestação independente dos motivos que levaram a gestante a tal ato. Observa-se aqui um retrocesso, desde a conquista da interrupção em caso de anencefalia de 2012. Diante disso, enxergar o direito unicamente como uma ciência com fim em si mesmo não tem diálogo com a realidade. A ferramenta jurídica é utilizada tanto para fins hegemônicos, como contra-hegemônicos - referindo-se a emancipação social de Boaventura de Sousa Santos. Os elementos sociológicos que permeiam a força do direito são claros, e precisam ser levados em consideração para um entendimento claro da influência do direito na dinâmica social, bem como, e principalmente, da influência da dinâmica social no direito.
Daniela Cristina de Oliveira Balduino, 1º ano - diurno.
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