domingo, 6 de dezembro de 2015

Bourdieu e ADPF 54

Pierre Bourdieu foi um sociólogo francês nascido na primeira metade do século XX. Em sua obra intitulada “O Poder Simbólico”, Bourdieu fala sobre o poder simbólico, do qual o Direito faz parte, que seria toda força que não está materializada concretamente mas que exerce pelo poder de alguma norma, de algum fato que distingue um ator social, uma instituição social ou um grupo. Fala também sobre a questão de que o Direito deve evitar o instrumentalismo (ideia de Direito a serviço da classe dominante), assim como o formalismo (entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais). 

Frente ao pensamento de Bourdieu, traz-se a tona a questão do aborto de fetos anencéfalos. No dia 17 de junho de 2004 a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde formalizou a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 54, visando com que fosse declarada a inconstitucionalidade da tipificação do aborto de anencéfalos como crime de acordo com o Código Penal brasileiro.

Lendo os pareceres em relação a ADPF, fica claro que a principal questão para o aborto de anencéfalos, assim como qualquer tipo de aborto, não ser permitida no Brasil é a questão religiosa. A religião no Brasil, principalmente a católica, é uma grande influenciadora do Direito. Apesar de em teoria o Estado ser laico, nossas leis não ultrapassam aquilo estabelecido pela religião. Nesse caso, o Direito estaria agindo com o instrumentalismo descrito e criticado por Bourdieu, agindo a serviço da classe dominante, fortemente vinculada ao catolicismo. Ainda em relação ao instrumentalismo, é importante falar que a proibição do aborto de anencéfalos também age a favor da classe dominante ao passo que no Brasil é uma realidade que as mulheres da elite abortam em clínicas clandestinas, já que têm dinheiro, já as de classes baixas morrem na tentativa. Quanto ao formalismo, o Direito não deve nunca ser aplicado apenas de maneira formal, ele depende das forças externas a ele e deve ser atento as pressões e necessidades sociais. Na página 220 de seu texto, Bourdieu escreve que “os juristas e outros teóricos do direito tendem a puxar o direito no sentido da teoria pura, quer dizer, ordenada em sistema autônomo e autossuficiente, e expurgado, por uma reflexão firmada em considerações de coerência e de justiça, de todas as incertezas ou lacunas ligadas à sua gênese prática; os juízes ordinários e outros práticos, mais atentos às aplicações que dele podem ser feitas em situações concretas, orientam-no para uma espécie de casuística das situações concretas”.

Outro fato a ser citado é o poder simbólico exercido pela Igreja Católica. Grande doutrinadora de opiniões e comportamentos, sempre condenou o aborto. No caso da ADPF 54 acabou-se por enfrentar em parte esse poder da Igreja Católica confrontando-o com embasamento médico. Nos pareceres da ADPF 54 é citado Nelson Hungria em “Comentários ao Código Penal” que diz que “Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto.”

Ao julgar-se procedente a ADPF 54 deu-se prosseguimento àquilo defendido por Bourdieu de afastar o Direito do formalismo e instrumentalismo, visando a defesa de diversos outros preceitos fundamentais da constituição e afastando o direito do poder simbólico da religião. A descriminalização do aborto de anencéfalos foi um importante passo para o Direito brasileiro, permitindo a escolha de uma mãe de interromper a gestação de um feto que não vingaria quando nascesse, podendo causar ainda mais dor. Apesar do avanço, ainda há muito para se conquistar no campo do Direito visando inclusive aquilo defendido por Bourdieu. O aborto acontece e continuará acontecendo. Precisamos falar sobre ele no campo social e jurídico.
Com a relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, fez possível no Brasil a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos. Insta ressaltar que a decisão não descriminalizou o aborto, mas, apenas, não considerou que a interrupção da gestação de fetos anencéfalos não se enquadra como aborto, tendo em vista que não há esperança para a continuidade da vida desse feto. Nas palavras do relator: "Aborto é crime contra vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal".
Contudo, até a tomada de decisão ocorreu intenso debate, cujo teor apresentou as mais variadas sortes. Primordialmente, foram dados argumentos religiosos, ferindo, portanto, a laicidade estatal. Além, como afirma Bourdieu, o Direito deve evitar o instrumentalismo, isto é,  a característica de servir de ferramenta para a classe dominante. No caso, não há classe dominante, mas, sim, classe majoritária: os religiosos. É sabido que o número de cidadãos que não possuem credo é imensamente inferior àqueles possuidores de qualquer tipo de crença religiosa. Ademais, o sociólogo francês afirma que o Direito deve evitar o formalismo.
Não obstante, o autor é enfático ao relatar que  existe uma ilusão da independência do Direito em relação ás forças sociais e externas. Tratando-se da ADPF 54, é inviável crer que não houve juízo de cunho ético por parte dos ministros, suas crenças pessoais e, forçosamente, os valores que carregam foram fundamentais para a decisão. Porém, deve-se ter em mente que, apesar de tudo, a decisão é jurídica, por isso, valores pessoais não podem exercer grande influência.
Assim, a análise deste julgado sob a ótica desse autor especificamente promove intenso debate, das mais variadas sorte. No que tange á utilização do Direito, a como as decisões são obtidas e, mais importante, qual é o espaço em que o Direito deve agir.

Parece, mas não é!


                   O sociólogo Pierre Bourdieu disserta acerca do Direito como a expressão de um campo autônomo, relativamente, e carregador de elementos próprios que propiciam uma distinção. Nesse sentido, há certa hierarquização dentro do próprio campo jurídico que inibe divergências profundas, pois há um “espaço dos possíveis”, delineado por doutrinadores, capaz de permitir tanto avanços quanto retrocessos.
                   Destarte, as soluções para os problemas da sociedade estão dentro do próprio campo, ou seja, não são os movimentos sociais que pautam a mudança do Direito, pelo contrário, as novas ideias se processam pelos instrumento do campo jurídico. Esses são frutos da moral, do tempo presente, que tenta caminhar para a razão (ciência), no entanto, dentro do espaço dos possíveis é possível caminhar para o lado oposto.
                   Posto isso, aborda-se a questão da ADPF de nº 54 que diz respeito à legalização do aborto de anencéfalos. Dessa forma, é possível fazer em tal tema um paralelo com o Ativismo Judicial apresentado por Barroso, contudo no presente texto dedica-se à questão da solução dada e relacionada aos limites do campo jurídico.
                   Assim, a constitucionalização, do aborto referido, veio atrelada não apenas ao conhecimento do Direito, mas também com laudos médicos e psicológicos. Nesse sentido, há certa interdependência na decisão do Judiciário que influencia o espaço das possíveis soluções, mas sobretudo caminha com a moral da sociedade, ou seja, não permite divergências profundas com o consentimento predominante e, por fim, o Direito apenas se travesti de universal.

O Espaço do Possíveis e a ADPF 54/DF

   Examinaremos a ADPF 54/DF que no ano de 2012, por maioria de votos julgou procedente a ação que declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigo 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, à luz do admirável sociólogo francês Pierre Bourdieu. Faremos algumas considerações, tendo como principal objetivo não apenas considerações do julgado, mas examinar o que de fato a decisão do STF significa para a sociedade como um todo.
   A começar pelo julgado que levou oito anos para chegar ao plenário do STF, para finalmente ser decidido, algo de relevante interesse nacional, que é a criminalização ou não do aborto de anencéfalos. De um lado a Igreja e seus fiéis - não só a católica, mas todos as que declaram ter uma fé cristã - que exercem na sociedade uma força em grande porção dos brasileiros e do outro o direito de escolha da mãe que com o aparato do Estado que em tese (constitucionalmente) se diz laico juntamente com o movimento das feministas.
   Muito se pauta que o aborto, de qualquer natureza ou justificativa, é um ataque à vida, condenável e repudiável em qualquer hipótese, mas e quando se trata de um ser humano que está condenado à morte logo depois do parto como é o caso dos fetos anencéfalos? A posição da maioria dos conservadores e seguidores de qualquer religião que seja, se mantém intacta, ou seja, jamais se deve abortar uma vida. Muito embora muitos dos nossos preceitos morais e valores estejam baseado numa ética cristã, vivemos em um Estado laico e como muitos sabem, isso significa que o Estado tem numa posição neutra no campo religioso, portanto apesar da influência religiosa, o Brasil em suas decisões não se deve alicerçar na religião ou seus preceitos. Como dito pelo Ministro Celso de Mello o Direito na nossa república, não se submete à religião. 
   Desta forma, a deliberação dos Ministros giravam em torno da inconstitucionalidade do aborto de fetos anencéfalos. Apesar do infortúnio da mãe em gerar um feto com pouquíssimas chances de vida, existe sobretudo uma vida, como já tido com chances mínimas de após o parto um longo período de vida, mas ainda assim é resguardado a ele o Direito à vida, mas temos também a mãe que como a maioria delas deseja ter um filho saudável e que consiga ter uma vida digna, no entanto teve a infelicidade de carregar no útero um ser condenado à morte, temos aí então um risco de prejuízo não só emocional mas também à dignidade da pessoa humana, por todo o abalo e um possível trauma psicológico de ter que levar até o fim a gestação de um feto anencéfalo.
  Bourdieu dizia que o Direito se pauta numa lógica científica e uma lógica moral, desse modo se reconhece que o Direito se impõe necessariamente e de forma simultânea  numa lógica e numa moral, noutros termos temos a razão e a moral em lados opostos e entre eles temos o espaço dos possíveis, a qual a tomada de decisões se faz neste espaço. Diante disso, quando se trata de temas como a da ADPF 54/DF é neste espaço dos possíveis é que temos algumas soluções, com muitos embates e discussões para se determinar qual a força que "vencerá" se é a lógica positiva da razão ou se é a lógica positiva da moral. Bourdieu formula o conceito de habitus, que em poucas palavras dão a cada indivíduo diversas visões de mundo o que acarreta em diferentes disposições para a ação, internalizando características de uma força simbólica, que não lhe são percebidas.
  Contudo através do conceito de habitus de Bourdieu que se consiga explicar tantas controvérsias a despeito do tema do julgado.
Destarte, a decisão do STF que por anos fora aguardada, e que ainda se tem muita discussão, percebemos que a vida da mãe, a vontade e acima de tudo a dignidade dela fora respeitada, pois os reflexos da não interrupção da gestação de um feto anencéfalo, podem chegar até ser irreversíveis, pelo fato da lei não lhe permitir o aborto de alguém que está fadado à morte, portanto concluo que a decisão fora acertada, não porque somos um Estado laico, mas principalmente por resguardar o direito de levar adiante a sua escolha, segundo seus próprios habitus, sem punição.




Lemuel Dias
1º ano Direito Noturno


O Direito não é um campo fechado

     A ADPF 54 alega desrespeito a princípios (como o da dignidade da pessoa humana, legalidade, liberdade, autonomia da vontade e direito à saúde) nos casos de proibição da interrupção da gravidez de anencéfalos. O relator afirma que muitos órgãos vinham utilizando os art. 124 e 126 do Código Penal, que tratam sobre aborto, em detrimento da Constituição Federal, para proibir a antecipação terapêutica do parto no caso de fetos anencéfalos. A Arguição busca demonstrar que antecipação terapêutica do parto e aborto não são sinônimos, pois, no primeiro caso, não há expectativa de vida para o feto. Portanto, configura-se inconstitucional o ato de usar do Código Penal para classificar este ato como criminoso e foi essa a decisão do STF.
     Essa decisão se trata de um grande avanço para o Direito brasileiro, mas ainda há muito para se avançar. As decisões da mulher têm que ser o fator principal, enquanto não prejudicarem a vida do feto. Para a medicina, até um certo período da gestação, o feto não é considerado como vida, portanto, nesse período, a decisão da mulher deveria ser a definitiva. Contudo, pensando-se no quadro brasileiro atual, em que há muitos conflitos religiosos e morais conservadores envolvidos, a liberalização do aborto de forma geral não está dentro do “espaço dos possíveis” pensado por Bourdieu.
     Este autor entende “espaço dos possíveis” como uma adequação entre a dinâmica social e a lógica interna do campo, o limite entre a ciência e a moral. No caso do aborto, limite entre a ciência jurídica e a moral social. Campo, para ele, é o espaço que constitui uma autonomia relativa, com valores, códigos, habitus, recursos e capital simbólico específicos. O Direito, por exemplo, é um campo, e um dos mais importantes, pois é nele que se define aquilo que normatiza os modos de conduta das pessoas de um modo geral. Ele critica Kelsen, pois este afirma que a autonomia do campo jurídico é absoluta, e não relativa. Bourdieu argumenta ser relativa, pois há influência de forças externas nas decisões proferidas dentro do campo jurídico.
     Como exemplo temos a influência da medicina, da psicologia e do pensamento da sociedade em geral na decisão da ADPF 54 em questão. Usa-se da medicina para definir a falta de perspectiva de vida para o anencéfalo; da psicologia para comprovar os danos causados à mulher obrigada a carregar por nove meses um feto que sabe que sairá dela morto; e do pensamento da sociedade em geral para ponderar sobre quais mudanças serão passíveis de aceitação e quais levarão a uma rejeição total. Isso demonstra que o Direito não é um campo fechado, mas sim relativamente aberto a influências externas.
     Essas influências não conseguem penetrar de forma abrangente, pois a própria hierarquia do campo inibe divergências muito profundas. Tudo caminha dentro do espaço dos possíveis, não é possível uma alteração de conduta internamente, que não terá aplicação externamente. É preciso ponderar os dois âmbitos, externo e interno, para se formar uma decisão. 

Beatriz Mellin Campos Azevedo - diurno

O espaço dos possíveis

        Bourdieu foi um sociólogo francês compreendia a sociedade a partir de campos que se inter relacionam, e ao mesmo tempo possuem certa autonomia, gerando uma dinâmica própria. Há, de acordo com o sociólogo, um evidente embate pela ocupação dos espaços.
Para ele,  a ciência do Direito deve evitar o instrumentalismo – ideia do direito a serviço da classe dominante – e o formalismo – ideia do direito como força autônoma em face das pressões sociais, sendo uma ciência autônoma, mas ao mesmo tempo ligada a diversos outros campos, devido à concorrência de forças e lutas simbólicas. Conclui, com isso, que o Direito pode servir como instrumento para a mudança social apesar de apontar os limites devido às interpretações, já que elas ocorrem apenas dentro do espaço dos possíveis.
        Deste modo, a ADPF 54/DF, que trata o aborto de anencéfalos como antecipação do parto, diferenciando-a do aborto, demonstra bem o pensamento de Bourdieu. Este aborda em seu texto “A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico”, os espaços possíveis na época em que o Código Penal foi sancionado, momento em que não haviam meios de comprovação da anencefalia. Dessa forma, a medicina foi judicializada: passou a ser uma decisão não apenas do médico e da gestante, mas também do magistrado, o qual, dessa maneira, implica no Direito definindo o que é e o que não é vida.
     Ele aborda também a luta simbólica do campo jurídico, que se dá entre as normas positivadas e os operadores do direito, além de ocorrer de forma dialética, entre as fontes do direito – a doutrina e a jurisprudência – e a interpretação, adequação à realidade – feita pelos juízes.
       A relativa autonomia do Direito é também neste caso percebida, já que o Superior Tribunal Federal depende da opinião dos juristas e também do laudo médico, ou seja, campos jurídico e científico. Há, assim, uma interação entre os campos, porém o efeito do campo jurídico é maior do que os outros, já que são eles que possuem “a palavra final” sobre a vida e ausência de vida em um feto. No entanto, a legitimidade da sentença, segundo Bourdieu, se dá pelo uso da razão; isto é percebido ao longo da ADPF com afirmações como a de que o feto não tem perspectiva de vida fora do útero.
      A problemática no debate se dá pela discussão pautada na questão “existe ou não vida no feto?”, o que é uma discussão moral, já que tanto o campo médico quanto o jurídico já possuem respostas para isso. Vê-se, assim, que o Direito ainda está muito próximo do espaço possível da moral, mas já avança para a razão, como no argumento do juiz sobre a autodeterminação da mulher.
        A legalização do aborto de anencéfalos seria, assim, o momento de conflito da moral com a razão; seria um momento anterior que conduziria à legalização do aborto como um todo, alargando-se o espaço dos possíveis ao abordar também questões como os direitos da mulher e da disposição do próprio corpo.

Letícia Solia
1º ano - Direito diurno

Desenvolvimento humano da sociedade e a ampliação dos campos

Um assunto ainda muito polêmico, e que gera varias divergências quando abordado, é o do aborto de fetos anencéfalos. Segundo a ADPF 54/DF citada como caso base, coube à instância judiciária decidir sobre o caso do aborto requerido comprovada a anencefalia. É possível, com os avanços tecnológicos e médicos da atualidade, garantir com total certeza os resultados de testes que comprovem o caso da má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, sendo assim, o feto não tem sua formação cerebral completa e não pode ser considerado plenamente saudável.
Como o que se encontra no ventre da mulher é um feto que, de todas as maneiras, já não mais possui vida, ou, se realizado o parto, não sobreviverá por mais de algumas horas, a decisão da continuidade da gravidez deve ser tomada pela mãe que o carrega. É importante ressaltar tal importância, pois, continuada a gravidez em tal caso, a mulher carregará por nove meses um feto que sabe que não conseguirá sobreviver, causando dor, angustia, sofrimento, aumentando os riscos de desenvolvimento ou agravamento de depressão; quando se negligenciam tais casos é posto de lado o direito da mulher de livre escolha sobre seu corpo, colocando em risco também sua saúde física e mental, além de outras complicações.
Todo o argumento para a continuidade da gestação está baseado no Código Penal brasileiro, já muito obsoleto para a época na qual é aplicado, pois, quando elaborado, não levava em conta os avanços da medicina que atualmente existem, que permitem afirmar com certeza o quadro de anencefalia. Além do empecilho legal, há o religioso, indo contra a premissa de um estado laico, que, supostamente, coloca a vida como bem maior e superior diante de um caso no qual não há possibilidade de vida do feto, mas também não leva em conta a qualidade de vida da gestante.
É possível relacionar tal caso com algumas teorias elaboradas pelo sociólogo Pierre Bourdieu, atestando um quadro de judicialização da medicina, no qual foi feita uma intervenção do judiciário numa questão que a princípio é da área da medicina, sendo assim, o conceito de vida fica decidido pelo direito, e não ao profissional médio. No direito, é aplicado o conceito de “habitus”, no qual as opiniões dos juristas são muito semelhantes entre si, não havendo espaço, muitas vezes, para mudanças. Mas, com a demanda atual, é possível notar uma ampliação do espaço dos possíveis, com a expansão dos campos participantes nas decisões. Há também a condição de proximidade de interesses, o “ethos” compartilhado, potencializada pela afinidade de “habitus”, que cria um quadro de obstáculos para a atuação de decisões que tenham pouco respaldo nas estruturas dominantes, por isso, dado um contexto de sociedade conservadora, é ainda muito difícil mudar paradigmas em decisões casuais pessoais que geram um debate polêmico.
Por fim, podemos versar sobre as limitações e características de certos campos que compõem a sociedade. Dado o caso apresentado, é explicita coparticipação do campo judicial e do médico, sendo assim, é visto que um campo não está totalmente isolado e isento de forças externas a seus limites, mas sim, cada vez mais, há uma inter-relação entre campos diferentes conforme a necessidade da sociedade, e sua modernidade, que deveriam garantir sempre melhorias sociais.

Júlia Veiga Camacho

1º ano direito - diurno

Indignação e tolerância: a questão do aborto e a constituição do campo jurídico

O autor Pierre Bourdieu afirma ser o Direito parte do poder simbólico; ou seja, parte de uma força que, apesar de não-materializada concretamente, faz-se existente pelo poder de normas ou até mesmo fatos que reconhecem um ator ou uma instituição social. Ainda, defende que não há apenas um poder de classe imposto. No mérito do campo jurídico, o que o distingue dos demais campos, apresentando uma certa autonomia – embora não completa – são seus elementos próprios e singulares. A crítica feita a Hans Kelsen e seus adeptos se apresenta, justamente, por esse viés: há a falsa percepção de que este campo explica-se por si só, “completamente independente dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento” (BORDIEU, 1989, p. 209). A abordagem em relação à ótica de classe deve ser também destacada. Não há tão-só uma classe burguesa dominante: o que existem são frações em luta pela dominação.  Portanto, em sua perspectiva, não é um instrumento de classe – pura expressão da dinâmica social e sua evolução –, nem traduz-se em autonomia plena.
É fato que o Direito transforma-se de acordo com o processo histórico, em uma necessidade de adaptação às demandas vigentes e a nova realidade social. Com essa lógica interna predisposta a mudanças, há a delimitação em cada momento do “espaço dos possíveis” e, consequentemente, do universo das soluções propriamente jurídicas. Tem-se uma certa influência e abordagem feita pelo campo jurídico aos demais campos científicos, à medida que cria um paradoxo de autonomia e dependência daquele. Se, por um lado, há uma expansão do campo jurídico – conferindo-lhe certo aspecto autônomo e independente –, por outro, amarra-o a outros campos, uma vez que, é inevitável uma sujeição à interferência externa para as própria aplicação.
A ADPF 54/DF, ao tratar da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, retrata que:
Em 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS formalizou a argüição de descumprimento de preceito fundamental (...) sob o ângulo da admissibilidade, no cabeçalho da petição inicial, apontou, como envolvidos, os preceitos dos artigos 1º, IV – dignidade da pessoa humana –, 5º, II - princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade –, 6º, cabeça, e 196 – direito à saúde –, todos da Carta da República e, como ato do Poder Público, causador da lesão, o conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Afirmou, mais, que diversos órgãos investidos do ofício judicante – juízes e tribunais – vêm extraindo do Código Penal, em detrimento da Constituição Federal, dos princípios contidos nos textos mencionados, a proibição de se efetuar a antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos.
Há, além disso, fundamentações em especialistas – no caso, o Doutor Luís Roberto Barroso – para atestar que a antecipação terapêutica do parto não consubstancia aborto, no que este envolve a vida extra-uterina em potencial. Sustentou-se no artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, que dispõe a legitimação ativa daqueles que “a têm para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade”.
A questão do aborto carrega consigo na sociedade brasileira uma expressão dupla de indignação e tolerância. Nas maioria das vezes em que é praticado, é feito de maneira secreta: há uma espécie de oposição entre o caráter “público e coletivo” e o caráter “vergonhoso e clandestino” – tal embate pode referir-se a várias ações e formas de poder. O próprio autor estudado, ao pesquisar acerca da sociedade cabila, conjecturou a oposição entre homens e mulheres, entre a sociedade masculina e feminina: os homens possuem o poder oficial sobre aquilo que é coletivo e público, enquanto as mulheres detêm um poder “oculto”, oficioso. Pode-se afirmar, então, que em sociedades tradicionais o aborto é oficialmente condenado, todavia, oficiosamente tolerado – verifica-se no contexto do universo feminino, em que a maior parcela dos indivíduos não têm interesse em tomar conhecimento do fato, preferindo a cegueira perante o ocorrido.
Outro pronto necessário de ser abordado diz respeito à moral cristã existente e toda sua carga de influência na forma de pensar e agir de uma grande parcela da população. O debate, então, fica limitado. Bordieu aborda tal questão como “ethos compartilhado”, que explica a expressão de certos valores dominantes na sociedade. Soma-se a isso, o efeito simbólico explicitado anteriormente: há uma certa admiração e reverência dos cidadãos aos ministros e pensadores do Direito, conferindo a eles um grau de veracidade e conformidade para com suas opiniões.

Isabelle Elias Franco de Almeida
1˚ ano, direito (noturno) – aula 3.1

A constituição do campo jurídico: da rigidez à nova dimensão

É constantemente debatido acerca da constituição do campo jurídico, o que cabe à sua legitimidade, seu alcance, sua racionalização, interpretação e no que tange suas lutas simbólicas. Diante disso, o autor Bourdieu trata sobre toda essa sistemática vinculada ao campo jurídico e que, atualmente, vem fomentando várias discussões, sobretudo, ao caráter da contingente tomada de decisões que estão, paulatinamente, sendo pautado pelo judiciário.
Assim, em sua abordagem Bourdieu coloca que o campo jurídico possui duas lógicas em sua constituição: relações de forças expressas internamente em que conferem sua estrutura para a concorrência dos conflitos e o espaço delimitado para as soluções cabíveis ao jurídico. Este, denominado de espaço dos possíveis é produto de uma necessidade em que o Direito estabelece em juntar a lógica e a moral, sendo assim, esse espaço é pautado por delimitação construída entre a doutrina (razão) e a jurisprudência (moral – tempo presente). É com isso que os conflitos e situação atuais irão se deparar ao portar do Direito a sua recorrência.
O Direito como um fenômeno iminentemente social, é colocado a novas dimensões dentro do jurídico a fim de acompanhar a dinâmica social. Representando isso, pode-se abordar o julgado do STF pelo aborto anencéfalo em ação requerida de ADPF pelo Conselho Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) à antecipação terapêutica do parto não constataria aborto e, dessa forma, os trabalhadores da saúde que assim o fazem não deveriam ser submetidos à ação penal pelo aborto, criminalizado pelos arts. 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal. Assim, o Direito estava diante de decidir sobre o que é vida ou não, claro que, por mais que a ciência jurídica tenha sua autonomia ela não se baseia por si só, assim como acredita Kelsen, é diante disso que o Bourdieu o critica, pois é necessária a junção de razões para discutir e decidir sobre temas como estes, havendo, de certa forma, um laço moral.
O sentido da hermenêutica, para o autor, se vincula à dinâmica das lutas simbólicas que se verificam na constituição do campo jurídico. Então, por um lado se tem os juristas que abordam o Direito em sua teoria, a pôr formas a princípios e regras, elaborando assim, uma sistemática racional para uma devida aplicação. Já os magistrados, por estar constantemente ligados à prática, tendem a operacionalizar o Direito de forma à função da adaptação ao real, a acompanhar as demandas sociais e não a privar o fenômeno em um rigorismo puramente formal. Com isso, o Bourdieu relata a impossibilidade do campo jurídico se restringir apenas à sua sistemática e fazer das normas novas possibilidades a ela. Então, o espaço dos possíveis em Bourdieu não se modifica, mas o Direito apenas se estende para onde sua fonte permite, afinal, o Direito não é estático, mas se condiciona mediante as novas condutas e demandas em que a sociedade recepciona.
O autor trata sobre o veredicto que é o produto da luta simbólica no campo jurídico, dessa forma, diante da decisão (veredicto) da ADPF se verifica que, esta se vincula muito mais às atitudes éticas dos agentes do que da norma pura no Direito. A racionalização, o formalismo, a palavra autorizada, caracteriza o enquadramento às estruturas que verifica ao “novo direito” e às novas práticas em se fazerem autorizados e adentrar nas possibilidades das demandas do dinamismo social. Portanto, a constituição do campo jurídico de Bourdieu condiz com os processos e os requerimentos ao judiciário em que o país tem verificado como nas discussões de julgados da magnitude da ADPF citada.

Ana Caroline Gomes da Silva, 1º ano Direito noturno

Limitação do Direito

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 exigia a inconstitucionalidade da visão de que os abortos de anencefálicos constituiriam crime, baseado nos artigos 124, 126 e 128 do CP.
Analisando o caso prático em paralelo com as ideias de Bourdieu, vemos que o habitus jurídico, linguagem erudita, que no caso se ocupa com a definição do que seria vida, é o responsável pela força do direito. A última palavra, que acaba prevalecendo, é a jurídica, já que, o saber jurídico se projeta como elemento de distinção. Mesmo com a interação entre os campos científico e jurídico, o ultimo se projeta a uma determinada coerção. Ocorre aqui uma judicialização da medicina. O magistrado se projeta e interfere na esfera do médico paciente
Bourdieu analisa, também, o aspecto dos ethos compartilhados. A interação entre juristas e magistrados implica na tomada de decisão dominante. Eles se valem da lógica da ciência, no caso, aquilo que representa a razão; e da lógica da moral, no caso, aquilo que determinada as práticas sociais, para regular o campo jurídico. Um campo que é condicionado pelos espaços dos possíveis. Um espaço que delimita e limita o próprio direito. Um campo que só faz movimentar as questões dentro do próprio “espaço dos possíveis”. Que limita, no direito, o tema a ser debatido. Em uma primeira face, o aborto de anencefalia seria possível, visto que, não existiria vida. Na segunda, o aborto não se expandiria para outras áreas ou ocasiões, visto que, contrapor-se-ia a moral. Contrapor-se-ia a não conservação do status quo. Contrapor-se-ia a não manutenção da ordem.
Por conseguinte, apesar da questão do aborto, como dito acima, ser tratada dentro do próprio espaço dos possíveis, a ADPF 54 se lança como um instrumento que busca uma maior maleabilidade dos espaços dos possíveis, mesmo com ele entravando essa ação. Os movimentos sociais lutam, em paralelo, com os que buscam ampliar os sentidos de interpretação para alterar a dinâmica da luta simbólica.

Sobre anseios sociais, opinião pública e o STF

                Bourdieu ao tratar do campo jurídico, questiona o fato de o Direito se encontrar ora como instrumento ora como formalismo. Com isso, traz a questão do Poder Simbólico, e o defini como o poder invisível que pode unicamente ser exercido com a cumplicidade daqueles que sob eles estão sujeitos ou mesmo aqueles que o exercem. Assim, podemos observar a decisão do Supremo que declarou a inconstitucionalidade segundo a qual a interrupção da gravidez do feto anencefálico é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Assim, por maioria o STF decidiu que não é crime interromper a gravidez em caso de anencefalia. Ligando isso ao pensamento do sociólogo, nos questionamos até onde o poder simbólico pode determinar o que é vida e o que não é vida. Não são médicos, ou seja, especialistas da vida humana falando, são operadores do Direito.
Levantando o questionamento sobre direito como instrumento de Bourdieu, podemos relacioná-lo com o voto do Ministro Lewandowski que defende que o SFT só pode exercer o papel de legislador negativo, tendo em conta o princípio da intervenção mínima. Diz ainda que existem vários diplomas infraconstitucionais em vigor no País que resguardam a vida intra-ulterina. Consequentemente, se fosse declarada procedente a ADPF 54, estes outros também teriam de ser vistos como inconstitucionais, “quiçá mediante a técnica do arrastamento, ou, então, merecer uma interpretação conforme a Constituição, de modo a evitar lacunas no ordenamento jurídico”. Termina dizendo que a competência para decidir a questão é do Legislativo, e não do Judiciário.
Ainda sobre a instrumentalização do Direito, Bourdieu diz que precisamos pensar o campo do direito desprendidos de determinadas formas de interpretação social. Isso porque,  muitos interpretam que o direito está a serviço da classe dominante, sendo apenas um instrumento. Porém, isso não é inteiramente verdade, pois, o Direito não tem autonomia frente a qualquer pressão social. Ele está sempre dentro do limite, limite este que é definido pelo seu Campo, não sendo um instrumento de dominação, mas também não sendo autônomo no que diz respeito às pressões sociais, há um fio muito fino, onde as pressões jogam a isca, mas o peixe ainda está longe de seu alcance.
Está longe, pois não está ainda dentro do Campo; ou seja, dentro do espaço real ou imaginário que se distingue por meio da linguagem, códigos e valores. É dentro do Espaço dos Possíveis que as mudanças ocorrem, os operadores do Direito a trazem. As lutas vêm de fora, são externas. Entretanto, os ministros não são imunes às discussões, elas fazem parte do recurso que cada um traz, fazem parte de seu capital simbólico. De tal modo, eles colocam em forma o reflexo da dinâmica social, são os intérpretes finais do sentido da forma. Isso porque as lutas sociais precisam se formalizar para se materializarem dentro do Direito. Isso fica evidente quando observamos a clara mudança da linguagem de uma luta que acontece na rua, comparada a mesma dentro do STF.  
Assim sendo, notamos que a força interna do campo utiliza-se de sua autonomia para mudar a linguagem, para padronizar as lutas sociais dentro da lógica interna do campo. O direito matematizado, está respondendo a esta lógica interna, antes de responder uma lógica social. De modo que até certo ponto tem elementos autossuficientes para responder a si mesmo, não importa se a população quer pena de morte, isso não está para discussão. É uma ciência de homens proeminentes, por outro lado ela é a moral é o que é justo, é o que cabe obedecermos ao que é certo, dentro do que a normatividade diz.
                Com isso, nos questionamos até onde o Direito pode ir como Ciência, há vida? Pode haver aborto? Dentro dos possíveis até onde a moral alcança a razão? O que chama atenção é o fato de somente um tipo muito específico de aborto esta em discussão, e isso porque somente este se encontra dentro do espaço dos possíveis. Assim, o aborto está preso ao espaço dos possíveis jurídico. Os anseios sociais são postos em forma e em fila. Deste modo seria possível dizer que há emancipação dentro do espaço dos possíveis, mesmo este sendo limitado? Ou será que o STF faz o papel da justiça dentro de uma população que se diz a favor da vida, contra o aborto, mas prega que “bandido bom é bandido morto”? Até que ponto a opinião pública deve influenciar?

Gabriela Gandelman Torina
1 ano Direito Noturno

Estrutura jurídica e sua mutabilidade

A ADPF 54, requerida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, queria que se considerasse inconstitucional a interpretação de que o aborto de fetos anencéfalos constitui crime segundo os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal. Para isso, utilizou-se de argumentos alegando a laicidade do Estado brasileiro e bases técnicas adquiridas com o avanço da medicina. O objetivo era evitar que a deliberação jurídica fique confinada no campo religioso.
Nesse caso, sendo examinado a luz de Bourdieu, podemos perceber o quanto sua teoria se mostra válida na prática. O Direito, apesar de possuir alguma autonomia, não é imune às pressões sociais, como dizia Kelsen. Muito menos fadado a ser instrumento de dominação da classe dominante, como afirmava Marx. Para Bourdieu, são elementos externos que colocam as pautas a serem decididas pelo Direito, e tais elementos são resultados de luta e militância por movimentos sociais. Logo, o direito é afetado por pressões sociais.
Além disso, Bourdieu afirma que o direito deve se afastar do instrumentalismo (direito como um utensílio ao serviço dos dominantes). O ethos (caráter moral) compartilhado da classe dominante, visto por Bourdieu como uma das forças reguladoras do sistema jurídico, é visto de maneira predominante no legislativo brasileiro, já que em sua maioria, os deputados e senadores advém dessa mesma classe. Entretanto, a ADPF presente foi considerada procedente, ou seja, a maioria conservadora brasileira foi vencida. Provando assim, que é possível o Direito ser instrumento dos movimentos sociais em prol das suas luas e interesses também.
Portanto, apesar da questão do aborto ter sido tratada apenas dentro do “espaço dos possíves” de Bourdieu, a procedência da ADPF 54 foi um primeiro passo. A luta dos movimentos feministas se mostra cada vez mais presente e forte. Fica claro, com as teorias do autor e alguns exemplos apresentados, que o Direito é diretamente afetado pelas demandas sociais. Ainda estamos longe do ideal de um direito universalizante, onde a escolha de uma mulher em não ter seu filho devido à anencefalia não precise passar pelo STF. Contudo, a luta feminista persiste e cada vez mais mulheres protagonizam espaços de política e militância. O presente pode estar nublado, mas ,no futuro, é possível ver o sol entre as nuvens prestes a raiar.

Eric Felipe Sabadini Nakahara
1° ano Direito - Diurno
Sociologia do Direito



ADPF 54/DF E BOURDIEU

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54/DF), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde formalizou um pedido no qual demonstra ser improcedente a criminalização por via de ação penal pública de profissionais da saúde que atuem em procedimento de interrupção da gravidez de feto anencefálico, contestando o enquadramento nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, que criminalizam a ação de provocar o aborto em si ou consentir que outrem lhe provoque. Após o julgamento, o STF optou por deferir o pedido.
À luz de Pierre Bourdieu, tenta-se compreender esse fenômeno social. Observa-se que se trata de um conflito jurídico, o qual se relaciona com o conceito de Luta Simbólica do sociólogo citado. Segundo ele, há um embate entre doutrinadores e operadores do direito. Os primeiros se dedicam à elaboração teórica e universal da norma. Já os segundos se deparam com a aplicação ao caso prático. Ambos contribuem para a construção do direito, influenciando suas fontes. Mas o que destaca nesse caso prático é a confusão dessas duas funções. Por conta do fenômeno da judicialização, discutida com muita propriedade por Barroso, a não manifestação do Legislativo em determinado anseio social, propicia o avanço do judiciário, ainda que isso implique em operadores agirem como doutrinadores, pois, nesse caso em particular, o que os ministros do STF fizeram foi muito além de adequar a norma à realidade, e sim criar norma.
Há de se considerar o que Bourdieu chama de Eficácia Simbólica. Esta se dá pelo formalismo racional, e até ritualístico que envolve os procedimentos judiciais, de modo a legitimar a sentença como expressão da razão, e não dos ministros. Ocorre que, na verdade, a visão de mundo que possuem as autoridades constituídas influencia em demasia sua decisão. Aliado a isso, deve-se levar em conta o Caráter Simbólico que, segundo Pierre, explica a submissão da população aos magistrados, uma vez que são considerados capazes de determinar o que é justo, e que evidencia a existência de uma hierarquização na sociedade.
Ao término desta breve reflexão, busca-se relacionar a necessidade de fundamentação na realidade que os enunciados jurídicos precisam para obter êxito. Por menor que seja o grau de concordância que a sociedade possua com o novo direito criado, ele precisa ser aceito para ser vigente. Nesse sentido, decisões polêmicas como a citada ADPF 54/DF, e mesmo a recente decisão (no Recurso Extraordinário 603.616) de permitir a polícia a invasão à propriedade privada mesmo sem liminar, possuem algum respaldo social, ainda que possam ser consideradas injustas.
Para terminar, uma sintética conclusão: quem precisa das engessadas (e retrógradas) vias democráticas, quando uma pessoa dotada de autoridade resolve os seus problemas?

Jansen R. Fernandes
Diurno

Entre a lei e a moral

Certa vez, o jornalista e filósofo Hélio Schwartsman em um dos seus livros tratando sobre o aborto  escreveu que uma sociedade deveria começar com as penalizações antes da moral, entretanto descordando veementemente da sua opinião João Pereira Coutinho vai afirmar que antes de construir qualquer código ou Constituição é necessário saber primeiro aquilo que ela considera (ou não) aceitável de acordo com uma determinada concepção do Bem, ou seja, cabe ao Estado estabelecer limites sobre matérias de vida ou morte e isso acaba esbarrando automaticamente na questão do aborto.

Em se tratando do tema, os EUA  mais uma vez saíram na frente. Lá o aborto é legalizado há mais de 40 anos. A legalização foi conquistada em uma intensa luta que começou nas ruas e terminou na justiça com o caso conhecido como Roe versus Wade. Uma das maiores batalha jurídicas do século XX, iniciada no Texas e encerrada na Suprema Corte dos EUA. A decisão da Suprema Corte em 22 de janeiro de 1973 reconheceu o aborto como um direito das mulheres. Estabeleceu que as maiorias das leis contrárias nos EUA violavam “o direito constitucional à privacidade”, portanto eram inconstitucionais, resultando na legalização do aborto.

Aqui no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) também se deparou com a questão do aborto, só que agora discutindo sobre a legalização dos abortos de anéncefalos. A ação, que pedia a legalização da interrupção da gravidez em caso de fetos anencefálicos, foi movida em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS).  O STF decidiu por ampla maioria pelo direito ao aborto de fetos anencéfalos, com oito votos a favor e dois contrários. Os ministros favoráveis basicamente afirmaram que o feto anencéfalo é incompatível com a vida e que seria desproporcional proteger o feto que não sobreviverá em detrimento da saúde física e mental da mulher. Cezar Peluso vai descordar e declara que o feto anencefálo está vivo e assim a interrupção da gestação é crime tipificado como aborto.

O aborto continua sendo considerado como crime, excetuando raras exceções, pelo Código Penal brasileiro. Bourdieu vai sustentar que o Direito tem certa autonomia e independência, entretanto pela sua dinamicidade e complexidade, está interligado em diversos espaços sociais. O espaço jurídico é bastante influenciado pelas ciências e não é completamente solitário. O Direito é uma ciência social aplicada fortemente entrelaçada as realidades sociais e suas metamorfoses.

Nesse aspecto, quando o Direito se expande, ele passa a transitar em outros campos. A distensões desses espaços não amplia a abrangência do direito, ele apenas prolonga para regiões aceitáveis. O direito deve se readaptar as novas realidades e se movimentar para se adequar às novas gerações. A criação de novas perspectivas condiciona a sua existência e sua acolhida pelos indivíduos. O autor vai salientar que o Direito não está enclausurado, pelo contrário está em um processo constante de dilatação.

A hermenêutica do domínio jurídico se amplificou acima do controlado, por isso avaliar a criminalidade do aborto não está mais em questão, já que a anencefalia não podia ser comprovado durante a formatação do Código Penal de 1940. O judiciário, nesse sentido, adapta a norma a um novo contexto social e a partir disso descobre circunstâncias completamente surpreendentes. A fonte que deriva toda essa descoberta é a mesma, mas a interpretação é contemporânea.

O direito, segundo o Bourdieu, está em constante conflito entre a doutrina e a jurisprudência e a hermenêutica influenciada pelas fontes jurídicas. Essa luta simbólica entre doutrinadores e magistrados moderniza a prática jurídica. Os doutrinadores desempenham uma conduta de pensadores, de filósofos da teoria, já os magistrados desempenham o papel de interpretar os últimos e construir a jurisprudência em cima disso. No final, o doutrinador é o grande interprete da forma.

Bourdieu vai lembrar sobre o caráter simbólico do título de doutor que é atribuído a certos ministros e magistrados que atribui uma carga de valorarão e superioridade sobre o resto da população. Por isso, afirma-se que a sociedade é hierarquizada, assim como o direito. Dessa maneira, o direito e os movimentos sociais juntos são capazes de transformar a sociedade.

Os votos dos ministros e o pensamento de Bourdieu simbolizam esse conflito jurídico que é um recurso técnico e social que se vincula mais às atitudes éticas dos agentes em campo do que às normas puras do direito. A razão se sobrepõe a vontade individual dos juízes. Os votos significam novas criações que se estabelecem dentro dos limites judiciários. O mundo social é autônomo até certo ponto.

O espaço jurídico idealizado por Bourdieu pode ser hipotético, mas apresenta uma certa autonomia, um conjunto de valores e uma linguagem própria, um ambiente de convívio, isto é aspectos ligados à vida humana. Sua execução presume o estabelecimento da universalidade e a demanda social que determina o processo de atividade jurídica. 

Bourdieu, também vai comentar sobre o capital simbólico que são faculdades que os indivíduos podem ter e que ocorre permanentemente durante um convívio social. Quando o ethos compartilhado é visto por uma visão dominante, ou seja, pela moral cristã as decisões judiciais podem acabar se comprometendo.

Portanto, como diria Antonio Prata em um de seus textos sobre o aborto: ‘Um feto de algumas semanas que não vem ao mundo é uma coisa triste, sem dúvida, mas uma criança que cresce sem amor é uma tragédia -comparável a das meninas e mulheres que, dia sim, dia não, morrem tentando abortar ilegalmente por este Brasil afora. Tucanos e petistas, crentes e ateus, sem-teto e playboys: por respeito à vida, precisamos descriminalizar o aborto.’   

Arthur Resende

1º ano de Direito Noturno

Novos campos dos possíveis: rumo à descriminalização

A questão do “aborto de anéncefalos” apesar de já ter sido descriminalizada e considerada constitucional pela ADPF 54, de 12 de abril de 2012, ainda gera muita polêmica. Para tanto, foi necessário levar alguns fatores em consideração.
Em seu voto, o Ministro Joaquim Barbosa afirma o seguinte: “Quando da promulgação do Código Penal, em 1940, não havia tecnologia médica apta a diagnosticar, com certeza, a inviabilidade do desenvolvimento do nascituro pós-parto”. Dessa forma, segundo o pensamento de Pierre Bourdieu, o Código Penal foi redigido em 1940, e nessa época, a discussão de se interromper a gravidez de feto anencéfalo não estava dentro do “campo dos possíveis”. Entretanto, com o avanço da tecnologia, da ciência e da medicina esse problema já pode ser colocado em pauta para discussão. 
Para muitos, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não pode nem ser considerada aborto, já que para tanto, é necessário haver dois pressupostos: a gravidez ser completamente indesejada pela mãe, sem que esta esteja sob risco de vida e haver perspectiva de vida para o feto após o nascimento. No caso da anencefalia, a mãe está sob constante risco de vida e, caso a criança não morra durante a gestação, certamente não viverá mais do que dois anos de idade (sendo este o tempo máximo que uma criança com tal anomalia sobreviveu. Normalmente, os bebês não duram mais que alguns minutos).
O que foi dito acima mostra que, assim como afirmava Bourdieu, o Direito não pode ser considerado isoladamente. Ele depende de outras ciências para compor seu “habitus jurídico”. E, mesmo assim, devido a sua força e ao seu poder simbólico, o Direito é capaz de definir o que é vida: a palavra final não é mais da medicina. No entanto, vale ressaltar, que isso só é possível graças a integração do Direito com outras ciências.
Portanto, é possível perceber que o Direito está a todo tempo se modificando, abrindo espaço para novas possibilidades, novos campos dos possíveis a serem discutidos, acompanhando as mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais.

 Luiza Macedo Pedroso
1º ano - Direito diurno

A anencefalia e o aborto

          No Código Penal de 1940 não havia tecnologia para o caso da anencefalia, portanto costumava ser a gestante quem decidia se realizaria ou não o aborto. O ministro Luís Roberto Barroso, afirma que a anencefalia é uma má formação congênita que gera como consequência fetos sem cérebro. É, portanto, uma condição incompatível com a vida extrauterina. Todas as entidades médicas e científicas que compareceram a audiência convocada pelo ministro marco Aurélio, confirmaram que o diagnóstico é 100% certo, a letalidade ocorre em 100% dos casos.
          O aborto não é punido em dois casos: quando não tem jeito de salvar a mãe ou quando a gravidez é corrente de estupro. Os juristas e juízes dispõem, em graus diferentes, do poder de explorar a polissemia das fórmulas jurídicas recorrendo à restrictio (processo para não aplicar a lei) ou à extensio (processo que permite a aplicação de uma lei que não deveria ser tomada à letra). Por fim, o conteúdo prático da lei se revela no resultado da luta simbólica, relação de força, entre profissionais dotados de competências técnicas e sociais desiguais. O trabalho da racionalização confere a eficácia simbólica exercida por toda ação quando reconhecida como legítima. A instrumentalização descreve que o direito não pode servir de instrumento para classe dominante conservadora.
          Bourdieu trata da relevância da divisão do trabalho jurídico enquanto atividade de interpretação filosófica e literária do jurista. No caso, fica evidente a atividade hermenêutica realizada pelos ministros, que expandiram a efetividade e o alcance da norma. Ao mesmo tempo, os juristas se atentaram para a definição civil, jurídica sobre a vida- a lei não determina quando ela começa, mas quando termina. Podemos perceber que a atuação dos ministros se deu dentro do "espaço dos possíveis". Tal ADPF, além de envolver o campo jurídico, envolve o campo da ciência e dos dogmas.
            A permanência do feto anômalo no útero da mãe se mostra potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e ávida da gestante. Considerando também o princípio da dignidade da pessoa humana, não se deve impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde. Sendo assim, não deve competir ao Estado a decisão da realização do aborto.
          Bourdieu também afirma que a sociedade está permeada por conflitos constantes em busca de poder e que para garantir a manutenção do poder, seus detentores buscariam camuflar seus interesses de forma que aparentassem ser reflexo dos anseios da sociedade como um todo, através da violência simbólica. A figuração desses interesses como coletivos serve de justificativa para construções ideológicas.
          É neste sentido que entra a pretensão de enquadrar o aborto de anencéfalos como crime previsto no código penal, exemplificando violência simbólica, visto que os detentores do poder utilizavam de preceitos religiosos para construir um consenso sobre a realidade, ignorando a laicidade do Estado.
          Existem conflitos constantes entre os diversos campos existentes na sociedade, que acabam levando diversos destes campos a disputar a força dentro do espaço social. É neste momento que o campo jurídico ingressa como agente definidor e regulador desses confrontos, sendo marcado pelos outros como o "porta-voz" da razão, da neutralidade e da universalidade. Isso fica visível no julgado, em que o judiciário entrou como agente regulador dos conflitos entre o campo religioso e campo cientifico.
          A grande questão da arguição é quando a vida surge. A constituição não prevê o surgimento da vida, apenas o encerramento dela (com a morte encefálica). Sob essa perspectiva, os ministros que votaram contra a sanção da tipicidade de aborto, se apoiaram em preceitos científicos de quando começa a vida. No entanto, a maioria absoluta dos ministros sustentaram seus argumentos também em fatos científicos– a vida de um recém-nascido anencéfalo dura minutos – e em bases constitucionais – aborto de anencéfalo não se enquadra nos artigos de direito penal, pois não chegam a constituir aborto, uma vez que a prática de aborto pressupõe uma potencialidade de vida (que o feto anencéfalo não possui).  Portanto, é legitima a decisão do Judiciário, pois as sustentações envolveram a presença de vários campos como o assunto exigia, além de fundamentar-se na Constituição, apesar de haver uma sobreposição de princípios. Assim, mesmo com conflitos éticos-morais de grupos, a decisão não pode ser colocada a prova quanto sua legitimidade, pelo fato que atendeu os valores democráticos.
          Para o debate do aborto são utilizados diversos campos como o das ciências médicas e biológicas, bem como questões morais, religiosas, éticas e históricas, que influenciam e se interligam ao campo jurídico, demonstrando como a teoria Kelseniana se equivoca ao dizer que o Direito é completamente independente dos constrangimentos e das pressões sociais.  Ele possui, como afirma Bourdieu, uma autonomia sim, mas esta é relativa como demonstra o caso. Contudo, é esta relatividade que permite que ele possua elementos próprios, e em especial no caso da ADPF 54, decida sobre a questão de que se existe vida ou não para um feto anencéfalo, ultrapassando ate mesmo a medicina.


Julia Helena Tury Blumer – 1º ano Direito Noturno

O externo no Direito

O Poder Simbólico, de Pierre Bordieu, trata sobre a constituição do campo jurídico e sua eficácia na sociedade. Primeiro, determina "campo" como área de determinados valores, hábitos e códigos próprios. Mais especificamente sobre o campo jurídico, Bordieu afirma, como necessidade do Direito, evitar o instrumentalismo (o Direito a serviço da classe dominante) e o formalismo (distanciamento do Direito diante de pressões sociais),  nesse caso, criticando a teoria kelseniana de que o Direito é autônomo diante tais pressões.

Portanto, um dos pontos principais de sua obra é a de que o campo jurídico não é independente das relações externas a ele. Para o pensador, há uma dinâmica do direito que combina razão (lógica positiva da ciência) e moral ,garantindo legitimidade a ele. O campo jurídico também deve portar neutralidade, universalidade e autonomia, porém, isto na teoria. O que ocorre, na maioria das vezes, são as forças sociais externas interferindo no campo jurídico, como Bordieu afirma. As ideologias, pensamentos e atitudes éticas dos atores do direito influenciam na decisão judicial do que as normas puras do direito.

Podemos ver um exemplo claro na ADPF 54 que trata sobre a inconstitucionalidade da proibição do aborto de anencéfalos. O aborto é um tema bastante polêmico no Brasil devido a maioria católica no país e a profunda influência da Igreja no cotidiano dos brasileiros. O STF julgou procedente a ação determinando, então, válida o aborto de anencéfalos, baseando-se em questões médicas, o que demonstra a dinâmica jurídica, onde a medicina (lógica positiva) entra em confronto com a moral cristã.

Fernando Augusto Risso - direito diurno