domingo, 6 de dezembro de 2015

Entre a lei e a moral

Certa vez, o jornalista e filósofo Hélio Schwartsman em um dos seus livros tratando sobre o aborto  escreveu que uma sociedade deveria começar com as penalizações antes da moral, entretanto descordando veementemente da sua opinião João Pereira Coutinho vai afirmar que antes de construir qualquer código ou Constituição é necessário saber primeiro aquilo que ela considera (ou não) aceitável de acordo com uma determinada concepção do Bem, ou seja, cabe ao Estado estabelecer limites sobre matérias de vida ou morte e isso acaba esbarrando automaticamente na questão do aborto.

Em se tratando do tema, os EUA  mais uma vez saíram na frente. Lá o aborto é legalizado há mais de 40 anos. A legalização foi conquistada em uma intensa luta que começou nas ruas e terminou na justiça com o caso conhecido como Roe versus Wade. Uma das maiores batalha jurídicas do século XX, iniciada no Texas e encerrada na Suprema Corte dos EUA. A decisão da Suprema Corte em 22 de janeiro de 1973 reconheceu o aborto como um direito das mulheres. Estabeleceu que as maiorias das leis contrárias nos EUA violavam “o direito constitucional à privacidade”, portanto eram inconstitucionais, resultando na legalização do aborto.

Aqui no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) também se deparou com a questão do aborto, só que agora discutindo sobre a legalização dos abortos de anéncefalos. A ação, que pedia a legalização da interrupção da gravidez em caso de fetos anencefálicos, foi movida em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS).  O STF decidiu por ampla maioria pelo direito ao aborto de fetos anencéfalos, com oito votos a favor e dois contrários. Os ministros favoráveis basicamente afirmaram que o feto anencéfalo é incompatível com a vida e que seria desproporcional proteger o feto que não sobreviverá em detrimento da saúde física e mental da mulher. Cezar Peluso vai descordar e declara que o feto anencefálo está vivo e assim a interrupção da gestação é crime tipificado como aborto.

O aborto continua sendo considerado como crime, excetuando raras exceções, pelo Código Penal brasileiro. Bourdieu vai sustentar que o Direito tem certa autonomia e independência, entretanto pela sua dinamicidade e complexidade, está interligado em diversos espaços sociais. O espaço jurídico é bastante influenciado pelas ciências e não é completamente solitário. O Direito é uma ciência social aplicada fortemente entrelaçada as realidades sociais e suas metamorfoses.

Nesse aspecto, quando o Direito se expande, ele passa a transitar em outros campos. A distensões desses espaços não amplia a abrangência do direito, ele apenas prolonga para regiões aceitáveis. O direito deve se readaptar as novas realidades e se movimentar para se adequar às novas gerações. A criação de novas perspectivas condiciona a sua existência e sua acolhida pelos indivíduos. O autor vai salientar que o Direito não está enclausurado, pelo contrário está em um processo constante de dilatação.

A hermenêutica do domínio jurídico se amplificou acima do controlado, por isso avaliar a criminalidade do aborto não está mais em questão, já que a anencefalia não podia ser comprovado durante a formatação do Código Penal de 1940. O judiciário, nesse sentido, adapta a norma a um novo contexto social e a partir disso descobre circunstâncias completamente surpreendentes. A fonte que deriva toda essa descoberta é a mesma, mas a interpretação é contemporânea.

O direito, segundo o Bourdieu, está em constante conflito entre a doutrina e a jurisprudência e a hermenêutica influenciada pelas fontes jurídicas. Essa luta simbólica entre doutrinadores e magistrados moderniza a prática jurídica. Os doutrinadores desempenham uma conduta de pensadores, de filósofos da teoria, já os magistrados desempenham o papel de interpretar os últimos e construir a jurisprudência em cima disso. No final, o doutrinador é o grande interprete da forma.

Bourdieu vai lembrar sobre o caráter simbólico do título de doutor que é atribuído a certos ministros e magistrados que atribui uma carga de valorarão e superioridade sobre o resto da população. Por isso, afirma-se que a sociedade é hierarquizada, assim como o direito. Dessa maneira, o direito e os movimentos sociais juntos são capazes de transformar a sociedade.

Os votos dos ministros e o pensamento de Bourdieu simbolizam esse conflito jurídico que é um recurso técnico e social que se vincula mais às atitudes éticas dos agentes em campo do que às normas puras do direito. A razão se sobrepõe a vontade individual dos juízes. Os votos significam novas criações que se estabelecem dentro dos limites judiciários. O mundo social é autônomo até certo ponto.

O espaço jurídico idealizado por Bourdieu pode ser hipotético, mas apresenta uma certa autonomia, um conjunto de valores e uma linguagem própria, um ambiente de convívio, isto é aspectos ligados à vida humana. Sua execução presume o estabelecimento da universalidade e a demanda social que determina o processo de atividade jurídica. 

Bourdieu, também vai comentar sobre o capital simbólico que são faculdades que os indivíduos podem ter e que ocorre permanentemente durante um convívio social. Quando o ethos compartilhado é visto por uma visão dominante, ou seja, pela moral cristã as decisões judiciais podem acabar se comprometendo.

Portanto, como diria Antonio Prata em um de seus textos sobre o aborto: ‘Um feto de algumas semanas que não vem ao mundo é uma coisa triste, sem dúvida, mas uma criança que cresce sem amor é uma tragédia -comparável a das meninas e mulheres que, dia sim, dia não, morrem tentando abortar ilegalmente por este Brasil afora. Tucanos e petistas, crentes e ateus, sem-teto e playboys: por respeito à vida, precisamos descriminalizar o aborto.’   

Arthur Resende

1º ano de Direito Noturno

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