domingo, 6 de dezembro de 2015

Indignação e tolerância: a questão do aborto e a constituição do campo jurídico

O autor Pierre Bourdieu afirma ser o Direito parte do poder simbólico; ou seja, parte de uma força que, apesar de não-materializada concretamente, faz-se existente pelo poder de normas ou até mesmo fatos que reconhecem um ator ou uma instituição social. Ainda, defende que não há apenas um poder de classe imposto. No mérito do campo jurídico, o que o distingue dos demais campos, apresentando uma certa autonomia – embora não completa – são seus elementos próprios e singulares. A crítica feita a Hans Kelsen e seus adeptos se apresenta, justamente, por esse viés: há a falsa percepção de que este campo explica-se por si só, “completamente independente dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento” (BORDIEU, 1989, p. 209). A abordagem em relação à ótica de classe deve ser também destacada. Não há tão-só uma classe burguesa dominante: o que existem são frações em luta pela dominação.  Portanto, em sua perspectiva, não é um instrumento de classe – pura expressão da dinâmica social e sua evolução –, nem traduz-se em autonomia plena.
É fato que o Direito transforma-se de acordo com o processo histórico, em uma necessidade de adaptação às demandas vigentes e a nova realidade social. Com essa lógica interna predisposta a mudanças, há a delimitação em cada momento do “espaço dos possíveis” e, consequentemente, do universo das soluções propriamente jurídicas. Tem-se uma certa influência e abordagem feita pelo campo jurídico aos demais campos científicos, à medida que cria um paradoxo de autonomia e dependência daquele. Se, por um lado, há uma expansão do campo jurídico – conferindo-lhe certo aspecto autônomo e independente –, por outro, amarra-o a outros campos, uma vez que, é inevitável uma sujeição à interferência externa para as própria aplicação.
A ADPF 54/DF, ao tratar da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, retrata que:
Em 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS formalizou a argüição de descumprimento de preceito fundamental (...) sob o ângulo da admissibilidade, no cabeçalho da petição inicial, apontou, como envolvidos, os preceitos dos artigos 1º, IV – dignidade da pessoa humana –, 5º, II - princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade –, 6º, cabeça, e 196 – direito à saúde –, todos da Carta da República e, como ato do Poder Público, causador da lesão, o conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Afirmou, mais, que diversos órgãos investidos do ofício judicante – juízes e tribunais – vêm extraindo do Código Penal, em detrimento da Constituição Federal, dos princípios contidos nos textos mencionados, a proibição de se efetuar a antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos.
Há, além disso, fundamentações em especialistas – no caso, o Doutor Luís Roberto Barroso – para atestar que a antecipação terapêutica do parto não consubstancia aborto, no que este envolve a vida extra-uterina em potencial. Sustentou-se no artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, que dispõe a legitimação ativa daqueles que “a têm para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade”.
A questão do aborto carrega consigo na sociedade brasileira uma expressão dupla de indignação e tolerância. Nas maioria das vezes em que é praticado, é feito de maneira secreta: há uma espécie de oposição entre o caráter “público e coletivo” e o caráter “vergonhoso e clandestino” – tal embate pode referir-se a várias ações e formas de poder. O próprio autor estudado, ao pesquisar acerca da sociedade cabila, conjecturou a oposição entre homens e mulheres, entre a sociedade masculina e feminina: os homens possuem o poder oficial sobre aquilo que é coletivo e público, enquanto as mulheres detêm um poder “oculto”, oficioso. Pode-se afirmar, então, que em sociedades tradicionais o aborto é oficialmente condenado, todavia, oficiosamente tolerado – verifica-se no contexto do universo feminino, em que a maior parcela dos indivíduos não têm interesse em tomar conhecimento do fato, preferindo a cegueira perante o ocorrido.
Outro pronto necessário de ser abordado diz respeito à moral cristã existente e toda sua carga de influência na forma de pensar e agir de uma grande parcela da população. O debate, então, fica limitado. Bordieu aborda tal questão como “ethos compartilhado”, que explica a expressão de certos valores dominantes na sociedade. Soma-se a isso, o efeito simbólico explicitado anteriormente: há uma certa admiração e reverência dos cidadãos aos ministros e pensadores do Direito, conferindo a eles um grau de veracidade e conformidade para com suas opiniões.

Isabelle Elias Franco de Almeida
1˚ ano, direito (noturno) – aula 3.1

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