sábado, 31 de agosto de 2019

Para além do pensamento latifundiário excludente
No artigo O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone (2016), a socióloga portuguesa Sara Araújo discorre sobre o conceito de Epistemologias do Sul do também português Boaventura de Sousa Santos. Na era dos Impérios Coloniais Europeus, o Velho e o Novo Mundo eram demarcados por linhas cartográficas. Essa divisão ainda permanece no mundo contemporâneo como delimitadora das relações políticas e culturais entre as antigas metrópoles e seus territórios coloniais. Em que ocorre o que a autora denomina de razão metonímica, ou seja, a exclusão dos conhecimentos produzidos nas antigas colônias em primazia ao produzido em suas antigas metrópoles (pensamento abissal). A distinção entre sociedades desenvolvidas (antigas metrópoles) e subdesenvolvidas (antigas colônias), ocasiona dicotomias que Santos (2007) explica dentro do paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação sociais. Em que a “regulação/emancipação” se aplica apenas às sociedades desenvolvidas, enquanto que nas subdesenvolvidas se aplica a dicotomia “apropriação/violência”.
Tanto Araújo como Santos, estabelecem as ciências do conhecimento e o direito moderno como representantes exemplificativos desse pensamento abissal. O direito oficial dos Estados e o Direito Internacional são eurocêntricos e reproduzem as exclusões abissais. Ao analisar o Agravo de Instrumento (AI) nº 70003434388, em que, em favor dos integrantes do Movimento Sem-Terra, se indeferiu a liminar reintegratória de posse, podemos observar como no Brasil ainda reproduzimos o contexto do colonialismo-imperialismo em vez de interrompê-lo. No território brasileiro, a opressão e conflito de terra existe desde 1.500. Os “invasores” europeus da época foram vitoriosos na luta pela posse da terra contra os indígenas, e seus descendentes (a classe rural detentora de terras), hoje, sentem-se agredidos pelos atuais “invasores” (integrantes de movimentos sociais).
Em seu artigo, Araújo (2016) estabelece que “os investimentos que ocorrem a partir dos anos 1.980 na promoção do Estado de direito não se traduziram em concretizações proporcionais. (...) Uma vez que o sistema de justiça não responde a reformas e ações de capacitação impostas de cima para baixo, buscam-se agora soluções através da justiça informal para promover a estabilização do Estado de Direito”. Essas soluções através da justiça informal, no caso brasileiro, no que tange casos como o AI nº 70003434388, se caracterizam pelas invasões e pedidos na justiça pelos movimentos sociais de desapropriação de terras que não exerçam sua função social ou estejam improdutivas. Em seu voto, o desembargador Mário José Gomes Pereira justifica sua decisão de negar provimento ao AI em anuência com as ideias de Araújo: “O possuidor latifundiário que descumpre o princípio da destinação social da propriedade desafia o equilíbrio social e afronta o sentimento de justiça das populações pobres do campo”.
 O latifúndio é claramente uma resultante do imperialismo moderno. E os movimentos sociais com suas ações buscam ser acolhidos pelo sistema de leis positivadas que excluem as minorias. Essa exclusão das minorias, Araújo descreve dentro do conceito de razão metonímica e da monocultura do universal e do global, em que “tudo o que é local ou particular é invisibilizado pela lógica da escala global”. A base do argumento favorável à reintegração de posse, representada pelo desembargador Luís Augusto Coelho Braga, é que cabe à União o início do processo legal de desapropriação da terra (Art. 184 da CF; e Art. 2º, § 1º da Lei nº 8.629). O que Araújo estabelece como a monocultura da naturalização das diferenças, que “consiste na distribuição das populações por categorias que identificam diferença com desigualdade e permitiu, pois, legitimar a dominação e a exploração”. O sistema positivado do direito inferioriza as minorias pela formalidade em excesso, e as invasões e ocupações do MST visam quebrar essa formalidade.
Araújo e Santos defendem a ideia do pluralismo jurídico como meio de transpor as exclusões abissais estabelecidas pela ortodoxia jurídica capitalista consequente do imperialismo-colonialismo. O AI nº 70003434388 é um exemplo dessa transposição ao contribuir para o conhecimento e a valorização da diversidade que é proposta pelo pluralismo jurídico. A prevalência dos direitos fundamentais (função social da terra) em detrimento de direitos puramente patrimoniais (posse da terra) quebra com a dicotomia “apropriação/violência” típica dos antigas colônias europeias e caminha para a “regulação/emancipação” que o exercício do pluralismo jurídico oferece.


Referências Bibliográficas:
ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos,
desafiar o cânone. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.º 43, set/dez 2016, p. 88-115.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 79, p. 71-94, nov 2007.  

Raquel Rinaldi Russo – 1º ano Direito Matutino

O latifúndio e o MST à luz de Sara Araújo

O julgado referente à Fazenda Primavera trouxe/traz à tona um assunto debatido fortemente até os dias atuais, a função social da terra e o MST. O caso analisado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no ano de 2001 trata de um recurso sobre reintegração de posse de áreas até então ocupadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, cujo quais haviam anteriormente vencido uma disputa judiciária a partir do argumento da função social da terra.  
Quando examinada de modo critico, muito do que é discutido ao longo da sentença é tratado pela socióloga Sara Araújo em seu estudo sobre as exclusões abissais, onde a mesma debate dentre os assuntos o colonialismo e a monocultura jurídica. Em uma analogia relacionando o caso com os conceitos das Epistemologias do Sul e do Norte, o MST representaria o lado Sul, pois trata-se de uma classe inviabilizada, silenciada, explorada e pobre, enquanto o Norte, então representado pelos proprietários Plinio e Valéria Formigheri são a expressão do que é objeto de proteção do direito moderno, o capital. O MST além de favorecer a produção local, visa a subsistência e não o lucro, a monocultura jurídica despreza tudo o que é local e que não tem como foco o acumulo de riqueza. A decisão judicial que favoreceu o movimento e priorizou a função social da terra em detrimento do direito à propriedade foi contra a tendência do colonialismo juridico, que é “alimentado por uma estrutura colonizadora responsável pela marginalização de sociedades, culturas e seres humanos” (Mudimbe, 1988). Foi a exceção. 
É na questão da propriedade privada onde a desigualdade de direitos ganha maior ênfase, pois em situações análogas ao agravo de instrumento número 70003434388, o judiciário tende a favorecer os grandes proprietários e desconsiderar a luta da população, como acontece por exemplo na sentença dada ao famoso caso do Pinheirinho. Famílias desabrigadas e um latifúndio colossal onde seu único lucro está na especulação imobiliária. 
Lutar para a desconstrução do direito moderno é lutar para que exclusões sociais dentro do campo jurídico sejam ao menos reduzidas e para que a interpretação das leis tenda menos para a concepção de “lado de lá” e “lado de cá”, olhando a sociedade de maneira ampla ao mesmo tempo que respeita a pluricultura jurídica global. 
Segue um interessante documentário sobre a resistência feminina dentro do MST :
Barbara V M Verissimo – Direito noturno 

O direito brasileiro sob a perspectiva jurisprudencial

Analisando o caso da Fazenda Primavera vemos que era uma fazenda improdutiva e que, portanto, não cumpria com a função social da propriedade (art. 5°, inciso XXIII, CF). Quando, sob processo de desapropriação, os proprietários impediam o acesso dos fiscais do INCRA mas quando era de interesse deles comprovar a “produtividade” da fazenda alegavam que não era possível tal inspeção devido à ocupação pelo MST. O direito brasileiro apresenta várias lacunas que dificultam e até mesmo impossibilitam que a justiça social seja feita com eficiência. No presente caso, a constatação da improdutividade não pode depender da boa vontade dos proprietários devendo haver proteção policial aos fiscais ou mesmo utilização de imagens de satélites pois atualmente com grande resolução e podem identificar inclusive quais culturas estão sendo lavradas.

O Des. Carlos Rafael Dos Santos Junior (relator) ao negar o recurso de reintegração de posse da Fazenda Primavera (2001) recorre ao direito norte-americano para justificar sua decisão. Este direito, diferentemente do brasileiro, é tido como um direito jurisprudencial. No Brasil o direito provém da família romano-germânica, tendo por fonte, basicamente, a lei. Ora, se o juiz se ativesse ao texto literal da lei, deveria dar provimento ao recurso uma vez que o processo de desapropriação tem procedimento distinto do processo de reintegração de posse. O relator evita a interpretação jurídica tradicional e afirma que o juiz precisa revisar conceitos para se adequar aos novos fatos. Como justificativa para tal procedimento ele cita no acórdão a definição de Carlos Maximiliano[1] sobre interpretação e construção e suas diferenças:

“A Interpretação atém-se ao texto, como avelha exegese; enquanto a Construção vai além, examina as normas jurídicas em seu conjunto e em relação à ciência, e do acordo geral deduz uma obra sistemática, um todo orgânico; uma estuda propriamente a lei, a outra conserva como principal objetivo descobrir e revelar o Direito; aquela presta atenção maior às palavras e ao sentido respectivo, esta ao alcance do texto; a primeira decompõe, a segunda recompõe, compreende, constrói. ”

A Construção tem sido típica no direito brasileiro pois o legislativo, com sua morosidade intrínseca, não consegue acompanhar as rápidas transformações da nossa “sociedade líquida”. A construção é, como afirma Sara Araújo, um diálogo das “Epistemologias do Sul com a sociologia do direito que busca identificar exclusões produzidas pelo direito germânico-românico e adaptá-lo às condições socioculturais brasileiras uma vez que a justiça brasileira não responde a reformas e ações impostas pela elite político-econômica brasileira. Decisões com tendências jurisprudenciais podem promover desenvolvimento social e trazer de volta o aspecto libertador do direito, porém tais decisões devem ser tomadas com cautela a fim de não trazer insegurança jurídica.

Luís Gustavo Nunes Barbosa - Direito Noturno


[1] Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, 1979, Forense, 9a ed., p. 40.

Análises e Comentários do AG 70003434388 à Luz de Sara Araújo.


    Em Novembro de 2001 chegou ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, da décima nona câmara cível, o agravo de instrumento número 70003434388, interposto por Plínio Formiguieri e Valéria Dreyer Formighieri contra a decisão judicial posterior, a reintegração de posse indeferida a liminar reintegratória pautada no art. 928 do Código de Processo Civil, direcionada a Loivo Dal Agnoll e outros.

    Os agravantes, Plínio e Valéria, alegaram ter tido sua propriedade invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra em Outubro de tal ano. Sob as alegações de não cumprimento da função social da propriedade e dentre outros argumentos, os proprietários apresentaram diversas documentações a fim de provar a produtividade da Fazenda Primavera.
Tiveram como votos os dos desembargadores: O relator do agravo, Carlos Rafael dos Santos Júnior, juntamente com o revisor, Mário José Gomes Pereira Luís Augusto Coelho Braga. Por maioria, consentiram em negar provimento ao agravo.

    O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ou como presente no texto do agravo, Movimento dos Trabalhadores sem Terra) é um movimento de ativismo político e social brasileiro que busca Reforma Agrária através da democratização da terra e agricultura em perspectivas além das ortodoxamente capitalistas. Fundado em 1984 pelo economista, ativista e escritor brasileiro João Pedro Stédile, o movimento hoje tem alcance tanto nacional quanto internacional.  

A marginalização e deturpação de seus objetivos são constantemente reafirmadas, mas é importante, antes de tudo, de entender o caso e as arguições realizadas no voto contrário, diretamente da fonte conhecermos quais os ideais, e a importância do trabalho dessas pessoas assentadas. Abaixo, o trecho exposto na página oficial em relação à suas produções:

Uma das nossas principais contribuições para a sociedade brasileira é cumprir nosso compromisso em produzir alimentos saudáveis para o povo brasileiro. Fruto da organização de cooperativas, associações e agroindústrias nos assentamentos, procuramos desenvolver a cooperação agrícola como um ato concreto de ajuda mútua que fortaleça a solidariedade e potencialize as condições de produção das famílias assentadas, e que também melhorem a renda e as condições do trabalho no campo.
 (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Disponível em: <http://www.mst.org.br/nossa-producao/>. Acesso em 31/08/2019).

    Apesar das grandes proporções da organização e todo seu caráter de luta por ideais sociais, o movimento enfrenta desde sempre muitas barreiras, e embates jurídicos, uma vez que a maioria das ocupações é por meio de invasão de propriedades rurais privadas como o agravo de instrumento aqui presente.

    Com isso, após toda essa contextualização, é possível iniciar uma reflexão sobre o agravo à luz do pensamento da socióloga Sara Araújo. Em um país como o Brasil, onde há riqueza em recursos naturais, temos a ilusão de que quem nos abastece são grandes indústrias do agronegócio, mas empiricamente não é assim que funciona, uma vez que um elevado percentual desses produtos de primeira linha é para exportação. Dessa forma, o que ingerimos é em sua grande maioria produto de agricultura familiar, proveniente de assentamentos.

   Mas como podemos, mesmo diante tal fato, continuar a marginalizar ou simplesmente ignorar a importância desse tipo de produção? Sara Araújo retrata bem isso em sua obra acerca do primado do direito e as exclusões abissais, onde fala sobre a “produção da inexistência”, que é exatamente o que ocorre no caso citado acima, aquilo que é “do lado de lá” (Sul) torna-se invisível, e passa a ser visto como atrasado, pois o pensamento moderno impõe fronteiras, “linhas abissais”, que dividem e hierarquizam culturas, ordenamentos e até mesmo interpretações, sendo as Epistemologias do Norte “superiores”, “desenvolvidas”, por estar dentro das expectativas capitalistas.

    Dessa forma, em relação à agricultura familiar, já mencionada anteriormente, por exemplo, se diferencia dos moldes extremamente modernos e robotizados. Com isso adentramos na análise feita por Sara acerca da prevalência da razão metonímica, onde cinco formas de monocultura são alimentadas.

     Esse tipo de agricultura não se enquadra em tais “classificações”, passando assim a ser tida como improdutiva e inviável, com técnicas primitivas e arcaicas, pensamento esse cultivado pelas dicotomias um tanto quanto “positivistas”, com ideal evolucionista, gerando desigualdades, fazendo com que haja de certo modo uma legitimação de explorações e dominações, além do chamado pela autora de “desperdício de experiência social”.

    Portanto, como feito no agravo, ao entrarem com argumentos jurídicos pautados em normas constitucionais como função social da propriedade, bem como direito a propriedade privada, deve-se realmente investigar, pois uma decisão deve levar o máximo de aspectos plausíveis em consideração, e dar um veredito que não se paute nas velhas exegeses, e nem embasado e uma lógica capitalista excludente como a que vivemos imerso na atualidade.

    Eis a importância/influência do Direito no prisma das Epistemologias. Não esse Direito eurocêntrico da contemporaneidade, marcado pela “monocultura Jurídica”, abordada por Sara, que tem sido instrumento para a ampliação capitalista, perpetuação de colonialismos (jurídicos, sociais, do saber, dentre outros) e de exclusões abissais, como algumas das já mencionadas acima.

     Mas é o Direito também a ferramenta principal para o fortalecimento de uma possível Epistemologia do Sul, através das ponderações e hermenêuticas necessárias, e levando em considerações aspectos como os suscitados pelo revisor do agravo, sobre não poder fazer com que o direito unicamente patrimonial prevaleça em detrimento de direitos básicos e fundamentais de inúmeras famílias.

   Dessa maneira, tendo o provimento negado no agravo, e os argumentos utilizados tanto contra como a favor, vemos que há na justiça lacunas, mas também tentativas de mitigar esses déficits através de decisões que buscam harmonizar legislação e necessidades sociais.  Para que seja mais efetivo, acredito que como dito por Sara Araújo, devemos “des-pensar” a “eurocentrização jurídica”, cultivar a ecologia de direitos e justiças, ecologias essas que sejam capazes de enfrentar as cinco monoculturas, bem como explorar a “Interlegalidade” tratada por Boaventura de Souza Santos, ampliando o leque de fontes interpretativas e podendo haver concepções jurídicas plurais.


Letícia E. de Matos 
Direito Matutino - 1° ano. 

A contraposição do Direito


Em 2001, o Tribunal de Justiça -RS, recebeu um recurso de Plínio Formiguieri e Valéria D. Formighieri, a respeito de uma reintegração de posse da Fazenda Primavera negada pelo então Tribunal, contra Loivo Dal Agnoll e outros indivíduos -pertencentes ao Movimento Sem Terra (MST)- vencedores do processo em que declarava o não cumprimento da função social da terra, por parte dos proprietários. Esse argumento está embasado na questão de a região, por mais produtiva que fosse avaliada por aqueles que possuíam a propriedade, estava sem uso. Nesse sentido, é possível depreender a contraposição da ecologia dos saberes frente a essa requisição negada, quando relacionado com a autora Sara Araújo, em seu texto sobre essa separação entre um direito do Norte e do Sul.
A comparação realizada pela Araújo destaca que o direito dominante no mundo contém uma ideologia do Norte, ou seja, países que compreendem que o seu entendimento das normas jurídicas deve ser estabelecido como parâmetro do que é certo e errado no direito, como forma de padronização dessa ciência. No caso, é perceptível que a predominância desse tipo de interpretação traz à tona uma escolha de defender-se a propriedade por influência de um entendimento capitalista e burguês do valor econômico da terra.  
Contudo, verifica-se uma contradição a respeito do recurso executado por esses donos da propriedade, em questão na necessidade de revisão da justiça em relação a reintegração de posse, visto que, como bem cita  Desembargador Carlos Rafael dos Santos Junior em seu voto, o artigo 5º da Constituição Federal destaca que todos os homens e mulheres são iguais perante o ordenamento jurídico, sendo que incisos desse artigo defendem certos direitos, entre eles à propriedade. Portanto, agregado a esse fator, dentro do tópico há o destaque para a função social da terra -significado de uso daquela propriedade para diversas atividades, como plantações, moradia e comércio.
Dentro disso, a escritora destacou o conceito de “epistemicídio”, compreendido como a aniquilação de interpretações do direito provenientes do Sul -o direito marginalizado- para afirmar que o direito atual é global, e por isso, procura a universalização. Contudo, existe uma contradição neste argumento dado que essa busca por generalizar é uma estratégia para exercer a dominação frente aqueles que não pertencem a epistemologia do norte, e com isso, além da incitação da monocultura do saber, a avaliação jurídica será influenciada por uma visão do direito que não corresponde a todas realidades sociais. Acrescentando nesse assunto, é de conhecimento público que o conflito agrário está presente especialmente nos países que tem uma cultura de grandes latifúndios, por esse motivo, é fundamental frisar a necessidade de um poder judiciário responsável em enfrentar situações problemas que existem no país, a partir de um entendimento do direito coeso e justo em relação aos direitos e deveres das partes envolvidas.
Logo, a interpretação do Tribunal a respeito de uma não reintegração de posse aos fazendeiros, visto que mesmo tendo direito a propriedade, ela eximia sua potencialidade. Portanto, está em legalidade com a norma fundamental e o contexto de vida da população, deste jeito, os pertencentes do grupo MST morando e produzindo tanto para sua subsistência quanto para uma possível venda de produtos excedentes, e com essa postura, há uma utilidade da terra que exerça sua função frente a sociedade.

Sarah Fernandes de Castro -Direito/noturno

Quando a bússola apontou para o Sul.


Quando a bússola apontou para o sul a diferença abissal da máquina jurídica encurtou e a Ecologia de Direito prosperou.

A socióloga Sara Araújo se propõe a uma reflexão sobre a partir de que matriz o campo jurídico toma forma, alertando sobre as “diferenças abissais”, que seria um apontamento de como diferenças, sobretudo sociais, acarretariam em atuações do Direito. A métrica estabelecida pela pensadora toma origem em um método que divide os âmbitos sociais entre “norte” e “sul”, sendo o primeiro aquele em que reside a hegemonia cultural e os rótulos dados socialmente como normativos, enquanto o segundo seria as ideologias popularmente intituladas como atrasadas e com pouco valor.

Em 2001, a Fazenda Primavera, em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, serviu de loco para o processo do Agravo de Instrumento Nº 7003434388, em que foi mobilizado o debate a cerca da função social da propriedade que viera sido ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Protegendo o Artigo 5º, incisos XXII e XXIII, que garante o direito à propriedade, e que essa atendera sua função social, respectivamente, o tribunal foi contra a reintegração de posse desejada pelos agravantes, dado que, em suma, não tinham provas para legitimar a produtividade de suas terras, e portanto essas não estariam cumprindo sua função social.

Englobando conceito e fato; O MST seria o “lado de lá”, o “Sul”, como define Sara Araújo. Ou seja, o lugar onde o Direito atua como Poder limitado, estando alojado nesse âmbito o MST, que tem seus dramas, luta e ideologias, se analisados do panorama hegemônico, rotulados como assimétricos, arcaicos, selvagens e “invisíveis”. Já o “lado de cá”, o norte, dita a cultura jurídica que será dada como predominante, é ocupado, no caso, pelos donos das terras. O efeito sociológico desse fenômeno, que divide os direitos em orientações, é o achatamento dos anseios do lado sul, tornando-os ‘invisíveis’, protegendo assim a hegemonia das forças do ‘’ lado de cá’’. Esse processo que cria uma monocultura faz com que o Direito incorpore uma razão metonímica, criando a impressão de um “Direito para todos”, ou seja, com regras polivalentes que refletem de maneira igual para todas as partes julgadas.

Dessa forma, a negação ao pavimento de tal Agravo de Instrumento desafia o pensamento abissal e contribui para a desconstrução da monocultura. Com isso, a Ecologia do Direito, que se manifesta quando a diversidade de Direitos se manifesta, felizmente prospera, trazendo esperanças para um sistema jurídico no qual a ‘interlegalidade’ seja atuante.

Matheus de Vilhena Moraes - Direito (noturno)

Desglobalizar para superar

Sara Araújo afirma que, por meio da razão metonímica, tem-se a americanização do mundo,
incluindo a colonização do Direito. Segundo a autora, o campo jurídico foi dominado por um
pensamento eurocêntrico típico do Norte, perpetuando as monoculturas que alimentam a
referida razão metonímica e impondo um sistema que trabalha sob a lógica capitalista.

A Lei nº 8629/93 regulamenta questões acerca da reforma agrária no Brasil. Um dos pontos
estruturais da reforma é a questão da produtividade da terra, medida de acordo com alguns
parâmetros. Contudo, esse próprio conceito é, em si, abstrato. Ao propor a distribuição de terras
visando a produtividade máxima da área rural, o Direito se mostra, tal qual a autora discute,
mergulhado na lógica do mercado, ignorando os sistemas de produção locais.
No agravo de instrumento nº 70003434388, pode-se observar o conceito de produtividade
sendo aplicado. Tal agravo foi negado, visto que, tal qual a argumentação dos ministros ao
votar, os proprietários estavam usando a terra de maneira improdutiva. Nesse sentido, a terra
deve cumprir sua função social, decisão a favor do Movimento Sem Terra, que ganhou o direito
de permanecer controlando a referida propriedade.
Cabe, por fim, a reflexão acerca dos moldes do Direito. Para Araújo, a saída para enfrentar a
colonização que atinge o meio jurídico é utilizar-se da ecologia de saberes para contrariar as
monoculturas. Desglobalizar o local e recuperar os ordenamentos jurídicos não reconhecidos
pela ortodoxia jurídica capitalista são os meios mais eficazes de produzir um direito
emancipado.


João Victor Vedovelli Zago (1º ano Direito noturno)

Outra visão sobre o direito


É comum a discussão história acerca do colonialismo e todos seus malefícios causados nos países periféricos, os quais não fazem parte de um sistema central e dominante. Sara Araújo, em seu trabalho “O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”, discorre uma visão além da comumente abordada, na qual expõe essa mesma realidade ligada ao direito, expondo uma replicação desse modelo e legitimando padrões predominantes. Assim, o direito se torna um mecanismo hegemônico e técnico, ao contrário de apresentar caracteres políticos, se atentando às margens sociais e se tornando um coletivo de fato. A autora ainda propõe pensar além de uma ideia simplista, pautada na dicotomia do caos e na ordem, para que se construa um ideal o qual permite vislumbrar realidades e temas socialmente complexos e difíceis.

No Agravo de Instrumento nº 70003434388, podemos analisar uma inserção positiva nas questões abordadas pela Sara, o qual julga o tema da posse de terra e os fundamentos acerca de sua função social. De fato, o ornamento jurídico brasileiro, se oculta de uma visão mais abrangente, havendo significativas lacunas quando analisamos tais polêmicas especificações, contudo, os desembargadores, nesse julgado, demonstram uma discussão além, decidindo a favor de prevalecer à função social da terra, visto sua falta de produtividade, e favorecendo ocupadores. A falta da norma especifica e todas as lacunas no ordenamento jurídico não representam um impasse para argumentar ou pleitear acerca de critérios mais sociais e, também, auxilia na desassociação de um histórico tanto dominante como capitalista, os quais representam uma neutralidade dentro no nosso sistema.

Pode-se ver, ainda nesse julgado, uma aproximação para uma zona de contato periférica e uma realização com o que Sara acredita que o direito deveria ser, ou seja, um instrumento mais “’provincializado’ e ‘desparoquializado’”¹. O julgado permitiu uma importante jurisprudência acerca de como nosso judiciário pode e deve discorrer sobre temáticas mais sociais, as quais nosso colonizador meio jurídico não consegue alcançar. Promove, também, outra visão sobre o direito, conjecturando toda sua multiplicidade e pluralidade, algo extremamente positivo para todo o cenário político brasileiro.

[1] ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.o 43, set/dez 2016, p. 105.

Pedro José Taveira Bachur - 1º Ano Direito Diurno

Reintegração de terras e Epistemologias do Sul


A realidade atual foi toda construída visando a perpetuação e o sucesso da lógica capitalista que tanto beneficia um seleto grupo de indivíduos na contemporaneidade. A organização política, influência midiática, e é claro, o ordenamento jurídico, são mecanismos utilizados para alcançar esse fim. Em sua tese, Sara Araújo reflete acerca da ação do direito dito ocidental, o eurocêntrico, na manutenção das amarras coloniais e imperialistas existentes desde o século XV.
Há uma constante hipervalorização do direito “posto”, positivado, com fortes influências europeias; e a conseqüente desvalorização daquele considerado como “local”, que expande as ferramentas para a resolução de conflitos (deixam de usar apenas o meio judicial), e busca uma justiça verdadeiramente mais justa, ao invés de favorecer, na maioria das vezes, os donos do poder e do capital. Enquanto o primeiro está ligado à ideias de monoculturas (tanto as literais, quanto as figurativas), produtividade e lucro; este se volta para a Ecologia dos Saberes, valorizando as Epistemologias do Sul (o conhecimento e modo de produzir tal conhecimento que estão fora das discussões centrais, sendo, muitas vezes, considerados inferiores).
É conforme essa visão que podemos analisar o Agravo de Instrumento nº 70003434388 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ajuizado pelo senhor Plinio Formighieri, na busca pela reintegração de terras de sua propriedade em Passo Fundo, RS, que fora ocupada por membros do MST. Tal pedido foi negado pelo tribunal da região após a comprovação da improdutividade da dita terra, baseando-se na função social da propriedade (condição sob a qual a propriedade é utilizada para o “bem social”, ou seja, mesmo pertencendo e dando lucros a particulares, possui um impacto positivo no resto da sociedade, sendo a produção de alimentos um bom exemplo), presente nos art. 5º (inciso XXIII) e 186 da Constituição Federal de 1988.
Apesar de se tratar de uma norma já positivada, é possível enxergar a construção de uma nova exegese da norma, voltada para os conceitos de Epistemologia do Sul, na qual os direitos sociais (moradia, subsistência) são postos acima de alguns outros particulares (posse da propriedade, independente de nenhum outro critério, como produtividade). Nessa situação, e em tantas outras que envolvem a desapropriação de terras, ou a negação de um pedido de reintegração de posse, vemos o bem coletivo sendo colocada acima dos interesses do mercado, contrariando a lógica capitalista liberal; sendo esse um aspecto positivo para Sara Araújo.

Julia Parreira Duarte Garcia - Direito Matutino

O Sul e o Norte Social


A questão agrária sempre gerou polêmica, principalmente no Brasil, país no qual a maior porção de terras produtivas está na mão de latifundiários e grandes fazendeiros. Entende-se que essa matéria vem desde o século XVI, quando a Coroa implantou as capitanias hereditárias, sistema no qual permitia que particulares explorassem uma enorme área. Todavia, esse problema de concentração de terras foi agravado com a criação da Lei te Terras de 1850, que tornou o solo uma moeda de troca, sendo, portanto, símbolo de poder e acentuando desigualdades fundiárias. Percebe-se, dessa maneira, que o acesso a terra no Brasil sempre foi dificultoso, criando, então, um monopólio de latifúndios.
Todavia, devido esse acumulo exagerado, há muitas terras que permanecem, propositalmente, improdutivas, aumentando cada vez mais a miséria no campo. Com isso, movimentos foram criados para combater esses abusos, como o MST, que ocupa áreas particulares consideradas improdutivas. Com isso, foram gerados inúmeros conflitos judiciais entre fazendeiros e trabalhadores do campo pela posse fundiária.
Um exemplo desse impasse é o julgado de 2001 realizado em Passos Fundo – RS, na Fazenda Primavera. De acordo com o processo, participantes do movimento do MST invadiram áreas particulares, assim, o proprietário reclamava por reintegração de posse. No entanto, a decisão judicial foi contra esse pedido, tornando-se, assim, uma resolução histórica por ir contra a hegemonia latifundiária. Alegou-se que a propriedade não apresentava os requisitos necessários para provar a sua produtividade, sendo que de acordo com o artigo 186 da Constituição Federal de 1988, toda propriedade deve cumprir a sua função social.
Esse fenômeno extraordinário pode ser entendido e relacionado através da percepção de Sara Araújo. Segundo a investigadora, não existe uma isonomia entre as pessoas, dessa forma, o direito deve ser emancipatório e não reforçador dessas diferenças.  Nota-se, portanto, que os integrantes do MST representam, de forma análoga ao pensamento de Araújo, o Sul social, já que eles são socialmente e juridicamente excluídos e os fazendeiros o Norte que por fazerem parte da elite social são juridicamente representados e por isso geralmente apenas os seus anseios são atendidos. Desse modo, percebe-se o peso desse julgado para a autonomia do direito, uma vez que ele reduziu as exclusões abissais a partir do momento que o sul foi exaltado.
Por conseguinte, conclui-se que o direito é uma ciência complexa que pode ser analisada de diversas maneiras, ele pode ser, portanto, conservador ou libertador. O julgado representa essa emancipação, já que garante representatividade para os socialmente invisíveis.

Laura Santos Pereira de Castro - Direito Matutino

Para além da igualdade formal

Em um contexto em que a igualdade formal, tão reverenciada nas grandes revoluções burguesas, começa a ser alvo de críticas e que se coloca em relevo a sua insuficiência no que tange sua capacidade de se materializar e  atingir todas as esferas sociais, grupos historicamente marginalizados se reúnem em movimentos para lutar contra as desigualdades reinantes dentro desse panorama de exclusões abissais que bloqueiam as fronteiras do progresso. Um dos exemplos mais marcantes é o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que representa um dos mais importantes movimentos sociais em busca da reforma agrária, reivindicando uma distribuição mais equitativa das terras em um dos países mais desiguais em relação a esta questão. 

 Uma das estratégias utilizadas por esse movimento se resume nas ocupações coletivas de latifúndios improdutivos, que deixaram de  cumprir sua função social. Eles também se apoiam em estratégias jurídicas, recorrendo aos tribunais, no entanto, este também é um dos caminhos utilizados pelos grandes latifundiários como forma de reação aos membros e líderes do MST, o que pode ser exemplificado no agravo de instrumento interposto por Plínio Formighieri e Valéria  Dreyer Formighieri contra a decisão judicial que não acatou a liminar reintegratória. Os agravantes sustentavam que sua propriedade havia sido invadida pelos integrantes do MST e requeriam a reintegração de posse, defendendo que neste caso não era pertinente uma discussão a respeito do cumprimento da função social da propriedade, uma vez que ela era produtiva. 

Tal argumento, aceito pelo desembargador favorável ao agravo, assim como os demais colocados  em seu voto, imprimem a ideia ilusória de um direito igualitário que deve ser cumprido por todos, que a lei é para todos e ninguém pode passar por cima dela, ou seja, se os integrantes do MST desejam a desapropriação da fazenda para fins de reforma agrária, que observem os devidos trâmites legais, que obedeçam a legislação vigente no  País, já que não é " desrespeitando as leis que eles alcançarão seus fins". A lei, nesta perspectiva que naturaliza as diferenças e nega a existência de um abismo entre os sujeitos sociais, deve abranger todos de maneira idêntica. Mas será que são realmente iguais? Sara Araújo, ao questionar essa suposta igualdade, busca expor as exclusões abissais impostas por um um projeto de modernidade que tenta transformar tudo em um reflexo do norte, um norte cultural, social, das mentalidades, por meio de uma razão metonímica que toma a parte pelo todo, vendendo a noção de um direito realmente igualitário, legítimo, mas que mostra sua condição de insuficiência na produção de condições mínimas de  sua sobrevivência.

É necessário, portanto, reconhecer a abissalidade entre os diferentes atores sociais, pensar o direito além de uma perspectiva exclusivamente moderna,  não como uma crítica à modernidade, mas à modernidade baseada no norte, que estabelece uma visão única do direito, da igualdade, da liberdade. A decisão judicial a favor do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra demonstra que os tribunais também podem atuar de modo a beneficiar as classes excluídos e oprimidas, se comprometendo com a justiça social  e contribuindo para a diminuição de determinados privilégios gozados pelas classes dominantes, oferecendo visibilidade e existência à parte mais desfavorecida, em busca de uma igualdade material para além da meramente formal.











Pluralismo Jurídico: esse é o caminho.

Ao analisar o julgado do Agravo de Instrumento Nº CRSJ 70003434388/2001, onde se discutia a procedência ou não de uma liminar que autorizaria uma reintegração de posse antes de julgar o mérito da ação. Acontece que todo o embate teórico, visto em cada voto dos desembargadores seguiram em torno de como interpretar a finalidade da FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDAE, ou seja, esta norma contida em nosso ordenamento jurídico diz o quê?
Ocorre que no julgado três desembargadores votaram, sendo que dois foram contrários a concessão da liminar o DES. CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JUNIOR (RELATOR) e o DES. MÁRIO JOSÉ GOMES PEREIRA (REVISOR); Pautados em uma visão social da norma que regulamenta a desapropriação da terra, junta-se ao   motivo de que a terra não estava sendo aproveitada como deveria, razão pelo qual ensejou a invasão pelo MST, de forma lógica, poderia sim a propriedade ser melhor aproveitada por aqueles que estavam ocupando a propriedade naquele momento.
De todo o exposto, a conclusão é única. Não há mais como se vedar, ao Juiz, a investigação acerca da função social da propriedade, quando se vê o Judiciário diante de conflitos agrários como o ora em pauta. Sustentar o contrário, a meu juízo, significa negar vigência ao próprio Texto Maior, submetendo-o a garrote de norma processual que tem por finalidade, exatamente, dar efetividade ao direito material, jamais impedir seu exercício. E isto é violar a lei. (pag. 10).
Um mandado de desocupação liminar, sem que os trabalhadores sem-terra tenham previamente citados, a Polícia embalada com fuzis e a resistência dos invasores – eis o estopim das tragédias que têm banhado de sangue, sempre dos desprotegidos, o meio rural brasileiro.” (Caderno Direito e Justiça, Correio Brasiliense de 6/11/95). (pag. 21).
O voto favorável à concessão da liminar coube ao DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA, que alegou “que justiça célere é que, talvez, busquem os sem-terras. Mas não adianta buscar uma justiça célere que não traz justiça, ao não serem observados os princípios legais e constitucionais vigentes, viciando, de nulidade absoluta, qualquer tentativa de descumprimento da Ordem Social”; Entendo que com um linguajar próprio do judiciário e uma interpretação da norma totalmente positivado e engessado acabou por opinar pela invisibilidade do movimento dos sem-terra, sendo assim, acaba por gerar injustiça.
Não há dúvidas de que os invasores são sem-terras, do Movimento denominado MST – não reconhecido oficialmente como Associação de Classe ou algo assemelhado -, e que pretendem a reforma agrária a qualquer custo. Mesmo que para isso tenham que invadir áreas rurais, cujos proprietários estão a cultivá-las. 
Não há dúvidas de que os sem-terras não estão à procura de um melhor aproveitamento da propriedade privada, mas sim querendo usar o esbulho possessório como meio político de obrigar os Governos Federais e Estaduais a tomarem uma atitude desapropriatória de terras, para resolver a tão almejada reforma agrária e urbana. (pag.29) 
Lamentável que tenhamos julgadores com esse tipo de interpretação, vez que o pedido ainda não alcançava a esfera de mérito, somente tinha o caráter de liminar.
Em uma visão utópica, ainda nesse julgado a decisão foi favorável; Visto que, a regra de julgados como este trás a contemplação dos mais privilegiados em detrimento dos menos favorecidos. A impressão que se tem é que quando o tema evolve o social deve-se ter um pouco mais de cautela ao analisar os critérios do direito, pois nota-se que o jurídico em suas linhas gerais vem a tempos afastando e excluindo aqueles mais necessitados. Mesmo dentro de uma linguagem jurídica a impressão que se tem dos nossos juristas é que se alguém em seus votos for a favor do viés social este passa ser discriminado dentro de sua classe.
Ao confrontar o julgado com o texto da autora Sara ARAÚJO, fica claro o entendimento que o pluralismo jurídico existe e ele é quem legitima e estrutura o nosso ordenamento, opiniões e entendimentos pautados em linguagens e técnicas jurídicas que ao dizer o direito acaba por criar verdadeiros abismos em nossa sociedade.
Sara ilustrou essa distância social dizendo que o pensamento moderno impõe e estabelece os limites de uma linha abissal que divide o mundo entre dois lados “o norte e o sul”, deixando a sociedade de uma maneira desigual e tornando estes invisíveis dentro de uma universalidade global.
A autora associa às ideias de racionalidade, neutralidade, objetividade e justiça, a linguagem jurídica moderna, esta legitimando o modelo de dominação colonial capitalista, espalhando e chancelando uma ilusória ordem natural. Destaca a autora ainda a importância da questão da linguagem jurídica, pois ainda que estejamos imbuídos de cede de mudança não há outro meio de estabelecer pontes, sem que os termos sejam definidos pelo direito.
O pluralismo jurídico é então proposto como instrumento conceptual de uma ecologia de direitos e de justiças que pretende não só reconhecer a pluralidade, mas criar pontes de diálogo que permitam promover aprendizagens jurídicas recíprocas entre o Sul e o Norte, ampliando o horizonte de possibilidades políticas.
Voltando ao julgado não há como deixar de verificar que a decisão atendeu o espirito do legislador que estabeleceu desde a constituição de 1916, a ideia da função social da propriedade, ou seja, produzir e ter uma finalidade especifica, ora mais de 100 anos se passaram e nossos tribunais ainda insistem em proteger os mais ricos e os latifundiários e acabam por fechar os olhos para as desigualdades existentes em todos os lugares do nosso pais.
Espantoso ver que ainda nos dias de hoje temas como a FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE, carece de toda uma interpretação subjetiva, pois nossos legisladores sempre voltados para temas ligados ao capitalismo moderno acabam por esquecerem-se do povo brasileiro.
Diante desse cenário cabe a todo futuro operador do direito à responsabilidade da transformação, inspirados por um pluralismo jurídico no qual o desejo de igualdade social dentro de uma ecologia do saber possa transcender para a ecologia jurídica e quem sabe, talvez possamos assim fazer ou contribuir para um equilíbrio social com o objetivo de estreitar o abismo existente entre o sul e o norte.

EMERSON DA SILVA REIS
DIREITO XXXVI (DIURNO)

Superamos o Colonialismo?

    Segundo Deocleciano Torrieri Guimarães, em seu Dicionário Jurídico, um Agravo de Instrumento é um recurso cabível contra as decisões interlocutórias proferidas no processo, objetivando que estas sejam modificadas ou reformadas. Difere de Apelação já que essa é interponível da sentença (GUIMARÃES, 2019. p.33). O presente Agravo de Instrumento Nº 70003434388 foi interposto perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no ano de 2001 pelas partes requerentes nos autos de origem objetivando, conforme definimos, a revisão de uma decisão interlocutória que negou o pedido liminar de reintegração de posse aos requerentes, haja vista sua fazenda ter sido ocupada por integrantes do Movimento Sem Terra (MST). A análise do pedido girou em torno do debate da função social da propriedade, instituto constitucional que, em termos gerais, condiciona o direito à propriedade ao dever de se atender a função social desta propriedade, da terra. 
    Analisando o caso à luz da socióloga Sara Araújo, podemos relacionar muitos de seus conceitos e ideias. Doutora em Sociologia do Direito, Sara em sua obra O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone propõe a ideia de que o Direito Moderno precisa ser desconstruído, uma vez que serviu e serve até hoje de instrumento eurocêntrico de reprodução do Colonialismo e de exclusões sociais dele advindas. Lembremo-nos da concepção histórica de Colonialismo, ainda que em termos gerais: podemos definir como sendo a condição de dominação e exploração de uma metrópole - normalmente europeia - frente à um território submisso, uma colônia, que esta reivinidicou unilateralmente como sua quando de um processo expansionista. Quando falamos - neste contexto colonialista - sobre dominação, devemos também nos lembrar que nos vários exemplos que a história nos traz a dominação não se fez somente por força militar, mas sim também por dominação cultural, imposições de culturas eurocêntricas em detrimento de culturas locais. Como exemplo podemos citar o processo institucionalizado de catequizar os índios no Brasil, que caracterizou-se principalmente pela imposição da religião católica em detrimento às religiões nativas. Sobre este assunto, podemos retomar a ideia weberiana de que não existem valores universais, mas sim valores que variam conforme a região e a cultura local. Além no raciocínio do autor, conclui-se que assim como nos casos colonialistas a imposição de um valor tido como “universal” não passa de mero instrumento de dominação. 
É sobre essa tentativa de dominação e universalização que Sara discorre muito em sua obra. Podemos citar das várias imposições que a metrópole fazia para com a colônia a imposição também do Direito, do seu sistema jurídico de leis e sistemas processuais. Vale lembrar que a metrópole por ter justamente este teor e este intuito de manter a colônia como colônia, impunha à está um Direito composto por institutos que mantinham essa condição de dominação e submissão. Mas como assim um Direito que mantém a submissão? Analisando empiricamente exemplos históricos podemos concluir e notar isso na realidade: a Inconfidência Mineira, que objetivava se rebelar com a Coroa e a Metrópole devido à alta tributação teve uma penalidade jurídica extremamente forte, com condenações à extradições e até à morte. É deste exemplo que podemos tirar a ideia de um Direito colonialista que visava a dominação, pois nele se observa o Direito como instrumento repressor de manutenção desta condição submissa da Colônia. 
Para alguns esse debate pode parecer infrutífero, pois afinal - falando especificamente do Brasil - não somos mais colônia de Portugal a quase duzentos anos, porém à estes apresentamos a ideia da autora quando nos diz que o Colonialismo realmente acabou, mas que as narrativas hegemônicas de dominação nunca foram postas em cheque ou questionadas: ainda que o processo por si tenha acabado, não houve historicamente a superação desse caráter de hegemonia. Fica isto evidente quando citamos - e aí já entrando no tema do Julgado - a distribuição fundiária no país. Sabe-se que um dos pilares do sistema econômico de plantation era o latifúndio, ou seja, a grande propriedade rural acumulada nas mãos de poucos. Se pegarmos desde nossa Independência até o presente momento, nunca houveram grandes e profundas mudanças nesta condição de acúmulo de grandes propriedades rurais nas mãos de poucos, em outras palavras - consonante com a autora - o Colonialismo acabou, mas muitas de suas características nunca foram superadas, perdurando até a atualidade. Os “reformistas do Direito” não se vêem como herdeiros de uma tradição expansionista, mas como agentes de uma verdade universal (p. 94): tal qual são os atuais grandes proprietários de terra - como os do presente Agravo -, que não se vêem como resultado de um passado de extrema concentração fundiária, mas sim como agentes de uma verdade universal, como o direito absoluto à propriedade, por exemplo. Logo percebemos no raciocínio como o colonialismo europeu deixou um legado de profunda desigualdade e injustiças que nunca foram superadas. 
Falando agora do Movimento Sem Terra (MST) que é alvo de diversas controvérsias há anos, podemos relacionar à eles a ideia da autora de que há uma rejeição por padrões locais de produção, haja vista estarmos globalmente num contexto capitalista de produção e consumo em massa. Para ela, os padrões locais que não se enquadram no padrão global são invisibilizados, repudiados, vistos como atrasados. O próprio MST se enquadra nisto por pregar um modo de produção local e que não visa sumariamente o lucro, além de bater de frente com os pilares que já citamos, como o grande latifúndio. 
Atualmente, existem - ainda que não se efetivando concretamente sempre - vários institutos jurídicos que visam combater esta situação, como a própria função social da terra, recurso utilizado como forte argumento a favor da ocupação do MST. A autora cita que “a monocultura jurídica despreza os direitos locais” (p.97), porém ainda existem raros e felizes exemplos de que a situação pode mudar, como por exemplo o Júri Indígena realizado no Estado de Roraima, notável exemplo de como o sistema jurídico pode sim não desprezar “Direitos locais”: ao levar para dentro da comunidade indígena o Julgamento, o Tribunal acabou por felizmente fugir à esta regra de desprezo aos direitos locais, uma vez que os valorizou e deu a sua devida importância. Exemplos como este e a Função Social da terra nos mostram que, embora estarmos muito longe de superarmos o passado colonialista, ainda pode haver esperança. 

Citação complementar: GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Jurídico. Atualização de Ana Claudia Schwenk dos Santos. 23 ed. São Paulo: Ridell, 2019. 

Adelino Mattos Marshal Neto - Direito Matutino

Uma breve suspensão


 O caso da Fazenda Primavera encontra-se em uma espécie de ‘’breve suspensão’’ das epistemologias do Norte, uma vez que o direito é aplicado em favor de um grupo minoritário e em detrimento do capital. Breve, porque não é uma decisão recorrente aos julgados semelhantes.

 A monocultura jurídica – a qual, segundo Sara Araújo, ‘’ despreza os direitos locais e os universos jurídicos que regem formas de produtividade não capitalistas’’ – é aplicada a partir de uma ideia de universalização do direito. A princípio, parece interessante a ideia de ‘’universalizar’’; entretanto, não é algo de fato justo. A linha abissal que existe entre a noção de ‘’Norte x Sul’’ inviabiliza a ideia de um único sistema jurídico que possa abranger todos os diferentes tipos de realidades. Quando se trata do Brasil, os abismos sociais encontrados são absurdamente profundos – como pode ser facilmente percebido em uma análise sobre a distribuição desigual de renda, em que 10% da população concentrava 43,3% de toda a renda do país.* Portanto, uma decisão em favor de um grupo que se encontra no ‘’modelo sulista’’ em um país no qual as vitórias do ‘’modelo nortista’’ são esmagadoramente predominantes, é muito significante.

 Seguindo ainda o pensamento de Araújo, o MST é tratado como inferior, selvagem, primitivo, porque o padrão da sociedade está pautado em uma imagem do futuro, e esta imagem de futuro é individualista e egocêntrica. Ou seja, esse pensamento está cercado de ideais que não condizem com as realidades existentes. O ‘’futuro nortista’’ é o que entendemos como bolhas de privilégios. O MST torna-se um movimento criminoso aos olhos de quem vê o direito de propriedade acima de toda e qualquer coisa, mas a questão é que ele é uma forma de resistência à invisibilização e ao silenciamento que as pessoas deixadas às margens da sociedade sofrem. 

 Assim como afirma Sara Araújo, ‘’
esse modelo jurídico, que se apresenta como técnico e não político, respeita mais os mercados do que as pessoas’’. Defender a reintegração de posse de uma terra em que a função social não está sendo cumprida é defender que mais vale o valor da terra do que as vidas ali resistentes.


Anielly Schiavinato Leite – 1° Noturno