sábado, 31 de agosto de 2019

Superamos o Colonialismo?

    Segundo Deocleciano Torrieri Guimarães, em seu Dicionário Jurídico, um Agravo de Instrumento é um recurso cabível contra as decisões interlocutórias proferidas no processo, objetivando que estas sejam modificadas ou reformadas. Difere de Apelação já que essa é interponível da sentença (GUIMARÃES, 2019. p.33). O presente Agravo de Instrumento Nº 70003434388 foi interposto perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no ano de 2001 pelas partes requerentes nos autos de origem objetivando, conforme definimos, a revisão de uma decisão interlocutória que negou o pedido liminar de reintegração de posse aos requerentes, haja vista sua fazenda ter sido ocupada por integrantes do Movimento Sem Terra (MST). A análise do pedido girou em torno do debate da função social da propriedade, instituto constitucional que, em termos gerais, condiciona o direito à propriedade ao dever de se atender a função social desta propriedade, da terra. 
    Analisando o caso à luz da socióloga Sara Araújo, podemos relacionar muitos de seus conceitos e ideias. Doutora em Sociologia do Direito, Sara em sua obra O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone propõe a ideia de que o Direito Moderno precisa ser desconstruído, uma vez que serviu e serve até hoje de instrumento eurocêntrico de reprodução do Colonialismo e de exclusões sociais dele advindas. Lembremo-nos da concepção histórica de Colonialismo, ainda que em termos gerais: podemos definir como sendo a condição de dominação e exploração de uma metrópole - normalmente europeia - frente à um território submisso, uma colônia, que esta reivinidicou unilateralmente como sua quando de um processo expansionista. Quando falamos - neste contexto colonialista - sobre dominação, devemos também nos lembrar que nos vários exemplos que a história nos traz a dominação não se fez somente por força militar, mas sim também por dominação cultural, imposições de culturas eurocêntricas em detrimento de culturas locais. Como exemplo podemos citar o processo institucionalizado de catequizar os índios no Brasil, que caracterizou-se principalmente pela imposição da religião católica em detrimento às religiões nativas. Sobre este assunto, podemos retomar a ideia weberiana de que não existem valores universais, mas sim valores que variam conforme a região e a cultura local. Além no raciocínio do autor, conclui-se que assim como nos casos colonialistas a imposição de um valor tido como “universal” não passa de mero instrumento de dominação. 
É sobre essa tentativa de dominação e universalização que Sara discorre muito em sua obra. Podemos citar das várias imposições que a metrópole fazia para com a colônia a imposição também do Direito, do seu sistema jurídico de leis e sistemas processuais. Vale lembrar que a metrópole por ter justamente este teor e este intuito de manter a colônia como colônia, impunha à está um Direito composto por institutos que mantinham essa condição de dominação e submissão. Mas como assim um Direito que mantém a submissão? Analisando empiricamente exemplos históricos podemos concluir e notar isso na realidade: a Inconfidência Mineira, que objetivava se rebelar com a Coroa e a Metrópole devido à alta tributação teve uma penalidade jurídica extremamente forte, com condenações à extradições e até à morte. É deste exemplo que podemos tirar a ideia de um Direito colonialista que visava a dominação, pois nele se observa o Direito como instrumento repressor de manutenção desta condição submissa da Colônia. 
Para alguns esse debate pode parecer infrutífero, pois afinal - falando especificamente do Brasil - não somos mais colônia de Portugal a quase duzentos anos, porém à estes apresentamos a ideia da autora quando nos diz que o Colonialismo realmente acabou, mas que as narrativas hegemônicas de dominação nunca foram postas em cheque ou questionadas: ainda que o processo por si tenha acabado, não houve historicamente a superação desse caráter de hegemonia. Fica isto evidente quando citamos - e aí já entrando no tema do Julgado - a distribuição fundiária no país. Sabe-se que um dos pilares do sistema econômico de plantation era o latifúndio, ou seja, a grande propriedade rural acumulada nas mãos de poucos. Se pegarmos desde nossa Independência até o presente momento, nunca houveram grandes e profundas mudanças nesta condição de acúmulo de grandes propriedades rurais nas mãos de poucos, em outras palavras - consonante com a autora - o Colonialismo acabou, mas muitas de suas características nunca foram superadas, perdurando até a atualidade. Os “reformistas do Direito” não se vêem como herdeiros de uma tradição expansionista, mas como agentes de uma verdade universal (p. 94): tal qual são os atuais grandes proprietários de terra - como os do presente Agravo -, que não se vêem como resultado de um passado de extrema concentração fundiária, mas sim como agentes de uma verdade universal, como o direito absoluto à propriedade, por exemplo. Logo percebemos no raciocínio como o colonialismo europeu deixou um legado de profunda desigualdade e injustiças que nunca foram superadas. 
Falando agora do Movimento Sem Terra (MST) que é alvo de diversas controvérsias há anos, podemos relacionar à eles a ideia da autora de que há uma rejeição por padrões locais de produção, haja vista estarmos globalmente num contexto capitalista de produção e consumo em massa. Para ela, os padrões locais que não se enquadram no padrão global são invisibilizados, repudiados, vistos como atrasados. O próprio MST se enquadra nisto por pregar um modo de produção local e que não visa sumariamente o lucro, além de bater de frente com os pilares que já citamos, como o grande latifúndio. 
Atualmente, existem - ainda que não se efetivando concretamente sempre - vários institutos jurídicos que visam combater esta situação, como a própria função social da terra, recurso utilizado como forte argumento a favor da ocupação do MST. A autora cita que “a monocultura jurídica despreza os direitos locais” (p.97), porém ainda existem raros e felizes exemplos de que a situação pode mudar, como por exemplo o Júri Indígena realizado no Estado de Roraima, notável exemplo de como o sistema jurídico pode sim não desprezar “Direitos locais”: ao levar para dentro da comunidade indígena o Julgamento, o Tribunal acabou por felizmente fugir à esta regra de desprezo aos direitos locais, uma vez que os valorizou e deu a sua devida importância. Exemplos como este e a Função Social da terra nos mostram que, embora estarmos muito longe de superarmos o passado colonialista, ainda pode haver esperança. 

Citação complementar: GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Jurídico. Atualização de Ana Claudia Schwenk dos Santos. 23 ed. São Paulo: Ridell, 2019. 

Adelino Mattos Marshal Neto - Direito Matutino

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