domingo, 1 de setembro de 2019

Epistemologias que se excluem, abismos que se abrem


Os ordenamentos jurídicos mundiais atualmente estão passando por um processo de homogeneização, baseada nos fundamentos capitalistas de que todas as estruturas da vida social devem ser semelhantes em todo o mundo.   Assim, ele é formulado utilizando-se de ideais provenientes das epistemologias do Norte, isto é, do hemisfério Norte, onde se localizam os países com maior desenvolvimento econômico do mundo. Como resultado, temos em diversos lugares do mundo ordenamentos que não se adéquam a esses princípios, uma vez que não foram feitos considerando a realidade social desta localidade.

A esse fenômeno, Sara Araújo da o nome de visão metonímica, que é justamente considerar que algo que é efetivo e benéfico em um lugar, com uma cultura, também irá funcionar em todos os lugares do mundo. Desse modo, tal fenômeno pode ser observado nos procedimentos necessários para que haja a desapropriação de uma propriedade que não esteja cumprindo sua função social, que demandam enorme quantidade de tempo, o que contrasta com a realidade das famílias que ocupam tais propriedades, que não tem onde produzir seu próprio sustento, que não podem esperar os longos anos para que seja proferida uma sentença, pois a fome e a morte não esperam. Portanto, conclui-se que o argumento de necessidade de cumprimento do devido processo legal utilizada contra membros do movimento sem terra (MST), pelo Des. Luis Augusto Braga, no Agravo de Instrumento Nº70003434388, é complemente fundamento na ideologia do Norte, sem considerar que a realidade social do Brasil é diversa dos países nos quais ela foi desenvolvida: aqui, a miséria e a desigualdade social são reais e iminentes.

Ademais, o Des. Braga, único a votar em favor dos fazendeiros, direcionado pelo ponto de vista de homogeneidade do ordenamento, acuso os membros do MST de causarem insegurança social ao ocuparem as fazendas. Todavia, ao analisar sob o olhar das epistemologias do Sul, entende-se que o que este movimento faz é o contrário do que é acusado pelo desembargador, uma vez que buscam é gerar segurança social aqueles que foram menosprezados pelo Direito por não terem condições de se adequarem ao modelo capitalista de vida que o Direito do Norte impõe sobre as nações do Sul, lhes fornecendo o mínimo existencial para que possam viver de forma digna. Logo, se o local ocupado estava sendo usado de forma inadequada, não cumprindo com seu dever exercer a função social da terra, que é produzir em proveito da sociedade, não é ameaça a paz social ocupa-la, até que sejam realizados os procedimentos legais que tanto defendem as epistemologias do Norte, favorecendo, assim, a vida e o bem estar de inúmeras famílias.

Portanto, ao defender uma ecologia de direitos e de justiças, Sara Araújo estabelece que uma epistemologia não deve suprimir a outra, mas sim ambas exercerem influência na estruturação do ordenamento jurídico,como duas pontes que interligam as epistemologias dos dois hemisférios, fazendo com que ele tenha múltiplos pontos de vista em sua concepção. Também, é necessário enfatizar o ordenamento jurídico vigente não deve ser ignorado ou desconsiderado, mas sim interpretado de forma a contemplar as necessidades sociais do país, como ocorreu no caso citado, onde os desembargadores, por voto da maioria, decidiram deixar a posse da terra para aqueles que a ocupavam fazendo valer os dizeres da Carta Magna. Com isso, conclui-se que o Direito brasileiro ainda é saturado pelas epistemologias do norte em sua conjectura, mas que seus operadores, sobretudo aqueles das instâncias superiores orientam a sua interpretação, por meio da hermenêutica e outras técnicas jurídicas, visando se ater a realidade social que o país enfrenta, e não apenas ás duras, rígidas e restritivas letras da lei.

Júlia Veríssimo Barbosa - Direito ( Noturno)





Tradição Secular e o Pluralismo Jurídico

  O agravo de instrumento de número 70003434388 abordado em aula traz à tona questões importantes ao campo jurídico, pois elucida pontos como a desigualdade e a questão fundiária no Brasil, além do nosso próprio ordenamento jurídico. Dessa forma, é imediata a conexão com as discussões propostas pela pensadora Sara Araújo sobre as configurações epistêmicas do campo jurídico.
  A questão fundiária brasileira sempre se configurou como uma situação conflituosa, e a desigualdade na distribuição de terrenos, portanto, é uma constante no nosso cenário. Entretanto, essa linha abissal não foi uma construção ao acaso, se trata de uma ‘‘epistemologia do norte’’, um direito estranho implantado forçadamente ao território nacional. O Brasil como um país de histórico colonial, teve por anos um sistema jurídico alheio a sua conformação fática, por conseguinte a repartição de terras foi sujeita a única razão de satisfazer os desejos da metrópole, através da ‘‘Lei de Terras’’ – instrumento jurídico que garantia o direito a posse de terras apenas pela efeito da compra por cidadãos específicos - e do descaso organizacional do império português estabeleceu-se um arranjo desigual de latifúndios e terras devolutas pelo país. Desse modo, assim seguiu-se a tradição fundiária brasileira, em que observamos ainda hoje suas produções de inexistências e desigualdades.
   Contudo, é preciso constatar que a nossa constituição como uma constituição dirigente tem pretensão de realizar transformações econômicas e sociais, assegurando por exemplo a função social da terra e se intenciona a realizar uma melhor distribuição fundiária. 
   Tendo isso em vista, o caso do julgado se encontra justamente no embate entre uma tradição secular de desigualdade e um pluralismo jurídico subversivo. Dado que os membros do MST ocuparam um terreno improdutivo e os donos tentaram reaver a posse com um pedido de reintegração, mas como fora constatado a improdutividade do terreno, a reintegração não foi cedida. É fato que os membros do MST tinham como direito assegurado a possibilidade de ocupar a terra. Todavia, se cabe a critica de que não fora seguido o devido processo legal e a ocupação foi feita antes que o Estado a permitisse. 
  Para que o pluralismo jurídico tenha um efeito real em nossa sociedade é necessário que os ordenamentos prévios seja seguidos, por mais que a situação avaliada tenha garantido uma condição mais igualitária, quebrar os processos legais tem um efeito de inseguridade jurídica e pode acarretar brechas para que situações que naturalizam ainda mais as diferenças se concretizem. 


Jaqueline Sayuri Marcola Abe - 1º ano Direito Matutino 

O Direito e o interesse burguês

   Quem se interessa pelo Direito como instrumento de libertação se defronta, durante os estudos e a prática jurídica, com uma pergunta feita por Boaventura de Souza Santos: pode o Direito ser emancipatório? A estudiosa Sara Araújo se dedicou a entender qual é a lógica do pensamento moderno. Para ela, a ciência que possuímos tem como objetivo principal a reprodução de padrões europeizados, ou seja, cópias das sociedades que outrora colonizaram boa parte do mundo. Assim, a ciência busca um conhecimento de valorização do que vem da Europa (e dos Estados Unidos, desde o século passado) em detrimento de qualquer outra sociedade, que é normalmente pautada de forma maligna ou satírica. Se estabelece uma busca de conhecimentos que não passa de um evolucionismo velado e "atualizado". Araújo trabalha com o conceito das Epistemologias do Sul, que seriam as ciências das regiões do Sul do globo. Essas, desde sempre são caladas e inferiorizadas, seja pela falta do que dizer, seja pelo desconhecimento da forma de dizer. As ciências nativas vivem na trilha de formas exportadas que, na maior parte das vezes, não fazem sentido nas sociedades.
  Esse método científico é visto, também, no Direito. Esse é cada vez mais tecnicista, sendo comercializado atualmente inclusive na figura das startups jurídicas. Essa reprodução tecnicista é uma forma de manutenção dos antigos padrões e de esquecimento da importância do ser humano em detrimento do mercado, por exemplo. Nesse sentido, passou-se, em 2001, um caso pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reflete tudo o que é dito por Araújo. Um latifundiário foi à justiça visando a reintegração de posse de uma fazenda que passara a ser um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o polêmico MST. A Fazenda Primavera, ao que foi entendido à época, era improdutiva e não cumpriria a função social prevista constitucionalmente. É um caso que explicita como o Direito serve, na maior parte das vezes, ao interesse dos grandes. Nesse caso, porém, o tribunal respondeu em favor do Movimento dos Sem Terra. Para desespero do latifundiário, foi entendido pelos magistrados a importância de que a posse da terra seja de quem a de fato utiliza. A terra por e pelo povo.
   Independente desse caso, vale a reflexão como futuros membros do sistema de justiça do país. O Direito é uma área extremamente elitizada e, assim, ele vai servir aos interesses sociais quando lhe convir. É importante que haja uma constante monitoração da sociedade para os limites do que é cabível ao sistema jurídico e do que extrapola. Os processos de judicialização podem servir à sociedade mas também podem tomar o caminho contrário, que é o previsível segundo os estudos de Sara Araújo e de Boaventura de Souza Santos. A extrema liberdade e confiança por vezes dada aos magistrados tem altas chances de gerar casos polêmicos como a Operação Lava Jato, uma operação enviesada e mais política do que jurídica. Ao tratar a classe da magistratura que temos hoje como sumidades se assume o risco de manter e, talvez, aumentar o poder dos interesses burgueses em uma sociedade já tão estratificada.

Gustavo Carneiro Pinto
1º Ano de Direito - Noturno

A Primazia que Subalterniza e a Ecologia que Emancipa



   O panorama global contemporâneo nos revela a preponderância epistêmica residente no âmago da produção científica moderna. A disseminação ativa, direta e indireta de um rigor técnico e metodológico específico, unilateral, concebe à ciência moderna um véu pretensamente universal e hegemônico, pelo qual assume a cruzada virtuosa ilusória, em nome das verdades. O sustentáculo que embasa essa jornada epistemológica deriva, majoritariamente, das correntes positivistas e liberais, traçando, no alto da última instância das pesquisas, fundamentos norteados pelo pragmatismo, pela produtividade e, enfim, o lucro. Esse caráter, à luz da globalização, converte-se na necessidade expansionista destes 3 aspectos-chave da produção do conhecimento ocidental. O processo difusivo, no entanto, assume facetas distintas, seja sob nuances autoritárias, como a subalternização de culturas nativas, seja pela simples exaltação midiática.
   Nesse ínterim, evoca-se a ideia responsável por caracterizar esse cenário: “O Primado da Ciência Moderna”. Primazia que, historicamente, tratou-se de uma verdadeira guerra pela obtenção do trono epistemológico, que dita e legitima as esferas qualitativa e verídica da produção gnóstica (saber). Ademais, a supremacia de um único modelo supostamente capaz de compreender a realidade fática resulta em sua dissipação para as demais áreas do conhecimento. Consequentemente, a ciência jurídica assimila tais premissas, assentando-se – inevitavelmente – sobre dispositivos próprios da ideologia propagada pelo capital. Desse modo, a sistematização do saber transpõe o âmbito cognitivo e assume a incumbência de sistematizar as condutas em meio ao corpo social, os indivíduos sujeitos pelo Direito. Relativamente a última questão, Sara Araújo – socióloga – elabora um artigo, denominado “O Primado do Direito e as Exclusões Abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”.
   A acadêmica, ao dissertar acerca da uniformização eurocêntrica dos princípios que regem a normatividade moderna, independentemente de cultura, etnia e localização, revela a essência determinista que regula as futuras decisões deferidas na magistratura. Essa onipresença do Direito, embasado sobre os pilares desenvolvimentistas ocidentais, edifica as fronteiras que delineiam o horizonte de possibilidades dentro do campo jurídico, promovendo um ponto de inflexão às necessidades concretas do corpo social. Não obstante, é frequentemente reintroduzido como única fonte capaz de suscitar soluções às inúmeras problemáticas do cotidiano. Tal rigidez diante da possibilidade de incutir, no cerne das pautas sociais, uma decisão que – de fato – atenda ao bem-estar coletivo, provém do Habitus jurídico, presente, a princípio, no texto normativo, estendendo-se aos operadores do direito. Não se trata, portanto, do simples rigor tecnicista – pertencente à prática jurídica, mas de um objetivo claro: a manutenção do status quo.
   Com base na perspectiva abordada, Sara Araújo, a partir dos estudos e ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos, ilustra o evidente distanciamento abissal, interposto entre as epistemologias do “Norte e Sul”. Entretanto, mesmo mediante tamanha distinção cultural e socioeconômica, os resquícios da herança jurídica colonialista estabeleceram um empecilho à elaboração de um código normativo correspondente às sociedades do Sul. A perpetuação das influências eurocêntricas nesses ordenamentos jurídicos faz jus à ideia do “juricídio”, que cessa a emergência e proliferação das manifestações normativas plurais.
   Frente ao exposto, torna-se imprescindível a congregação de justiças que não alienem o indivíduo às próprias reivindicações, que parta da organicidade e especificidade de cada povo, ausentando as espécies de “fórmulas gerais” jurídicas, a ideia do “one size fits all”. Todavia, é de suma relevância – ao considerar as influências mútuas projetadas nas relações internacionais – apresentar a proposição de uma metodologia dialética, que desenvolva uma síntese entre as epistemologias provenientes da relação bilateral Norte-Sul. Evidencia-se, nesse sentido, a conceitualização da “Ecologia de direitos e justiças”, que instaura um ordenamento jurídico eclético, aberto à inclusão da pluralidade residente no íntimo das lutas sociais. A partir da garantia referente à concretude e eficácia de tal sistema, Boaventura estabelece o que, simbólica e efetivamente, configura-se como a “2º Independência” dos países submetidos à hegemonia da lógica jurídica moderna.
   Constata-se, entretanto, que a evolução do pluralismo epistêmico obteve êxito na esfera prática. A título de exemplo, o julgado relativo à liminar indeferida pelo magistrado, que, em síntese, nega a reintegração de pequena área invadida por membros do MST ao latifundiário – dono da Fazenda Primavera, ilustra a decadência do Direito que preza, primordialmente, pelo resguardo da propriedade privada. Embora de aparência simplória, a decisão proferida em benefício do bem-estar comum expõe o afrontamento direto com a primazia da fonte epistemológica nortista, visto que se rompe com uma das 5 “monoculturas” – responsáveis pela sustentação dos ditames do Direito moderno, sendo essa a naturalização das diferenças existentes no âmbito socioeconômico e político. Aderir à causa social expressa no julgado é, fundamentalmente, priorizar a redução das desigualdades remanescentes e, em consequência, empoderar a luta por uma justiça plural, por um direito que acolha a diversidade jurídica e cultural. Nota-se que o diálogo com as correntes do Direito moderno não são rompidas integralmente, uma vez que os respaldos legais para se deferir a decisão de desapropriação consistem, primariamente, na improdutividade da terra.
   Por fim, elaborar um campo jurídico em que o poder simbólico emana das diferentes vozes que ecoam no corpo social, é incitar a promoção do “Princípio da Hierarquia Axiológica”, de Alexandre Pasqualini, alterando-se a concepção da interpretação sistemática das normas e introjetar a primordialidade de se tornar próspera a teoria da Construção (Carlos Maximiliano), alicerce da exegese crítica do texto normativo.
Caio Laprano ( 1º Ano -  Noturno ) 

Estabelecendo pontes, ainda que com certas limitações


Em seu texto “O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”, Sara Araújo trata sobre a existência de uma natureza etnocêntrica nos discursos sobre direitos. O direito para a autora é um duplo da ciência, ou seja, ele também se espelha nas cinco monoculturas de razão metonímica e classifica as formulações jurídicas não modernas como irrelevantes, locais, improdutivas, inferiores e primitivas. Sara defende um argumento de que o um pluralismo jurídico pode ser usado como instrumento para a descolonização, se esse for reformulado enquanto ecologia jurídica. Através dessas importantes constatações tem-se um exemplo no julgado do TJRS sobre agravo de instrumento relativo a Fazenda primavera, onde não há uma ecologia jurídica, no entanto, o tribunal soube perceber e reconhecer um direito exercido por um grupo minoritário, em conformidade com princípios constitucionais.
No julgado o que se discute é um agravo de instrumento, os agravantes questionam a decisão judicial que indeferiu a liminar nos autos da reintegração de posse, afirmando que não seria o caso de considerar a função social da terra, uma vez que eles apresentaram os requisitos previstos no CPC. A decisão tomada pelo tribunal foi de negação do agravo, por dois votos contrários que se basearam principalmente na função social da terra, prevista no artigo 5º inciso XXIII, como condição para a posse da terra. Em um dos votos contrários, o do desembargador Carlos Rafael dos Santos Júnior, ele defende uma interpretação teleológica da lei, ou seja, é preciso descobrir e revelar o direito para a situação dada. O outro voto a favor, do desembargador Mário José gomes Pereira, argumenta que se vive uma fase de predomínio social sobre o individual, que impõe limitações ao direito de propriedade que são ditadas pelo interesse público e princípios de justiça e do bem comum. Esses votos reconhecem a legalidade das ações dos membros do movimento MST, que têm fundamento em princípios constitucionais, fazendo assim uma ponte entre o direito marginalizado e o direito moderno, apesar de as regras ainda serem ditadas por esse último levando em consideração as ideias de Sara Araújo.
No voto contrário, o do desembargador Luís Augusto Coelho Braga, é defendida uma ideia que prioriza a epistemologia do norte de forma absoluta, questiona ele o modo de agir do MST, que segundo ele não tem previsão pelo código de processo civil, portanto, deve ter nulidade absoluta.  O desembargador exalta o pensamento de Rousseau e defende suas ideias como princípios universais que devem ser assegurados no Estado de direito. Esse ponto de vista, sob a perspectiva de Sara Araújo é uma imposição de cima para baixo das epistemologias do Norte, negando qualquer possibilidade de diálogo com povos do sul.
Conclui-se dessa forma que as epistemologias do Norte ainda têm uma forte influência mesmo em um país do Sul como o Brasil, sendo que essa decisão judicial foi tomada utilizando-se as regras ditadas pelo direito moderno. Apesar disso também se observa nesse julgado que os desembargadores em sua maioria não optaram pela simples exclusão do MST, como um grupo que age em desacordo com o Código de Processo Civil, mas reconheceram suas ações por se alinharem a princípios constitucionais. Há nesse julgado a construção de uma ponte, que permite um diálogo entre o direito dessas pessoas marginalizadas e o direito moderno, sendo este capaz de reconhecer aqueles dentro de seus próprios parâmetros.
  
Gustavo Dias Polini - Direito Noturno



Utilizando o direito para dirimir exclusões abissais
No julgamento, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, do Agravo de instrumento Nº 70003434388, julgou-se um pedido de reintegração de posse de propriedade rural, onde um grupo de integrantes do MST, haviam feito uma ocupação, tendo por alegação principal que tal propriedade não cumpria com a função social da terra. Esta talvez seja a luta primordial que acontece no Brasil desde a sua colonização, a luta por terras. Faço aqui uma antecipação, a reintegração de posse foi negada sob a alegação de que a propriedade não cumpria com a sua função social, ou seja, não era produtiva, assim sendo, falemos sobre o que isto representa.
Ao falarmos de colonização podemos remeter ao texto de Sara Araújo, socióloga portuguesa, assim como, aos textos de Boaventura Santos, que tratam sobre a constituição de uma ecologia de saberes, tal linha de pensamento segue a proposição de que a divisão que se encontra na construção de saberes também segue uma divisão colonial entre metrópoles e colônias, assim o conhecimento é produzido na região metropolitana que exporta seu modo de pensar para a “colônia”, contudo, o que se produz no outro lado das linhas divisórias invisíveis que dividem o norte do sul, a metrópole da colônia, os detentores do conhecimentos dos que necessitam de tais conhecimentos.
Esta dicotomia entre o norte e sul e suas epistemologias de saberes nos leva ao caso do julgado em si, onde duas correntes contraditórias buscam resultados satisfatórios entre si através do direito, uma delas os proprietários que ao acionarem a justiça e pedir uma reintegração de posse de propriedade, representam a construção epistemológica do norte, que utiliza-se do saber jurídico instituído para assim manter sua propriedade, pois como diz Sara Araújo “A modernidade eurocêntrica é um projeto tanto epistemológico quanto jurídico”, enquanto do outro lado temos a epistemologia do sul representada pelo MST.
Por outro lado, o MST e sua luta pelo direito resguardado pela Constituição Federal Art. 5º, inciso XXIII que versa sobre a propriedade cumprir uma função social, representa a epistemologia do sul, já que em sua grande maioria os assentamentos rurais são responsáveis pela agricultura de subsistência no Brasil, e o MST o grande responsável pela produção de produtos orgânicos, se pegarmos os capítulos da Constituição Federal em que versam sobre a ordem econômica e financeira, basicamente no Art. 170, nos incisos III, IV, VI, e VII, teremos que a propriedade visa dirimir desigualdades sociais, assim como oferecer qualidade de vida e oferecer um baixo impacto ambiental do que é produzido em seus espaços.
Assim, por fugir a lógica capitalista colonial da monocultura, tanto no aspecto da produção econômica quanto no aspecto cultural e de produção de saberes, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, representa neste caso aos olhos de quem vê assim, o atraso, pois utilizam-se de apropriações de áreas consideradas improdutivas, ou seja, que não cumprem com a função social da propriedade para forçar a justiça a definir e promover a busca por igualdade social que o Estado tem falhado miseravelmente durante décadas.
Deste modo, se analisarmos o que nos diz Sara Araújo, o MST busca através de suas ocupações se fazer presente dentro do espectro da formação e construção epistemológica do sul, aglutinando o que mais representa a epistemologia do norte, ou seja, utilizando-se de mecanismos jurídicos, pensados para perpetuar as discrepâncias, para assim fazer dirimir tais distâncias, pois ao criar-se uma nova dinamicidade em relação as tensões sobre o uso e propriedade da terra podemos partir disso pensarmos mecanismos para a criação de uma nova ecologia de saberes que englobe saberes característicos do sul e ao mesmo tempo possa se fundir com que melhor servir de saberes do norte, sem que haja imposições por parte dos representantes do neocolonialismo.

Cassiano Mendes Cintra
 1º ano Direito Noturno

É essencial diferenciar os diferentes, afim de os igualizar

O Agravo de Instrumento nº 70003434388/2001 trata acerca de um caso de ocupação da propriedade pertencente a Plínio Formighieri e Valéria Dreyes Formighieri, realizada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). O fato referido foi indeferido diante da ponderação realizada por dois dos três desembargadores que avaliavam a situação, pois concluíram que o bem estar social deveria se sobrepor ao direito a propriedade. 

Sob esse viés, vale ressaltar, que muitas das propriedades latifundiárias advêm da herança do processo colonial - ocorrido no Brasil - e de fraudes como a grilagem, e seus proprietários apenas as resguardam em nome da especulação imobiliária, da manutenção de suas fortunas e do status social. Logo, o argumento dado pelos possuintes e pelo desembargador Luís Augusto Coelho Braga defendendo a tese de que os donos conquistaram o local partindo do próprio esforço, é de cunho duvidoso, assim como o argumento de que a terra era produtiva e que devido a conduta dos participantes do movimento ter sido violenta a terra deveria ser restituída, tendo em vista que sem o uso de violência dificilmente conseguiriam tomar o local. 

Ademais, é evidente que defender que uma área tão extensa pertença apenas a duas pessoas, enquanto milhares de outras não tem onde morar e produzir alimentos tanto para sua subsistência, quanto para dar manutenção as demandas sociais, é defender uma visão capitalista selvagem, a qual se importa apenas com o acumulo de capital, o que constitucionalmente contraria a função estatal, tendo em vista que o mesmo deve presar pelo bem estar coletivo. Isto posto, é possível concluir que os juristas têm se mostrado mais abertos a adaptar o ordenamento normativo ao caso a ser avaliado, o que entra em conformidade com a tese defendida pela pensadora Sara Araújo em sua obra denominada “o primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”, tendo em vista que ela fala sobre a necessidade de que o Direito não seja compreendido de forma estática, atendo-se apenas a aquilo que está posto sem adaptação ao caso concreto e interpretação. 

Sob essa ótica, o caso evidencia também a necessidade de que o Direito reconheça as relações desiguais e partindo delas busque compreender, afim de equiparar aquele que se encontra desfavorecido - no caso supracitado, os participantes do movimento -  e, a partir dessa compreensão, interprete as leis a luz do caso a ser avaliado. Todavia, vale ressaltar, que a maior parte dos juristas presentes nos cargos de grande relevância estatal pertencem a classes sociais abastadas, logo, o seu "habitus" - conceito desenvolvido pelo pensador Bourdieu, que trata sobre a influência que o meio exerce sobre a visão de mundo dos indivíduos -  faz parte do grupo vigente no "norte" - indivíduos privilegiados economicamente - o que dificulta, muitas vezes, a compreensão de valores e prioridades muito diverges das suas. 

Diante disso, Sara afirma que é necessário que a ciência jurídica atual busque realizar uma intercessão entre o "norte" e o "sul", tendo em vista que ao longo da história ela apresentou uma visão indolente, a qual primava apenas por uma única perspectiva - a eurocêntrica - que considerava que o único saber o qual era válido e deveria ser primado era o do "norte". Isto posto, culturas como a dos indígenas eram vistas - e infelizmente, por muitos ainda são -  como atrasadas, obsoletas e primitivas. Por isso, a pensadora afirma que o Direito deve se provincializar - afim de globalizar o que e local -, desparoquializar - sendo passível de ser globalizado - e prevalecer uma ecologia de justiça, a qual reconheça as diferentes culturas e as leve em consideração.  

Danieli Calore Lalau 1° ano - Direito - noturno
 





A reinterpretação do Direito patrimonialista


            A função social da propriedade, reconhecida pela Constituição Cidadã (promulgada em 1988), foi amplamente debatida durante o julgamento de um pedido de reintegração de posse levado até o TJRS no ano de 2001. A ação, classificada como um agravo de instrumento, tinha o objetivo de revogar a decisão do juiz Dr. Luiz Christiano Enger que havia negado a reintegração em primeira instância e considerado legítima a ocupação da propriedade pelos integrantes do MST. A partir dos votos dos desembargadores, é possível promover uma análise sociológica do julgado que transcenda o universo puramente jurídico e eleve a discussão a um novo patamar.
            Os desembargadores Carlos Rafael (relator) e Mário José Gomes, ao votarem pelo não provimento do recurso, mostraram, de certa forma, que o Direito pode sim ser emancipatório, pois reconheceram a dignidade dessas pessoas despossuídas e marginais, classificas por Boaventura de Sousa Santos como pertencentes à sociedade Civil-Incivil. O relator do processo destacou em seu voto que os autores do recurso não haviam comprovado o grau de eficiência e exploração da área, nos termos previstos na lei n°8.629/93, prova legal e documental que autoriza a imediata reintegração. Ademais, citou o conceito da “interpretação sistemática do Direito” de autoria do professor Alexandre Pasqualini, concepção esta que defende a ampliação da ideia de sistema jurídico e uma hierarquização axiológica dos direitos. Nesse sentido, o desembargador rompe com a “Razão Metonímica”, responsável por exportar para o Brasil um Direito Civil patrimonialista europeu e traz a necessidade de se reconhecer a importância dos direitos sociais, além de aplicar o conceito de “Ecologia de justiças” defendido pela Sara Araújo em seu voto. Cumpre salientar que o juiz Mário José destacou que tanto o Código Civil como o Código de processo civil não tinham recebido qualquer alteração decorrente do princípio da função social da propriedade adotado pela Constituição Federal de 1988, demostrando claramente a deficiência de tais legislações.
            Por outro lado, o desembargador Luiz Augusto, ao justificar seu voto pelo provimento do recurso, vai declarar que a propriedade em questão realiza sua função social de acordo com os preceitos constitucionais e os integrantes do MST desrespeitaram a lei e o devido processo legal, pois não se submeteram  à atuação do Incra, órgão legítimo para realizar a desapropriação de terras e a consequente reforma agrária . Argumentou que não permitir a reintegração de posse para áreas comprovadamente produtivas geraria uma situação de insegurança jurídica, além de trazer uma citação do constitucionalista José Afonso da Silva que defende a ideia de que não é papel do Judiciário ser ativista e promover reformas sociais.
            A argumentação do desembargador Luiz Augusto pode ser rebatida pela fala do relator Carlos Rafael ao afirmar o princípio do “non liquet” do nosso ordenamento jurídico. Apesar de não ser função do Poder Judiciário promover um ativismo social, este não pode se abster da produção de uma decisão quando provocado. De acordo com o relator: “o juiz não pode deixar de decidir pela falta de norma infraconstitucional de cunho procedimental”. Por fim, é importante destacar como a atividade judiciária é extremamente complexa e litigiosa, pois na época de produção desse julgado o código civil em vigor era o de 1916 e o de Processo Civil, de 1973, portanto anteriores à Constituição de 1988. Apesar desse conflito entre as normas existentes, o colegiado foi obrigado a produzir uma decisão, inerente e necessária à função do Poder Judiciário. Trazendo o sociólogo Pierre Bourdieu para a discussão, os juízes promoveram uma “Historicização da Norma”, pois, nas palavras do francês, adaptaram “as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou que é caduco”.

Nicolas Candido Chiarelli do Nascimento
Período: matutino
Turma: XXXVI

Pontes que constroem o direito


O Brasil como um país plural que abriga diversas realidades ainda se encontra em abismos. Nesta perspectiva, percebe-se a grande distância que indivíduos integrantes do movimento sem-terra enfrentam frente a grandes proprietários de terra, que desde situações históricas detinham e detém grande poder na sociedade, seja em recursos, vivências e até mesmo na justiça. Desse modo, podemos relacionar essa situação com o que Sara Araújo, em “A configuração epistêmica do campo jurídico”, específica como diferenças abissais, ou seja, o mundo separado entre dois mundos, linhas e principalmente realidades, Norte e Sul, esse último caracterizado pela exclusão advinda do poder de extrema influência do Norte.

Diante deste quadro, pode-se relacionar a ideologia de Sara com o julgado de 2001, que trata-se de um agravo de instrumento no qual os agravantes pleiteiam a reintegração da posse de terra que, segundo eles, foram invadidas por pessoas integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, já os contrários afirmam que a propriedade não apresentava função social da terra como previa a lei. Dessa forma, o desembargador Mário José, contrário a essa ação, sustenta o argumento da finalidade social da terra, Art. 5, inc. XXIII da Constituição Federal de 88, que também deve ser visualizada não só como um direito fundamental como também um dever fundamental. Assim, ainda sustenta que é informado pelo próprio texto constitucional, que tem a dignidade humana como base, o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização, como também a redução da desigualdade extremamente presente nesses dois universos que podemos associar de norte e sul.

Em segundo plano, Sara evidência que a linguagem jurídica, associada a neutralidade, universalidade e objetividade, tem a função principal na legitimação do modelo dominante, colonial e capitalista difundindo-se uma denominada ordem natural. Esse padrão presente do lado norte, dotado de poder e dominação, exclui intencionalmente os elementos do lado Sul deixando com que múltiplos saberes jurídicos sejam ocultos e invisibilizados e que não exista espaço para outro conteúdo epistemológico. Neste sentido, o movimento dos sem-terra, inundados da pobreza e da escassez que se encontram, são ignorados e marginalizados por uma ideologia de dominação que sustenta a falsa e ilusória ideia de meritocracia.

Esse paradigma de exclusão pode ser comprovado no voto do desembargador favorável a reintegração da posse de terra, Luís Augusto Coelho Braga, que apoia-se seu posicionamento na proteção da ordem e da paz social, em que os princípios legais e constitucionais vigentes devem ser respeitados ignorando e tornando irrelevante toda a luta de um movimento social com os ideais de “a lei é para todos” e “oportunidades são iguais para todos”. Todavia, o desembargador Carlos Rafael dos Santos Júnior quebra essa monocultura que tanto o direito se espelha, uma vez que para ele o juiz como interprete da norma jurídica deve dar vida concreta ao princípio abstrato adequando-o a cada fato concreto e buscando novos rumos não se satisfazendo da interpretação jurídica tradicional.

Em suma, o abismo de realidades ainda se torna presente quando o direito menospreza e esquece que exitem diversos tipos de desigualdades no meio social e que não devem ser negligenciadas. Além disso, não se deve negar ou desprezar o global, deve-se tecer teias, construir pontes para que esses dois universos aprendam e agreguem a ecologia de saberes, e assim, através das aprendizagens recíprocas, amplia-se as possibilidades políticas. Contudo, se o círculo jurídico ainda persistir ignorando e tornando pessoas e valores invisíveis, o direito continuará a ser um instrumento de legitimação para a dominação e mantedor de um único saber possível. 

Ana Laura Albano – 1° Direito (noturno)

A Questão agrária no âmbito jurídico-político

No ano de 1947, Monteiro Lobato publicou Zé Brasil, texto responsável por acender à época as discussões envolvendo a questão agrária no país. O protagonista - homônimo ao título da obra - traz em sua miséria as marcas estruturais do campo, embebidas em injustiças e impasses. Ao afrontar a oligarquia fundiária brasileira, trazendo ideais como a reforma agrária e a divisão da produção, Zé Brasil pôde estimular a luta política. Fora da ficção, e décadas após, a problemática urge como nunca, sendo tema de debates e processos, além de análises profundas.
O agravo de instrumento n° 70003434388, interposto frente o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no ano de 2001, versa sobre a revisão de uma decisão que negou o pedido de liminar de reintegração de posse aos requerentes - esses que tiveram sua fazenda invadida e ocupada por integrantes do MST (Movimento Sem Terra). O Acórdão decidiu pelo improvimento do recurso, sendo dois votos favoráveis a tal decisão e um contrário. Os votos favoráveis sustentaram-se no cumprimento do preceito constitucional da função social da terra - não demonstrada através da Declaração de Propriedade Própria, única prova legal capaz de autorizar a imediata reintegração. Dessa forma, bem como pontuou o ilustríssimo desembargador Mário José Gomes Pereira - revisor do agravo - é inadmissível que, violando um preceito constitucional, o latifúndio receba da justiça, proteção.
Através de sua obra O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone, a socióloga Sara Araújo traz diversas ideias amplamente aplicáveis na análise do caso, bem como da problemática envolta no mesmo. A autora vê a ciência moderna como parâmetro da sociedade, e desse modo, enxerga no direito o objeto pelo qual se da a submissão dos indivíduos de acordo com sua ótica. Ademais, para a socióloga, a linguagem jurídica moderna, em conjunto com ideais intrínsecos da ciência moderna, como a racionalidade, justiça e objetividade, legitima o modelo capitalista colonial, resultando em um cenário mercantilista, que impõe ordenamentos compatíveis e propícios a tal conjuntura, descartando e desprezando culturas e organizações alheias, não adeptas ao clássico modelo de produtividade capitalista. Assim, as formulações jurídicas não modernas tornam-se - nesse contexto - irrelevantes. 
Dessa maneira, mesmo que no caso analisado o resultado tenha fugido da normalidade, as questões agrárias opostas a tendência latifundiária exportadora, que zelem pelo cumprimento da função social da terra bem como pelo bem-estar da sociedade são combatidas no âmbito político e jurídico. Como resultado, indivíduos que assim como o Zé Brasil, sonham em ter seu pedaço de terra, e caso tivessem um sítio ''fazia uma casa boa, plantava árvores de fruta, e uma horta e até um jardinzinho''*, acabam privados de tal desejo.

*LOBATO, José Bento Monteiro. Zé Brasil. Editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1947.

Luan Mendes Menegao - 1° ano Direito Matutino


A terra 
A discussão acerca do julgado do MST remete a fatores muito mais intrínsecos na sociedade. O documento é um agravo de instrumento que retoma o discurso sobre a função social da terra e os interesses do agronegócio. Em verdade, a maior parte do mercado interno é abastecido por agricultura familiar, cabendo aos grandes latifundiários a produção de commodities que fazem o agronegócio ser tão lucrativo.
Sara Araújo separava a epistemologia do sul, os invisíveis e sem amparo do estado, da epistemologia do norte, que seriam os legitimados pelo direito, trazendo a monocultura do saber jurídico e o pluralismo jurídico. Aqui, remetamos o MST ao desamparo do estado e a sua intensa luta pela ocupação de terras contra os business do agro (afinal, agro é tec, agro é pop...) que seriam os legitimados pelo direito. A exclusão da diversidade mostra que não há direito social, sendo este limitado e dentro da “sociologia dos invisíveis”, a busca de um sistema jurídico que não seja medíocre.
A razão metonímica exclui o que é local e põe em seu lugar o que é universal, trazendo o questionamento do papel do judiciário nesses casos e se há limites para o pluralismo jurídico. Não é a omissão, mas a demora para que a lei chegue até no âmbito social.
No voto do relator, desembargador Carlos Rafael, na parte em que diz “A questão posta nestes autos, diz com a necessidade, ou não, da investigação acerca do atendimento da denominada função social da propriedade, em sede de ações de reintegração de posse, nas quais, segundo o regramento do Código de Processo Civil, em seus artigos 926 a 933, o debate haveria de se limitar à questão da posse, esta vista singelamente como a situação fática de sujeição da coisa ao indivíduo” traz para a discussão o interesse social do terreno sobrepondo o interesse econômico. Além de, citando Bourdieu, haver uma historicização da norma, já que os relatores precisaram ir além do era importo pela lei, no caso o código civil de 19, para dar forma a situação que ocorria naquele momento.
Em contra partida, há no texto “Enfim, permitir-se em ação de reintegração de posse a discussão a respeito da produtividade ou não da terra invadida, por eventual descumprimento de preceito constitucional (art. 186 CF/88), seria, repito, quebrar a paz social, pois, as consequências, seriam nefastas à manutenção da ordem pública, e, a partir de então, todas as invasões de terras tidas como produtivas, virariam o objeto a ser perseguido pelos “sem””. Essa abertura de precedente é um fator determinante dentro do direto, visto da epistemologia do sul, parece que em vez do pluralismo há uma desasegurança jurídica.
Por fim, o embate permeia fatores como a produtividade – será que tudo que é produzido é realmente produtivo? - a função social da terra e a legitimação no campo do direito. Qual é o preço que o estado e as pessoas pagam por situações como essa?  O filme “chão”, que chegou as telas em 2019, retrata a luta do movimento e a busca pela valorização do que é local em detrimento do mercado capitalista que visa o lucro acima de tudo- e de todos.
Maria Júlia Fontes Fávero- matutino

O agravo de instrumento foi interposto com fim de ser contra a decisão judicial que, nos autos da ação de reintegração de posse indeferiu a liminar reintegratória. Em 15 de outubro do corrente ano, os autores tiveram sua propriedade invadida por pessoas integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, essa que afirmaram ser produtiva.
A decisão continuou com o indeferimento, satisfazendo as “exclusões abissais” do Direito, exploradas por Sara Araújo, à medida em que preenche a necessidade ao pluralismo jurídico defendido pela autora, uma vez que se desvincula da visão monolítica capitalista do individualismo e do direito à propriedade privada, e atende às demandas sociais, através da função social da terra prevista constitucionalmente. Assim sendo, também rompe com a prevalência da razão metonímica teorizada por Araújo, ao sair da visão única oriunda do Norte, e fazer uso da realidade do Sul, de escassezes dos mais pobres, para a decisão proferida. 
Ademais, é preciso destacar que a ocupação de terras não produtivas pelo Movimento não configura o impulsionamento da desordem social, visto que realiza o direito fundamental previsto pela própria Constituição Federal e não é concretizado pelo Estado da maneira posta, levando os cidadãos a agir onde a União falha. Essa realização pode ser análoga ao que Araújo descreve como tirar o Direito da caixa caos vs. ordem, cuja origem se dá em quadros eurocêntricos.
Natalia Minotti - direito matutino

O MST e a articulação do direito com fim emancipatório


O Agravo de instrumento Nº 70003434388 interposto no ano de 2001, na Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado em Passo Fundo teve como agravantes Plínio Formighieri e sua esposa Valeria Dreyer Formighieri. O agravo contraria a decisão judicial  postulada de acordo com o art.928 do CPC, de indeferimento da ação de reintegração de posse contra Loivo Dal Agnoll e outros- todos indivíduos pertencentes ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que teriam ocupado uma propriedade rural de Plínio e sua esposa sob a alegação de que a terra seria devoluta. Os proprietários afirmam que no dia 15 de outubro do ano de 2001 sofreram invasão em suas terras por sujeitos integrantes do MST; alegam ainda que a propriedade seria produtiva não cabendo contestação acerca do cumprimento da  função social da terra, questão que diversas vezes foi abordada no decorrer do processo.
A decisão do acordão após discutidos os autos foi de negar o requerimento, os Desembargadores por maioria decidiram pela negação do provimento; os Desembargadores que formaram a câmara são o relator Carlos Rafael Dos Santos Junior, Mário José Gomes Pereira, cujos votos foram pelo indeferimento do agravo e Luís Augusto Coelho Braga votando a favor do agravo. Na argumentação estabelecida foram utilizados fundamentos jurídicos, sociais e filosóficos, isso demonstra a abrangência que o tema alcança tornando-se possível analisá-lo sob uma perspectiva para além do direito.
Desta maneira, em vista de melhor perceber a situação do julgado e o que cada aplicador do direito nele defendeu se faz primordial estabelecer uma conexão com as teorias de Boaventura de Souza Santos e da socióloga Sara Araújo. Esses autores  trazem  conceitos como Epistemologia do Sul e do Norte, pluralismo jurídico, ecologia do saber entre mais conceitos , e ainda defendem que o direito possa ser utilizado como um mecanismo de emancipação social.
Sara Araújo em seu livro “ O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone” observa que o direito moderno se constituiu como uma ferramenta de expansão e reprodução do colonialismo. O direito como matéria monolítica promoveu e vem promovendo exclusões abissais que se refletem tanto no campo epistemológico quanto na questão jurídica. Em relação a epistemologia ela se divide entre as epistemologias do Norte e do Sul, em que o norte representa o conhecimento,e consequentemente, um direito hegemônico que engendram uma razão metonímica que desconsidera juridicamente sujeitos singulares produzindo sua inexistência; enquanto no sul concentra-se a desigualdade a heterogeneidade. Trazendo tais concepções para a situação do agravo nota-se na opinião do Des. Luís  Augusto Correio Braga e também na perspectiva da sociedade que movimentos sociais em específico o MST ocupam o espaço do sul. Na relação jurídica e social é atribuída maior relevância aos interesses dos proprietários de grandes territórios de terra em detrimento dos direitos e garantias dos trabalhadores sem terra.
Perante a tal histórico a socióloga defende que as Epistemologias do Sul devem se apropriar do conceito de pluralismo jurídico em prol de fundar uma ecologia de justiças e direitos que consiga englobar “ universos jurídicos e políticos excluídos e classificados como inferiores, primitivos, locais, residuais ou improdutivos.” (ARAÚJO, PG 3). Seguindo essa lógica, apesar de estar disposto no artigo 5º, incisos XXII e XXIII  a garantia do direito a propriedade e o desígnio de que a propriedade deve atender suas função social, na prática observa que essa medida, que poderia diminuir a discrepância das condições de exclusão entre sul e norte, não se concretiza ou pelo menos não se valida por iniciativa do Estado. Além disso, a reforma agrária e a desapropriação de terras que não cumprem com a devida função é assegurada constitucionalmente (artigo mostrado abaixo) sendo previsto que a União possui a competência pra efetuá-la; no entanto, a norma não se mostra eficaz haja vista que nunca houve no Brasil um projeto que realmente pretendeu diminuir as concentrações de terra. A lei que disserta a esse respeito:

                                                   LEI Nº 8.629, DE 25 DE FEVEREIRO DE 1993.



  Art. 1º Esta lei regulamenta e disciplina disposições relativas à reforma agrária, previstas no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal.
 2º A propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais.             
§ 1º Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.(...)


 A alternativa que resta para o MST, como Sul Epistemológico, é buscar por meios próprios ocupar essas terras improdutivas e acionar a justiça pra legitimar a apropriação, pois em uma sociedade capitalista eurocêntrica as demandas sociais e direitos fundamentais, como o direito a propriedade e moradia, não são atendidos sem luta e mobilização.
Citando um trecho da socióloga, “A monocultura da produtividade capitalista vive numa relação simbiótica com a monocultura do saber”. Dessa maneira, toda espécie de produção que não se enquadre na capitalista, ou seja que não vise acima de tudo o lucro, passa a ser invisibilizada e desvalorizada. Esse processo ocorre com os Movimentos Sociais que lutam pelo direito à terra e pelo direito de nela trabalhar. As pessoas  que compõe o MST buscam se assentar em terras improdutivas e não produzir a partir de uma lógica latifundiária do agronegócio e da exportação. A produção desses movimentos é mais voltada para a técnica de agricultura familiar, com a implementação de sistemas agroflorestais (SAF) e hortifrutigranjeiros; são plantações que abastecem o mercado interno de alimentos e não pretendem trabalhar com monoculturas de exportação. Deste modo, justamente por não utilizarem da terra apenas como uma ferramenta monolítica do capital tais grupos são considerados -citando o DES. Luís Augusto Coelho Braga- prejudiciais para a população e  economia. Alias são postos em uma condição de marginalidade encarados como criminosos e terroristas.
Depreende-se da análise realizada que a decisão proferida, contra a reintegração de posse, pela Décima Nona Câmara Cível foi uma demonstração de que existe a possibilidade do direito ser um aparato emancipatório. A conquista judicial alcançada pelo MST demonstra que os desembargadores que votaram contra o agravo de instrumento conseguiram enxergar o conflito de uma forma ecológica e não se prenderam apenas a máxima positivista de que a lei é igual para todos.

Lívia Alves Aguiar 1º ano, Direito matutino