domingo, 1 de setembro de 2019

A reinterpretação do Direito patrimonialista


            A função social da propriedade, reconhecida pela Constituição Cidadã (promulgada em 1988), foi amplamente debatida durante o julgamento de um pedido de reintegração de posse levado até o TJRS no ano de 2001. A ação, classificada como um agravo de instrumento, tinha o objetivo de revogar a decisão do juiz Dr. Luiz Christiano Enger que havia negado a reintegração em primeira instância e considerado legítima a ocupação da propriedade pelos integrantes do MST. A partir dos votos dos desembargadores, é possível promover uma análise sociológica do julgado que transcenda o universo puramente jurídico e eleve a discussão a um novo patamar.
            Os desembargadores Carlos Rafael (relator) e Mário José Gomes, ao votarem pelo não provimento do recurso, mostraram, de certa forma, que o Direito pode sim ser emancipatório, pois reconheceram a dignidade dessas pessoas despossuídas e marginais, classificas por Boaventura de Sousa Santos como pertencentes à sociedade Civil-Incivil. O relator do processo destacou em seu voto que os autores do recurso não haviam comprovado o grau de eficiência e exploração da área, nos termos previstos na lei n°8.629/93, prova legal e documental que autoriza a imediata reintegração. Ademais, citou o conceito da “interpretação sistemática do Direito” de autoria do professor Alexandre Pasqualini, concepção esta que defende a ampliação da ideia de sistema jurídico e uma hierarquização axiológica dos direitos. Nesse sentido, o desembargador rompe com a “Razão Metonímica”, responsável por exportar para o Brasil um Direito Civil patrimonialista europeu e traz a necessidade de se reconhecer a importância dos direitos sociais, além de aplicar o conceito de “Ecologia de justiças” defendido pela Sara Araújo em seu voto. Cumpre salientar que o juiz Mário José destacou que tanto o Código Civil como o Código de processo civil não tinham recebido qualquer alteração decorrente do princípio da função social da propriedade adotado pela Constituição Federal de 1988, demostrando claramente a deficiência de tais legislações.
            Por outro lado, o desembargador Luiz Augusto, ao justificar seu voto pelo provimento do recurso, vai declarar que a propriedade em questão realiza sua função social de acordo com os preceitos constitucionais e os integrantes do MST desrespeitaram a lei e o devido processo legal, pois não se submeteram  à atuação do Incra, órgão legítimo para realizar a desapropriação de terras e a consequente reforma agrária . Argumentou que não permitir a reintegração de posse para áreas comprovadamente produtivas geraria uma situação de insegurança jurídica, além de trazer uma citação do constitucionalista José Afonso da Silva que defende a ideia de que não é papel do Judiciário ser ativista e promover reformas sociais.
            A argumentação do desembargador Luiz Augusto pode ser rebatida pela fala do relator Carlos Rafael ao afirmar o princípio do “non liquet” do nosso ordenamento jurídico. Apesar de não ser função do Poder Judiciário promover um ativismo social, este não pode se abster da produção de uma decisão quando provocado. De acordo com o relator: “o juiz não pode deixar de decidir pela falta de norma infraconstitucional de cunho procedimental”. Por fim, é importante destacar como a atividade judiciária é extremamente complexa e litigiosa, pois na época de produção desse julgado o código civil em vigor era o de 1916 e o de Processo Civil, de 1973, portanto anteriores à Constituição de 1988. Apesar desse conflito entre as normas existentes, o colegiado foi obrigado a produzir uma decisão, inerente e necessária à função do Poder Judiciário. Trazendo o sociólogo Pierre Bourdieu para a discussão, os juízes promoveram uma “Historicização da Norma”, pois, nas palavras do francês, adaptaram “as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou que é caduco”.

Nicolas Candido Chiarelli do Nascimento
Período: matutino
Turma: XXXVI

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