segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Feminismos plurais vs. monocultura do tempo linear: uma análise de julgado à luz de Sara Araújo

 No julgado da Ação Civil Pública atinente ao trote da Universidade de Franca que repercutiu no Brasil todo, é possível elencar e analisar pontos de reflexão a partir de uma abordagem relacionada à visão de Sara Araújo, intelectual estudada em sala. Em síntese, a Dra. Adriana Bonemer julga a ação improcedente, pautando sua argumentação na perspectiva de que o feminismo degrada a condição da mulher.


Em primeira análise, tem-se que o posicionamento da Dra. Bonemer se baseia em um viés eurocêntrico e ultrapassado enraizado na sua forma de pensar o mundo. Isso porque, em suas críticas, desvirtua especialmente a segunda onda do movimento feminista. Considerando que foi essa segunda onda a qual uniu a questão de desigualdade de gênero à desigualdade social, é possível aferir a sua importância para a História do movimento. Antes desse marco, as conquistas do feminismo eram muito mais restritas às pautas contratuais, como casamentos arranjados ou o direito à propriedade, e, portanto, o seu alcance e poder de transformação eram limitados a mulheres brancas, de raízes europeias e pertencentes à classe alta da sociedade.


Tendo isso em mente, é possível perceber que Bonemer, em pleno século XXI, pretende invisibilizar, com seu posicionamento, décadas de conquistas por mulheres em situações vulneráveis, intitulando (de forma distorcida) tais avanços como “vícios mais baixos”. O que se pretende é voltar à época na qual o feminismo lidou majoritariamente com questões contratuais, se alienando em relação às novas demandas sociais que constituem o Brasil contemporâneo, especialmente no tocante à liberdade e à expressão da sexualidade feminina sem ser subjugada, realidade que ainda está longe de ser concretizada plenamente, como ilustra a infeliz prática do trote em questão. Por meio disso, é perceptível o conceito de monocultura do tempo linear, trazido por Sara Araújo e que possui o significado de tentativa de retirar da contemporaneidade o que a constitui, isto é, suas urgências e aflições próprias de um tempo específico, visando a homogeneizar o tratamento de determinadas pautas da mesma forma que eram tratadas há muito tempo, mitigando qualquer atualização.


Nesse sentido, é muito contundente o trecho “sequer vislumbro a existência do pretendido “coletivo” de mulheres. Os indivíduos do sexo feminino não são iguais e não possuem os mesmos valores daqueles descritos na inicial, para serem tratados como um “coletivo”, a ensejar a pretendida tutela estatal, data venia.” Aqui, é evidente a falta de senso da juíza para reconhecer que há sim um “coletivo” de mulheres, e que, exatamente a partir daquela segunda onda do movimento por ela desvirtuada, foi possível abraçar, dentro desse todo, a pluralidade visível na realidade factual, conferindo voz a quem outrora jamais era ouvido, como, por exemplo, no caso de mulheres negras, que carregam consigo a pauta histórica de anos de escravidão de suas antepassadas e uma objetificação de seus corpos que é muito particular à sua vivência.


Ao fim e ao cabo, é nítido o profundo distanciamento da juíza em relação ao tempo presente em que se vive, negando atualização em sua atuação profissional para atender a pressões sociais relevantes e plurais de hoje em dia. Trata-se, enfim, da monocultura linear do tempo, artifício denominado por Sara Araújo e que é utilizado como forma de “fechar os olhos” para o que cerca o indivíduo, afetando, sobretudo, grupos mais vulneráveis, como as mulheres naquela situação humilhante do trote ou mesmo minorias específicas dentro da coletividade feminina, que precisam de uma tutela mais presente para suas aflições históricas.  


Isabela Mansi Damiski - matutino

Nota da Monitoria: texto enviado por e-mail, 29 de novembro de 2021, 14h47

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