terça-feira, 30 de novembro de 2021

Epistemologias do norte e do sul na Bienal do livro

 

Com o avançar do tempo, a lógica colonialista que dominou o mundo durante aproximadamente meio milênio ainda deixa profundas marcas, perdurando, mesmo que não facilmente identificada, nas mais diversas áreas, sendo uma delas o direito moderno eurocêntrico. Neste, conforme Sara Araújo, em sua obra: “o primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone.”, é prevista uma ótica de progresso linear, a qual gera exclusões abissais no âmbito jurídico, ao passo que diversos universos jurídicos são negligenciados por não ter sua relevância reconhecida na lógica eurocêntrica dominante.

A autora também ressalta a existência do que ela denomina: “linha abissal” ou “linha jurídica abissal”, que delimitaria o horizonte das possibilidades dentro daquelas a qual dividiria o norte do sul, não geograficamente, mas no campo das ideias, sendo o primeiro representante dos pensamentos hegemônicos na sociedade, relacionados a colonialidade jurídica, a qual atrela-se à colonialidade do saber, em que se deixa de lado questões de toda uma diversidade jurídica mundial; enquanto o segundo são os pensamentos periféricos na lógica do direito moderno eurocêntrico.

De tal forma, em uma análise do Mandado que permitia a apreensão de obras consideradas inadequadas na Bienal, executado sob ordens do então Prefeito do Município do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, o qual, na bienal do livro de 2019, deparando-se com um romance gráfico em que dois heróis da Marvel, Wiccano e Hulkling, se beijam, ordenou que fiscais se dirigissem ao local em busca do que denominou materiais "impróprios" para crianças. Pode-se compreender que tal ação reflete uma epistemologia do norte, visto que faz perdurar valores do conservadorismo homofóbico, entendendo a comunidade LGBTQIA+ como um desvio dos ideais heteronormativos, sustentados principalmente por religiões europeias dominantes, enquanto as inúmeras outras HQs que retratam o mesmo conteúdo, porém entre casais heterossexuais, são consideradas normais e apropriadas para crianças.

Em contraposição, a resposta do Presidente do STF derrubou a decisão que comandava a apreensão dos livros, exercendo uma epistemologia do sul, uma vez que quebra os paradigmas impostos pela logica colonialista eurocêntrica, ultrapassando a linha abissal, assim tornando o direito mais plural e abrangente em seu campo das ideias, conforme a decisão tomada pelo Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes (5a Câmara Cível) para:

 (i) a abstenção de apreensão das obras “em função do seu conteúdo, notadamente aquelas que tratam do homotransexualismo” e (ii) a abstenção da cassação da licença para a bienal, embasando-se na preservação da liberdade de expressão; a Presidência do TJRJ suspendeu a referida liminar, embasando-se, essencialmente, nos artigos 783 e 794 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA; Lei 8.069/90).

 

Isabela Batista Pinto- Turma XXXVIII- Direito Matutino

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