quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Diário crítico-moral (?)

 22/09/2035 

Querido diário,


     Hoje faz uma semana que estou na casa do meu irmão, desde que tive aquela briga. Infelizmente, hojealguns acontecimentos me deixaram muito pensativa, e levaram a um desabafo com meu irmão, esse desabafo de nada me agradou, pois acredito que ele tenha se perdido nesses últimos anos, assim como eu. 

Eu estava na sala com a Bia, e ela estava assistindo a um desenho chamado Cindy, a garota do hotel, basicamente era mais um daquele inúmeros enredos consumistas que são despejados goela abaixo nas crianças. Pois bem, falei para a Bia que conhecia desenhos mais legais e ajudei ela a escolher outra animação, mas uma coisa ficou na minha cabeça, como o Pedro a deixava assistir esse tipo de conteúdo, se quando eu era pequena, ele se quer permitia que eu assistisse animações fúteis e consumistas (como por exemplo a conhecidíssima Polly)?. 

Sei que parece paranoia da minha cabeça, mas pra minha formação, determinados conteúdos que ele não queria que eu visse e diversos dos sermões sobre consciência começaram a formar o pensamento crítico que tenho hoje, e quando vejo que ele simplesmente abandona a Bia nesse sistema capitalista abusivo, fico preocupada.  

As treze horas levei ela para a escola e continuei pensativa ao voltar para a casa, ele a deixou sucumbir por total em um sistema exploratório, a Bia é uma criança alienada, fútil (não por culpa dela, obviamente), estava me falando hoje mesmo que precisava do celular de última geração, sendo que ela ganhou um a seis meses atrás, quando eu a questionei do por que, ela não me dava motivos plausíveis, só sabia dizer que os amigos dela tinham, que era legal e ela queria. Fiquei mais preocupada, decidi falar com o Pedro a noite. 

As vinte horas, depois do café e da Bia estar vidrada em seu celular, chamei o Pedro pra conversar na varanda. Perguntei o que estava acontecendo naquela casa e principalmente o que estava acontecendo com ele, ele passava o dia sendo escravo de uma empresa (cujo modelo ele sempre criticou), chegava em casa e dava dinheiro a Bia pra qualquer coisa que ela pedisse, depois deitava, dormia e começava tudo de novo. Eu disse a ele que estava extremamente perplexa e preocupada com aquela situação, disse que não enxergava mais nele o garoto que me criou que me dizia que que eu jamais poderia fechar os olhos para a realidade do mundo, que eu precisava ter consciência da classe à qual eu pertencia mas que precisava lutar pelos direitos daqueles que não tinham aquilo que eu tinhao que ele me disse, no entanto, me baqueou mais que qualquer coisa. 

Ele me disse que não tinha mais tempo para isso, que mesmo crescendo criticando nosso pai por se matar no trabalho, havia se rendido ao mesmo sistema. Ele sentia que esquecera tudo que o formou, ele disse que não tinha controle sobre o tempo, o tempo controlava ele, e esse tempo era controlado pelo capital, que logo controla a criação moral da Bia, ele sentia que não era permitido a auxilia-la nessa caminhada. Enquanto ela não causasse problemas, tudo bem pra ele deixá-la ser engolida por um sistema que a enfia dentro de uma bolha e a cega pro mundo, tudo bem, pra ele, essa alienação pouparia sofrimentos, faria eles seguirem em frente. Ele não conseguiu depois disso me explicar o que sentia, começou a chorar. Eu o abracei, disse que o amava e que não queria causar dor a ele, ele me deu um beijo na testa e ainda chorando, foi se deitar. 

Talvez eu também seja culpada, explicitei pra ele que ele não é para Bia tudo aquilo que foi pra mim, mas o quanto eu também não contribui pra esse abandono crítico dela, eu só aparecia nos aniversários para lhe dar presentes, era só isso que ela conhecia de “afeto”, o que era material.  

Talvez todos nós sejamos culpados pela criação da Bia, não só eu e ele, como nossa família e todo mundo.  

Desde pequenos, somos levados a ver o dinheiro como o maior símbolo de desejo, queremos todos os brinquedos que são anunciados na TV, todos os aparelhos eletrônicos que outras pessoas tem, e ai ouvimos que tal coisa é cara, e não podemos comprar agora, ou ganhamos e não vemos o valor real dele, existem sempre dois extremos mas que chegam a um mesmo resultado: o dinheiro é o mais importante de tudo, precisamos dele, cada vez mais. 

E assim crescemos, e começamos a trabalhar em empregos que odiamos pra comprar coisas que não precisamos, simplesmente pra satisfazer algo que o capitalismo cravou na gente. 

E quanto mais e mais consumimos, mais esquecemos daqueles que não podem consumir nada, e ainda, quando lembramos que o mundo tem uma desigualdade absurda, “sofremos” por alguns minutos e continuamos a vida como se estivesse tudo bem. 

E aí temos filhos, e idealizamos um mundo perfeito pra ele, e fazemos de tudo para dar um mundo perfeito pra ele, e o enchemos de coisas materiais, que o levam a dar atenção só pro dinheiro e repetimos o ciclo (a história é cíclica né, já dizia Marx). E assim nunca mudamos, deixamos o mundo ser cada vez mais desigual, nos “escravizamos modernamente” por algo que sequer se importa.  

O sistema não liga pra criação moral da Bia, ela só precisa ser um boneco mecanizado pra ele, mais nada. 

Eu preciso conversar com ela, preciso estar do lado do Pedro, agora que vou passar um tempo aqui, preciso ser realmente útil, a Bia precisa ter consciência, precisa enxergar além da relação sujeito-objeto, ela precisa ver o mundo de verdade, precisa sim sentir a dor dos fatos, porque não é de ilusões que o mundo é feito 

Eu preciso ajudar a Bia e o Pedro, para que a Bia cresça, ajude os colegas dela a pensar fora dessa bolha(que repassarão esse pensamento aos pais), para que futuramente não se perca como o Pedro, pelo contrário, que lute e resista para que um dia, haja um mundo, onde o capitalismo insustentável não é realidade. 

A Bia e o Pedro me ajudam tanto, queria retribuir ao máximo, quem sabe auxiliando-os aos poucos, não aprendo muito mais. 

A gente e o mundo só mudam, quando a resistência e o debate existem. 


Isabel Borderes Motta - 1° ano noturno 

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