domingo, 6 de outubro de 2019

Madame satã nos dias atuais


Madame satã é um filme escrito e dirigido por Karim Aïnouz, inspirado na história real do pernambucano João Francisco dos Santos, o qual usava “madame satã” como nome artístico em suas performances transformistas realizadas em casas noturnas na Lapa, Rio de Janeiro, na década de 30. O filme aborda o universo de prostitutas, bêbados, artistas, gays e pequenos golpistas, sendo o próprio João homossexual negro. Uma questão também explícita é a estrutura social excludente do Rio, onde a violência e o preconceito contra os negros e gays é extremamente forte. Nesse sentido, o filme aborda bem os métodos usados como resistência pelos marginalizados e excluídos da sociedade, como a capoeira, além de costumes, religião de origem africana. O filme já inicia com a leitura de uma sentença proferida contra João, condenado por homicídio doloso, e na qual exprime muito bem como a sociedade da época o enxergava, julgando-o simplesmente como um desordeiro, um “torto” e devasso que praticava atos repulsivos, e por isso ele mesmo se vê nessa vida malandra, mesmo querendo uma vida profissional artística. Mas o filme nos mostra um lado de João que cuida e protege os seus sempre que necessário, até se envolvendo em brigas, e que luta para ganhar seu dinheiro e se “endireitar”, como ele mesmo diz, nessa sociedade tão segregacionista e trans-homofóbica.
É fato que o Brasil é um país de grande diversidade cultural, devido às inúmeras influências que recebeu. A evolução dos direitos dos negros foi um caminho árduo e conflituoso, no entanto, principalmente pela atuação de movimentos sociais, teve-se, gradativamente, um olhar voltado a essas minorias. Posto isso, cabe igualmente falar dos homossexuais, uma vez que João era e também sofria com a homofobia. Fazendo um paralelo com a criminalização da homofobia e transfobia, que se concretizou somente em 2019 com a ADO 26, nota-se como essa é uma luta colossal e intensa. Nesse sentido, retomando a teoria do autor Antoine Garapon, que diz que a judicialização do Direito vem acontecendo desde anos 90, o protagonismo dos tribunais nesses assuntos só se dá justamente por terem sido provocados, como por movimentos sociais e indivíduos, que demandam justiça e reivindicam a efetivação de seus direitos. Assim, o magistrado, apesar de atuar em temas que não são de sua devida competência, acaba intervindo em questões morais emergentes que cabem ao legislativo, mas que por fim são de extrema importância para a sociedade, pois garantem cada vez mais uma maior harmonia e igualdade, dando voz, espaço e força às minorias. O Direito é um recurso à disposição de quaisquer autores e faz parte da vida social; ele precisa ser mobilizado, como sustenta o autor Michael McCann.
O filme passa longe de ser uma mera espetacularização, pois mostra a realidade e trajetória nua e crua que madame satã teve que enfrentar, tanto no cortiço em que morava quanto nos lugares que frequentava, até sua primeira apresentação no bar do Amador. Ademais, por mais que inúmeros avanços tenham sido alcançados, como muitos direitos que foram positivados especificamente para proteger e tutelar essas minorias marginalizadas e sem voz (negros e LGBT), o preconceito, a intolerância e a violência ainda são intensos e preocupantes até hoje. Atitudes vexatórias e discriminatórias, xingamentos e desrespeito (como ocorre no filme: “você está vestido de homem ou de mulher?”/“maricagem”), infelizmente são enfrentados diariamente por incontáveis cidadãos brasileiros, que se veem à mercê da sociedade e da justiça. No fim do filme é dito que, em janeiro de 1942, João é posto em liberdade após cumprir pena de 10 anos, e no carnaval do mesmo ano ganha o concurso do bloco caçadores de veados com sua fantasia madame satã, além de ganhar outros carnavais, obtendo a notoriedade e o reconhecimento como sempre sonhou. João não teve uma vida fácil, e muito menos segura, e foi isso que fora discutido no cine-debate realizado durante a VI semana de sexualidade e gênero realizada na Unesp, contando com a presença de duas integrantes transexuais do coletivo Casixtranha. Ambas relataram a dura realidade de como é ser transexual no Brasil, todos os preconceitos, medos e adversidades que enfrentam por simplesmente serem quem são, mas, ao mesmo passo em que também mostraram como recebem muito apoio e força daqueles que simpatizam com suas causas e com o movimento LGBT em si. Por fim, apesar do notório crescimento de pensamentos extremistas e conservadores no país e o no mundo, acontecimentos como a criação da lei do racismo no7.716 e da atual criminalização da homofobia demonstram que, apesar da morosidade, essas minorias estão sendo vistas pelo Direito, mas a luta está longe de ter um fim.
Raquel Colózio Zanardi – 1o ano Direito (matutino)

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