segunda-feira, 2 de setembro de 2019

O reconhecimento de uma diversidade de Direitos

No ano de 2001, no Estado do Rio Grande do Sul, foi analisado, pela 19ª câmara cível, um agravo de instrumento movido por Plínio e Valéria Formighieri contra uma decisão judicial que indeferiu uma liminar reintegratória. A liminar foi concedida por uma juíza de Passo Fundo que instaurava o processo de reintegração de posse baseado no artigo 928 do Código de Processo Civil de 1973, vigente à época do julgado.

Segundo Sara Araújo, o modelo jurídico vigente no modelo político neoliberal, que se apresenta como técnico e não político, respeita mais os mercados do que as pessoas. Tal pensamento pode ser percebido na liminar concedida pela juíza, garantindo a reintegração. Afinal, sob uma perspectiva “mercadológica” a terra vale por quanto produz e não por quantos vivem dela. Se um latifundiário, por meio do uso de tecnologias avançadas, produz em quantidade recorde com o mínimo de mão de obra enquanto um grupo de agricultores produz apenas para subsistência dos que ali vivem, o Direito calcado na razão metonímica não ponderará antes de ceder a terra para o que produz mais. Dessa forma, assim como defende Sara Araújo o Direito se torna “um instrumento de expansão do colonialismo e do capitalismo, sendo responsável pela invisibilização jurídica e pelo silenciamento de sujeitos”.

Analisando os votos na análise do agravo de instrumento, se destaca o voto do relator, que venceu por 2 votos à 1, e justificou, usando elementos do Direito e da construção jurídica, a legitimidade do indeferimento da liminar reintegratória. Diz o magistrado: “O Juiz, como intérprete da norma jurídica (...) deve adequar o Direito positivo a cada fato concreto que lhe venha a ser submetido. Há de buscar novos rumos, não nos satisfazendo com a interpretação jurídica tradicional. Periodicamente é necessário revisar conceitos, adequando-os aos novos fatos, de nova época, e sob contexto diverso daqueles existentes”. Se percebe no voto do desembargador uma tentativa de ir além da interpretação “técnica” do Direito, em convergência com o conceito de Interlegalidade de Boaventura de Souza Santos: “vigência de um direito poroso formado por múltiplas redes de legalidade, de tal modo intrincadas e diversas, que é possível, na mesma ação de cumprimento de uma regra, estar a transgredir outra”, o magistrado não propõe abandonar o ordenamento jurídico vigente, mas inseri-lo em um contexto de outras legalidades.

Poderia se argumentar, por outro lado, que o voto do desembargador não entra em sinergia com a ideia de “Diversidade de Direitos” de Sara Araújo, mas abandona o Direito vigente buscando construir outro por si só. Em determinado momento diz o desembargador: “O sistema judiciário se forjou na construção judicial, e em terras locais, se pretende impedi-la, sob o argumento de arranhão da lei. ”. A afirmação poderia ser devolvida às avessas: Se pretende impedir a lei sob argumento de arranhão na construção judicial. Sob esse raciocínio, surgem questões: Quem tem legitimidade para guiar o ordenamento jurídico? Direito é lei? Direito é o que os tribunais dizem que ele é? O raciocínio de Sara Araújo aponta caminhos para as respostas: todas afirmativas e negativas ao mesmo tempo. Isso é a diversidade de Direitos: é aceitar a todas essas respostas sem transgredir umas às outras.

Dessa forma, cabe ao jurista compreender que no mesmo ordenamento jurídico em que se encontrava o artigo 927 do Código de Processo Civil, que incumbia o autor apenas de comprovar a posse, a turbação, a data da turbação, a continuação da posse e a sua perda para a expedição do mandato de reintegração também já se encontravam o parágrafo XXIII do artigo 5º da Constituição Federal que prevê que a propriedade cumprirá sua função social e a lei 8629 de 1993 que prevê os procedimentos para desapropriação em caso de descumprimento da função social. Tanto a liminar da juíza de Passo Fundo que garantiu a reintegração quanto a decisão judicial que a indeferiu foram baseadas na lei, dessa forma, como disse Sara Araújo, o ordenamento jurídico começa a lentamente confrontar a “concepção liberal do direito e da justiça com a diversidade de direitos e de justiças que existem no mundo”.

Pedro Augusto Ferreira Bisinotto
Direito-Noturno


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