segunda-feira, 2 de setembro de 2019

O paralelismo entre a “razão metonímica” e o latifúndio, e a alteração do direito

Os latifúndios são caracterizados como propriedades agrícolas de grande extensão e posse concentrada em uma única pessoa, família ou empresa. No Brasil, as origens da propriedade latifundiária remontam ao passado colonial através da exploração da cana, café e algodão. Outras características pelas quais são conhecidos os latifúndios são: exploração abusiva e uso abaixo do nível de exploração máxima da terra; baixos rendimento unitário e capitalização; e mão de obra submetida à condições degradantes de trabalho.

Este modelo de exploração das terras, que continua recorrente na contemporaneidade, é a repercussão histórica das “capitanias hereditárias” e das “sesmarias”, sistemas de distribuição de terras destinadas à produção agrícola, que disponibilizava porções de terras excessivamente vastas à proprietários limitados, o que gerava dificuldades em cultivá-las por toda sua extensão. Além disso, utilizava-se mão de obra de escravos ou imigrantes em situação análoga à escravidão.

Dito isso, é fácil fazer um paralelo entre a “razão metonímica”, tratada por Sara Araújo no texto “O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone.” (2016) e o latifúndio: o modelo dominante, colonial e capitalista é externado por ambos. Isto é, enquanto a “razão metonímica”, como descrita por Araújo, estabelece os parâmetros epistemológicos e jurídico desse modelo, afirmo que o latifúndio é a manifestação espacial dele.

Seguindo nesta perspectiva de “razão metonímica”, Araújo discute como pode o direito, assente na prevalência dessa razão, legitimar o modelo previamente citado: “Associada às ideias de racionalidade, neutralidade, objetividade e justiça, a linguagem jurídica moderna assume, pois, um papel fundamental na legitimação do modelo dominante, colonial e capitalista […]” (p. 93*). 

No ordenamento jurídico brasileiro essa “legitimação do modelo dominante” é incontestável quando avaliamos a lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, a Lei de Terras, como ficou conhecida, onde se regulamentou as questões de posse e a propriedade da terra pela primeira vez. Promulgada por D. Pedro II, a Lei de Terras só contribuiu para preservar o latifúndios e privilegiar os fazendeiros, posto que: 1) aqueles que ocupavam as terras receberiam o título de “proprietário” e 2) as terras ainda não ocupadas passavam a ser propriedade do Estado, podendo ser adquiridas somente através da compra nos leilões e mediante pagamento à vista, o que obstava a aquisição delas por quem não pertencesse à elite agrária — classe social representativa do modelo.

A despeito da legitimação do modelo, isso gerou eventuais controvérsias e a sociedade civil se engajou em combates, surgindo, por exemplo, as “Ligas Camponesas”, a partir de 1945. Como efeito, o código “Estatuto da Terra” foi efetivado em 1964 — é determinado que o Estado deve garantir o acesso à terra a quem vive e trabalha nela — e o princípio da função social da terra foi outorgado pela Constituição Federal de 1967 — esse princípio “consiste na correta utilização econômica da terra e na sua justa distribuição, de modo a atender ao bem-estar da coletividade, mediante o aumento da produtividade e da promoção da justiça social”**.

Esta “movimentação jurídica” é a “ecologia de direitos e de justiças” explicada por Araújo em seu texto, sendo essa “ecologia” definida por ela como a “provincialização” e “desparoquialização” do direito moderno com o propósito de ampliar e incluir “outras vozes e direitos subalternos” no ordenamento jurídico.

E é conforme esta conceituação de “ecologia de direitos e de justiças” que o Agravo de Instrumento nº 70003434388, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, e a decisão sobre ele serão discutidos.

Interposto por Plínio e Valéria Formighieri em 2001, o Agravo objetivava a revisão de uma decisão judicial onde fora negado a eles a reintegração de posse de uma propriedade rural sua. Sustentavam os agravantes, Plínio e Valéria, que sua propriedade houvera sido invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Os agravados, em contrapartida, alegavam que a propriedade rural dos Formighieri descumpria sua função social. O Tribunal, após investigação acerca da função social, comprovou a improdutividade da propriedade e reiterou a negativa quanto a reintegração.

Destarte, a decisão do TRF4 pode ser interpretada como a culminação da “ecologia de direitos e de justiças” porque foi desempenhada como consequência da alteração do direito moderno, representativo do modelo dominante, colonial e capitalista, em um direito plural, que representa as lutas jurídicas do, antes, invisibilizado.

Thayná Roque de Miranda - Matutino

* ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.º 43, set/dez 2016, p. 88-115.
** https://jus.com.br/artigos/66844/a-funcao-social-da-terra-e-a-desapropriacao-para-fins-de-reforma-agraria

Nenhum comentário:

Postar um comentário