domingo, 18 de agosto de 2019

Direito para quem? O impasse entre a Razão e a Moral.


            Sob a perspectiva de Bourdieu, o qual tinha como temática de estudo o poder simbólico, o direito também era um dos instrumentos capazes de exercer seu poder na sociedade. Para tanto, esta ciência deveria transparecer ser a mais racional possível, a fim de que sua legitimidade não fosse questionada, mesmo que por trás desta “vestimenta” existisse interesses de classe, fazendo do direito seu instrumento de pressão e de alcance. Diante disso, o campo jurídico tornou-se um cenário de relações de força e de pressão propriamente jurídica, exteriorizada a partir dos espaços dos possíveis. Dessa forma, as decisões encaram o impasse entre a doutrina, a jurisprudência e a produção científica colidindo com os vetos provenientes de pensamentos moralistas e religiosos.
            Em um primeiro plano, é preciso evidenciar que as demandas sociais levadas ao judiciário são fruto de uma ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ou seja, uma legislação vigente que estaria contrariando os princípios da constituição. Nesse interim, coube ao Judiciário analisar e julgar o pedido. Uma demonstração de racionalização do direito e da interferência da moral/religião nessas decisões podem ser encontradas na parte do julgamento destinada aos “Amicus curiae” – judiciário convida especialistas para contribuir com informações pertinentes ao julgamento, inclusive a CNBB – grupo católico – julgou-se influente para opinar. Ainda que os ministros tivessem tentado embasar suas justificativas em circunstâncias estritamente técnicas, estes, principalmente aqueles que votaram de maneira contrária ao pedido, mostraram-se influenciados pelo seu “habitus” – termo usado para definir as tendências que os indivíduos estão sujeitos a tomar devido ao meio social em que estão inseridos. Ricardo Lewandowski, ao expor seu voto, traz uma citação grega de Xenófanes, “A verdade certa, homem nenhum conheceu, nem conhecerá.”; a princípio, pode ser vista de maneira ingênua quanto à interpretação das normas. Contudo, este relaciona a verdade suprema, a “essência” de toda a verdade, a um plano inteligível que está além do terreno, logo, o ser humano não é capaz de compreender. Desse modo, vê-se que o ministro apresenta-se imbuído pelo seu habitus, além de um moralismo e da religião, influindo sobre uma população plural e em um território laico.
            Não obstante, os ministros se mostrarem tendenciosos, fato que se encaixa à descrição do direito transvestido de Bourdieu, somente para transparecer imparcial e justo. Há também a problemática levantada por esse mesmo ministro supracitado, o qual se questiona se seria correto o Judiciário alterar um texto legislativo, função esta que seria, supostamente, do Poder Legislativo. O espaço dos possíveis torna-se mais próximo ao âmbito do “impossível”, pois nesse sistema bicameral predomina o moralismo, não mais velado como no Judiciário, mas de maneira organizada em bancadas legislativas que se alinham para vetar e aprovar o que lhes convêm. Assim sendo, as mulheres se encontram sujeitas a terem seus destinos definidos por outrem que não compartilha de seu habitus; pelo contrário, o extremo oposto – homens moralistas e que não entendem o peso de carregar um feto destinado a falecer nas primeiras horas de vida caso este não faleça ainda no útero.
            Portanto, nota-se que o direito trilha passos lentos para adequar a legislação às demandas sociais e isso é fruto de representantes negligentes com suas funções, seja do Judiciário ou do Legislativo. Logo, urge que estes honrem seus cargos e abandonem a instrumentalização da ciência jurídica, não servindo a uma ordem hegemônica que exclui as minorias e que usa de uma desonestidade intelectual para aprovar textos que condizem somente com suas crenças pessoais e não ao interesse público. Com a mudança, é possível vislumbrar uma sociedade mais justa e que não sustenta a via crucis de uma mãe no aguardo da morte de um feto anencefálico, por exemplo.

Bianca de Faria Cintra - Direito Noturno, 1º Ano.

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