domingo, 18 de agosto de 2019

Bourdieu e a atualização da forma do Direito.


         O sociólogo francês Pierre Bourdieu sustentava a visão de que o Direito não se firma como ciência autônoma, sendo o campo jurídico influenciado por pressões externas. Tais forças exógenas de modificação que incidem sobre o Direito pode advir de diversas fontes, como dos campos político, econômico e social. Sendo assim, a ação dos integrantes do Campo Jurídico é guiada de acordo com estas ingerências, todavia a decisão dos magistrados, assim como a teorização produzida pelos doutrinadores, são performadas com certa margem, denominada por Bourdieu como espaço do possível.
            A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 é um exemplo evidente sobre como essas forças em conflito na sociedade adentram no Direito e influenciam as tomadas de decisões pelos magistrados. A ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, em seu voto expõe a máxima “cada tempo tem seu direito. A Justiça não é uma ideia acabada, é um fazer que a sociedade constrói a cada tempo”, sendo assim é evidente como as mudanças sociais desempenham papel fundante nas atualizações do Direito. Este pensamento vai de contraponto com a famosa Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, na qual é defendida a total autonomia do Sistema Jurídico frente ao corpo social.  Ademais, a atualização da interpretação das normas constitucionais por meio de ações levadas ao jugo desta Corte é de suma importância para a adequação do Direito Brasileiro às novas demandas sociais. A mesma ministra escreve, em outra parte de seu voto a seguinte máxima “a atualização do sistema jurídico de acordo com as demandas de seu povo o mantem vivo”.
            A teoria de Bourdieu também traz à reflexão outro aspecto muito presente na referida Arguição, o conceito de poder simbólico. Este termo pode ser aproximado da noção de distinção referente à uma determinada posição de classe. Assim como na definição Weberiana de poder, que consiste na ideia de exercer influência sobre o agir de outrem, a ideia do pensador francês implica sobre as disputas simbólicas de influenciar o agir dentro de um mesmo campo social. No campo jurídico, a decisão de um magistrado de Suprema Corte goza de um grau de poder superior em oposição à interpretação dada por um juiz de primeira instância. Isto é evidente na forma com a qual, ordenamento jurídico brasileiro, as decisões do STF possuem uma força quase vinculante. Por conseguinte, o entendimento firmado pelo Acórdão da ADPF-54/DF modificou toda a interpretação jurídica dada pelos magistrados de todas as instâncias da justiça, bem como alçou novo entendimento referente a uma lei, tornando não mais necessária permissão judicial para a interrupção terapêutica da gravidez de feto anencefálico.
            Outrossim, todo o texto faz evidente a característica evidenciada por Bourdieu a respeito do linguajar jurídico. O uso de termos gerais, bem como construções sintáticas passivas formam os conceitos de universalização e generalização definidos pelo pensador. O jurista não profere sua posição de modo pessoal, mas sempre com caráter genérico e universal, muitas vezes usando expressões como “a vontade da sociedade” para racionalizar universalmente seu posicionamento. A própria frase supracitada da ministra Cármen Lúcia deixa claro este conceito, ao utilizar propor que a justiça é construída pela sociedade e não pela ação dos magistrados. Todavia, a justiça só é modificada em função da ação dos juízes, e possui graus diferentes de modificação, relativamente à posição de classe do jurista ocupa dentro do Campo Jurídico. Este é um paradoxo bastante característico dos embates do Direito.
            É notável também que a fundamentação e o posicionamento semelhante entre a maioria do corpo de magistrados que formam aquela Casa tem base no habitus similar dos juízes. Este conceito, trazido por Bourdieu, compreende a formação moral de cada ministro, tal constituição pessoal é influenciada por um conjunto de valores trazidos da formação acadêmica, familiar e de classe. Tendo em vista que a maior parte dos ministros são oriundos de um extrato social semelhante, logo se apreende a razão dos posicionamento consoantes.
            Por fim, a decisão do Acórdão, em sentido procedente da ADPF-54/DF inaugura um novo entendimento e um avanço memorável no tocante ao direito à saúde e à autonomia da vontade da mulher. Tal posicionamento em maioria tomado pela Suprema Corte é certamente um reflexo de uma modificação no pensamento social em relação à autonomia da mulher. Ainda, o debate realizado para esta atualização da ordem jurídica brasileira trouxe à luz uma profunda reflexão sobre conceitos filosóficos, como a vida e a morte. De acordo com a Lei Civil Brasileira, a morte se dá de acordo com a cessão das atividades cerebrais (Código Civil, Lei de Registros Públicos e Lei dos Transplantes), contudo o conceito de vida que se toma é a respiração (Lei de Registros Públicos), a elucidação desta antinomia entre normas de mesma hierarquia deve ser dada pelo STF. Desse modo, não houve função legislativa do Poder Judiciário. Enfim, apesar das críticas, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a vida extrauterina do feto anencefálico é inviável, além de reconhecer o sofrimento de muitas mães que são obrigadas a manter tal sorte de gravidez mesmo sabendo que o futuro filho nascerá morto. Em razão disso, a justa decisão, nas palavras da Ministra supracitada, foi “uma decisão possível numa situação impossível”. 

Luiz Felipe de Aragão Passos - 1º Ano de Direito/Matutino.

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