segunda-feira, 2 de julho de 2018


  Historicamente, no Brasil, a distribuição de terras é extremamente desigual. Desde os primórdios da colonização do ex Pindorama, com os sistemas de sesmarias e capitanias hereditárias, grandes extensões de terras foram atribuídas a uma minoria de alto poder aquisitivo, em detrimento das massas. Posteriormente, essa discrepância no acesso à terra, devido a políticas estatais, foi perpetuada no país, a exemplo da Lei de Terras no século XVIII e da desapropriação de camponeses na Guerra do Contestado, o que indica a não representatividade do povo, justamente por quem deveria refleti-los. Boaventura de Sousa Santos aponta esse quadro como direito configurativo, ou seja, como o direito pode refletir as relações desiguais da sociedade em seu funcionamento e em suas decisões. Assim sendo, para uma mudança em prol da democracia, o direito deve ser modificado e reconfigurativo, de forma a desestabilizar as desigualdades dessas relações no campo jurídico.
  Essa reconfiguração pode ser exercida através da ação dos movimentos sociais, por Boaventura classificados em velhos, novos e novíssimos. Os movimentos novos, surgidos em meados das décadas de 1960 e 1970, valorizam identidades e questões culturais, além de reconhecer o "status quo" para modificá-lo, participando do direito. Já os movimentos novíssimos, mais recentes que os anteriores, negam o “estado das coisas” da sociedade, de forma a negligenciar a possibilidade de participação no direito para a efetivação de suas lutas.
  Nessa perspectiva, o Movimento dos Sem Teto (MST) atua sem reconhecer a legitimidade das posses desiguais vigentes, e ocupam propriedades a fim de cumprir suas funções sociais. Essas ocupações podem ser exemplificadas pela instalação dos manifestantes na Fazenda Primavera, cuja posse era atribuída a uma minoria de alto poder aquisitivo, que não efetivava a função social prevista na Carta Magna do Brasil. Essa negligência dos proprietários, de um requisito democrático primordial, é concretizada com a negação dos mesmos acerca da vistoria do INCRA, e tentava ser ocultada com argumentos em prol do agronegócio, como beneficiador de todas as classes sociais.
  Nesse contexto, o judiciário, com seu poder hermenêutico das leis, legitimou a ocupação do MST, em detrimento dos interesses da classe minoritária, porém dominante dos fazendeiros da Primavera. Esse notório passo para a Democracia de fato (para além de uma “cidadania de papel”) indica uma reconfiguração do Direito emancipatório, em oposição ao Direito configurativo de continuidade e reflexo das desigualdades econômicas e sociais entre as massas e os historicamente privilegiados.
  Portanto, o julgado da Fazenda Primavera pode ser plenamente relacionado às ideias de Boaventura de Sousa Santos, além de ser um exemplo de conquistas populares e revolucionárias.

Giovana Fujiwara - Direito diurno


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