sábado, 5 de dezembro de 2015

Aborto de anencéfalos e Brasil como um país laico

    Para Bourdieu, o direito deve evitar o instrumentalismo a serviço de uma classe dominante e o formalismo também, isso é, deixar de ser uma força autônoma diante dos grupos de pressão presentes na sociedade. O pensador critica Kelsen e seu positivismo ligado à forma e também Marx, pois as relações do direito com os indivíduos na sociedade são muito complexas do que apenas a luta de classes.
    O discurso jurídico detém uma forma específica e traz consigo elementos distintos. No caso julgado, sobre o aborto de anencéfalos, ocorre uma luta simbólica que se situa dentro do – alargamento -  espaço dos possíveis. A arma para a revolução/mudança deve servir para fazer com que o Direito valha para todos, levando em consideração não só o aspecto formal como o material do mesmo, mas também a dinamicidade da sociedade. Há tempos sabe-se que o campo jurídico é composto por valores, códigos, cultura, moral, etc. Ademais, a influência da moral, por muito tempo, foi um fator determinante ao Direito. Contudo, atualmente, devido a discursos políticos com conotação religiosa de que o aborto é contra a vida e os preceitos divinos e também uma forma de assassinato por parte da gestante, ainda vê-se estreita ligação entre ambos.
    Deve-se compreender que o direito não pode ser aplicado formalmente em todos os casos, uma vez que deve ser pensado em situações concretas/materiais, moldado a situação real e social vivida no contexto. Bourdieu discorre sobre os doutrinadores e os operadores do direito, sendo que ambos são os intérpretes da lei, contudo, a diferença é que um aplica a teoria formal enquanto o outro, a material – atrelada a aplicação da prática jurídica. Assim, magistrado deve adaptar suas fontes e seu saber às novas circunstâncias do século XXI e suas mudanças no decorrer dos anos.
   Em relação ao aborto de anencéfalos, tal decisão ficaria dentro de um novo limite dos possíveis, uma vez que não há potencialidade de vida no feto, e, dessa forma, seria apenas uma forma de parto interrompido. Além disso, deve-se levar em consideração a escolha da mãe, uma vez que seria uma “forma de tortura” gestar uma criança que nascerá sem vida – fato conhecido desde o início da gravidez. Será que o direito tem tanto poder assim para definir o que é vida e o que não é? Outro empecilho para a criminalização do aborto, seja ele pelo motivo que for, é a prática clandestina e perigosa, que leva milhares de mulheres à morte.
    Portanto, nota-se a influência de uma moral religiosa forte e o poder simbólico da bíblia e da igreja na sociedade, porém, esse poder é irracional e visa manter o conservadorismo permanente na sociedade brasileira. Assim, ocorre também a influência da mídia, que, atrelada aos grupos dominantes, passa a ideia para a massa social de que o aborto é uma forma de assassinato e jamais deve ser permitido, logo vemos a conotação religiosa como fundamento à criminalização do aborto, o que não deve ser permitido, uma vez que o Brasil é um país laico, onde a religião e a política são separadas. Vê-se, novamente, uma tentativa de instrumentalização do direito a serviço da classe religiosa para que a mesma aumente sua influência e conquiste mais seguidores, e assim o ciclo do capitalismo se inicia (uma vez que ao falarmos de igreja, lembramos de fiéis, dízimo, influência na sociedade brasileira, corrupção, hipocrisia, conservadorismo, influências crescentes de políticos religiosos, como Eduardo Cunha, no Congresso nacional, etc.).
    Contudo e por fim, Relembrando Boaventura de Souza Santos e seu questionamento acerca da emancipação do direito, nota-se que, atualmente, a margem de interpretação da jurisprudência está mais aberta e leva em consideração o panorama da sociedade, podendo manipular a lei, a moral e a logica no espaço dos possíveis.

Mariana de Arco e Flexa Nogueira – 1ºano Direito Noturno


Direito e a emancipação regulada

Primeiramente, analisam-se os conceitos de instrumentalismo e formalismo, conceituados por Pierre Bourdieu, como premissas essenciais para entender o direito e seus desdobramentos. O primeiro refere-se à ideia de que o direito está a serviço de uma classe dominante, enquanto o segundo entende o direito como força autônoma diante das pressões sociais. A partir disso, recorre-se a história: quando os portugueses adentraram a nação tupiniquim, foi nítida a presença de todo um aparato religioso montado em busca da evangelização para religião católica. Com o passar do tempo, os grandes proprietários de terras, como a classe dominante da época e católicos fervorosos, influenciaram todo o andamento da sociedade brasileira, inclusive o direito. 
A partir daí, percebeu-se diversos embates entre a racionalidade e a religião, contrapondo o campo da ciência em relação ao campo da moral. Como já se sabe, o aborto é condenado pelo catolicismo, uma vez que só Deus seria capaz de tirar a vida de um ser humano. Atualmente, há grandes debates científicos quanto ao conceito de vida e diversas vezes, a religião é acionada. Em 2012, A ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamental) buscou abordar o polêmico tema do aborto de anencefálos. Ainda assim, antes de se discutir sua validade, deve-se abordar algumas ideias e conceitos cunhados pela sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu.
Em um contexto marcado pelo poder econômico, político e social, é impossível, segundo o sociólogo, analisar o direito isoladamente, já que o pensamento jurídico depende diretamente das conexões com outros campos de interesses. Desse modo, há um espaço dos possíveis dentro do campo jurídico, delimitado pela jurisprudência e hermenêutica, que limita a análise interpretativa de questões exteriores ao direito. O conceito de habitus é entendido como aquelas características internalizadas pelo indivíduo por meio de uma força simbólica herdada do capital simbólico, que de forma tão interiorizada não é percebida pelo próprio indivíduo, favorecendo, normalmente, a classe dominante. Assim, qualquer mudança no âmbito do direito é “posta em forma” pelos princípios e regras da prática jurídica por meio da lógica positiva da ciência aliada pela lógica normativa moral, viabilizando uma emancipação, ainda que regulada. 
Nesse cenário, o aborto do anencefálos encaixa-se: o Código Penal brasileiro proíbe a realização do aborto nesse caso, no entanto, a ADPF 54 julgou procedente a realização dessa prática, uma vez que as mulheres não seriam obrigadas a gerar um filho que certamente não sobreviveria, resultando em complicação para a própria gestante. Assim, mostra-se que essa mudança, ainda que contrarie a lógica normativa moral, possa existir, a fim de adaptar-se aos avanços científicos cada vez mais presentes na realidade. Desse modo, esse tipo de aborto faria parte do espaço dos possíveis analisado por Bourdieu.
Para o francês, a criação jurídica baseia-se, portanto, sob três aspectos essenciais: suposição de universalidade, procura social e a lógica própria do direito. A primeira pode ser entendida como o fato do aborto de anencefálos possibilitar que todas as mulheres possam praticar o ato, já o segundo refere-se a um estado de procura incessante de indivíduos que buscavam viabilizá-lo e por fim, a própria decisão do STF que, por meio de uma lógica própria jurídica, autorizou a prática. Nesse sentido, critica-se de um lado a dependência da lógica normativa moral por impedir que algumas mudanças positivas aconteçam, ao mesmo tempo que, simbolicamente, não se pode ignorar todo um engendramento de uma moral quase intrínseca, que molda os indivíduos.

                        Leonardo Borges Ferreira - 1 º Ano Direito Noturno

O Ethos compartilhado (ou não)

As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas. (BOURDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 211).


O Direito é intrinsicamente ligado ao processo histórico de mudanças, uma vez que em cada momento revela-se como um estado de forças diferentes que têm necessidade de se adaptar à realidade, condicionando novas condutas e agindo conforme o chamado “espaço dos possíveis”.
Mas o que seria o “espaço dos possíveis” e de que forma tal espaço está relacionado com a prática e o discurso jurídico? Tal “espaço” tratado por Bourdieu diz respeito ao campo passível de abordagem pelo Direito, ou seja, o campo jurídico influencia e aborda outros campos científicos, que vão desde a economia até a medicina. Tal abordagem ao mesmo tempo que expande o campo jurídico salvaguardando uma relativa independência, também de certa forma o deixa dependente, pois em muitos casos é necessária a intervenção externa de outros campos para que o próprio direito possa agir (por exemplo, a espera por um relatório da perícia para averiguar se o réu estava ou não portando a arma do crime).
Exemplificando tal relação do Direito com o chamado “espaço dos possíveis” e também com o processo histórico de mudanças, pode-se citar a ADPF 54/DF. Nessa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde formalizou um pedido no qual demonstra ser improcedente a criminalização por via de ação penal pública de profissionais da saúde que haviam atuado em processos de antecipação terapêutica do parto – especificamente a interrupção da gravidez de feto anencéfalo – contestando para tal fim, os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, que criminalizam a ação de provocar o aborto em si ou consentir que outrem lhe provoque.
Mas onde está a relação que envolve o Direito? No caso proposto pela ADPF, há a chamada historicização da norma, ou seja, uma questão que anteriormente não seria discutida devido à indisponibilidade de tecnologia para avaliar as condições de vida do feto em questão, em 2004 já poderia ser debatida e adaptada, tanto pelo avanço do campo médico quanto pela transformação da própria receptividade da sociedade, ou seja, embora a fonte seja a mesma (a norma), a hermenêutica muda e possibilidades inéditas de interpretação passam a ser conferidas ao Direito.
Quanto aos sentidos de interpretação da norma, Bourdieu os vincula à dinâmica da “luta simbólica” no campo jurídico, de acordo com posições ocupadas em especial por duas categorias de “intérpretes”. Os chamados “doutrinadores”, que são os encarregados da elaboração puramente teórica e os “operadores”, responsáveis pela atividade prática, associada ao trabalho dos magistrados, que através da jurisprudência realizam atos e também contribuem para a construção jurídica.
O juiz, portanto, opera a historicização da norma, pois ao invés de simplesmente executar a lei, dispõe de certa autonomia para adaptá-la. Logo, o veredicto é o produto dessa “luta simbólica”, vinculado muito mais às atitudes dos agentes do campo que às normas puras. Sua enunciação, no entanto, embora possa significar novas criações, está ainda inscrita no âmbito de determinadas estruturas e produz efeito social, está atrelada também aos interesses sociais dos agentes formalizadores.
Por produzir efeito social e estar atrelado a determinadas estruturas, o texto jurídico apresentado tanto no veredicto, quanto na interpretação normativa, representa além da “luta simbólica” entre “doutrinadores” e “intérpretes”, uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial.
O Ethos compartilhado explica a expressão dos valores dominantes no âmbito jurídico, Bourdieu explica tal fenômeno expondo que a proximidade de interesses está ligada a formações familiares e escolares semelhantes, o que favorece que a visão de mundo dos aplicadores do Direito seja muito próxima. Daí, para o autor, há a pouca probabilidade de desfavorecimento dos dominantes, pois são eles quem majoritariamente aplicam o direito.
A moral existente do nosso tempo, embora possibilite uma discussão sobre aborto de anencéfalos, não permite ir muito além na discussão do aborto, por exemplo, pois a sociedade brasileira, no caso da ADPF 54/DF, ainda possui muita influência da religião, como demonstrado na contraposição do preâmbulo e do texto da Constituição, esse declarando o Brasil como laico.
Além da presença desse ethos compartilhado – o da moral cristã – a ADPF também traz outra questão tratada por Bourdieu, a do efeito simbólico, traduzido na Arguição como a reverência feita pelas pessoas aos ministros, por acharem que os mesmos, por serem aplicadores do Direito e ministros, são mais capazes. Tal efeito simbólico apenas reforça que há sempre uma hierarquia presente, seja no Direito, seja na sociedade, e que a mesma é responsável por atribuir uma espécie de contorno às discussões, afinal, a opinião mais valiosa pertencerá aos que estiverem mais acima na hierarquia, quase remetendo a hierarquia de normas proposta por Kelsen. O direito tem um poder simbólico, logo, mesmo que os movimentos sociais levantem questões, a última palavra é a do direito (como no caso da ADPF).
Tal fenômeno apenas reforça a necessidade da formação de juristas com senso crítico, que doutrinem e apliquem o Direito de forma consonante à Constituição mas ao mesmo tempo resguardando o princípio da dignidade da pessoa humana, seja ele aplicado a uma mulher grávida de feto anencéfalo (o qual não tem condições de vida fora do meio intrauterino) impossibilitada de interromper sua gestação; a uma transsexual à procura de sua cirurgia de mudança de sexo, seguida da mudança de seu nome civil; a homossexuais impossibilitados de contrair matrimônio; a cotas universitárias para negros ou para o direito de moradia de famílias marginalizadas e de baixíssima-renda. Afinal, se o direito perpetua os valores de quem o aplica e quem o faz, é necessário que essas pessoas possuam senso crítico e estejam atualizadas às mudanças e necessidades de toda a sociedade, afim de que o direito não se torne uma simples expressão perpetuadora de valores conservadores e falso-moralistas. 

Mariana Ferreira Figueiredo
1º ano de Direito (diurno)
Sociologia do Direito

Até que ponto o Direito é intocável?

          A ADPF 54 foi requerida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que queria que fosse considerada incompatível com a Constituição a interpretação de que o aborto de fetos anencéfalos constitui crime segundo os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal. Para tanto, foram utilizados argumentos com base racional-técnica de acordo com o avanço da medicina e o preceito da laicidade do Estado brasileiro, para que as decisões jurídicas não fiquem limitadas pela religião e sua moral.
          Segundo Bourdieu, o Direito constitui um campo onde normatiza-se as condutas das pessoas e que conta com relativa autonomia, onde  encontramos valores, códigos linguísticos próprios, hábitos, recursos e capital simbólico. No caso do aborto de anencéfalos, há todos esses elementos integrando a lógica jurídica, desde internos ao campo do Direito, como o formalismo da tomada de decisões, as linguagens e hábitos próprios para o debate e os recursos institucionais como o STF e a ADPF, além de seu próprio capital simbólico. Mas também encontramos elementos externos, como um jogo de valores morais, religiosos e ideológicos, recursos advindos de movimentos sociais e a presença do capital simbólico das instituições religiosas.
          Para Bourdieu, são esses elementos externos que colocam a pauta para a decisão dentro do campo do Direito e, sendo esses elementos advindos de conflitos sociais, ele explica que não podemos considerar o Direito como um campo de autonomia absoluta, como defendia Kelsen, mas sim um campo que é afetado pelas pressões sociais, como podemos perceber no caso analisado, pela conflito entre grupos com ideologias feministas e mais liberais em relação à conduta do aborto e grupos conservadores com moral religiosa que defendem que o aborto de anencéfalos é um crime à vida.
          Percebemos, portanto, de acordo com esse conflito, que o "espaço dos possíveis" do Direito ainda não se encontra tão abrangente para considerar o aborto em geral como uma pauta possível, porém, com o desenvolvimento técnico-científico cada vez mais rápido perante a velocidade das decisões jurídicas e com a participação de movimentos sociais, o aborto de fetos anencéfalos, considerados com probabilidade de quase que absolutamente zero de chance de sobreviverem por mais que minutos, dias ou semanas, caso consigam chegar a nascer, se tornou um tema com alcance às demandas de certos ramos sociais que defendem que seja melhor o aborto neste caso para evitarem problemas de saúde à mãe provenientes da gestação e traumas emocionais, para a família, vindos do resultado provavelmente possível que se pode chegar pela persistência na gestação de fetos anencéfalos. Em outras palavras, temos a moral e a razão como delimitação do "espaço dos possíveis".
          O Direito deve evitar o instrumentalismo, ou seja, a ideia de que o Direito está a serviço de classes dominantes, pois o que justifica que estas classes sejam menos desfavorecidas e seus valores mais valorizados, no âmbito jurídico, provém de ethos compartilhados, por isso, o aborto em sua totalidade não está no "espaço dos possíveis", pois há uma grande presença de valores conservadores presentes no legislativo, que advém da semelhança moral dos deputados e senadores sendo muito deles, provenientes e defensores da moral religiosa. Eis mais um dos motivos que negam a independência do campo jurídico: os indivíduos envolvidos nele são provenientes do campo externo e possuem valores externos a ele.
          Analisando o caso presente, da ADPF 54, fica claro que Bourdieu conseguiu analisar a abrangência e as características do campo jurídico no cenário contemporâneo. O Direito não é independente e autônomo, pois fatores externos, como o social, colocam as pautas dentro de seu debate, pressionando-o. O Direito não é apenas um instrumento dos dominantes, pois nesse caso do aborto de anencéfalos, a ADPF foi considerada procedente, ou seja, venceu a moralidade religiosa de nossos legisladores e da maioria conservadora brasileira. O Direito não possui toda a sua formalidade e imunidade frente ao social, o Direito dita sua lógica e o seu tempo, mas ele não é intocável pelas demandas sociais.
 
Alexandre Roberto do Nascimento Júnior
Sociologia do Direito
1º ano Direito - Diurno

O espaço dos possíveis entre as leis dos homens e o corpo feminino

     The laws of man don't apply when blood gets in a woman's eye – The Black Keys

Um mero verso entoado pela banda The Black Keys na música Ten Cent Pistols contrasta com a realidade vivida pela mulher. Em uma tradução literal, o verso significa que as leis dos homens não se aplicam quando o sangue entra nos olhos de uma mulher. Metaforicamente, o sangue nos olhos das mulheres nada mais é do que toda a opressão vivida diariamente e positivada por leis que não foram elaboradas por elas e para elas. Verifica-se, portanto, que as leis dos homens aplicam-se também quando o sangue entra nos olhos da mulher. Uma sociedade ainda patriarcal, que ao tratar do aborto da gestação anencéfala tratou apenas de uma questão limitada dentro do espaço dos possíveis de Bourdieu, que parece ser restrita à vontade de uma minoria que encontra-se no poder. No entanto, um primeiro passo foi tomado com a ADPF 54, em que foi dada a constitucionalidade quanto a permissão do aborto para fetos anencéfalos. 
Segundo Bourdieu, o direito não deve ser instrumento da classe dominante nem autônomo diante das mudanças sociais. O direito deve apoiar-se sob os moldes da sociedade, adaptando-se a cada mudança e a cada reivindicação social. Isso vai de encontro com a ADPF 54 em que foi aprovado o aborto de feto anencéfalo, decisão esta que mostra uma certa dinamicidade do direito, mesmo sendo mínima e lenta.
A anencefalia apresenta-se no ser humano pela ausência do cerebelo e do cérebro, dessa forma, assim como verificado no documento da ADPF 54, essa má-formação pode causar a morte do feto ainda dentro do útero, sendo que são reduzidas as chances de sobrevivência na vida extra-uterina, mesmo havendo (poucos) casos em que o bebê anencéfalo viva por alguns anos. Além disso, a gestação pode prejudicar tanto a saúde física, quanto a saúde psicológica da mulher, causando um sofrimento que sempre será presente na vida dela. Como a medicina ainda não conseguiu sanar os males provocados pela anencefalia, cabe ao direito intervir e amenizar um sofrimento e oferecer suporte a uma necessidade – da mulher principalmente - que já deveria ser atendida, que é o aborto. A partir dessa constatação, associa-se a defesa de Bourdieu em O Poder Simbólico a um direito que se liga à outras forças externas, ou seja, o direito é como um campo aberto que deve ser influenciado por outros campos. Com isso, Bourdieu inclusive critica a autonomia jurídica que tanto é defendida por Kelsen. Assim, na visão de Bourdieu, o direito vigente em um país deve acompanhar as descobertas e evoluções medicinais, a fim de propiciar melhorias no âmbito jurídico para a sociedade. No entanto, sob a égide da laicidade do Estado, a religiosidade não deve interferir nesse campo, sendo o direito dirigido pelas forças sociais. Além disso, o direito não deve ser instrumento de controle das classes dominantes, pois não deve ser excluída a estrutura simbólica da sociedade, embora que ainda a decisão da ADPF 54 tenha sido feita pela elite intelectual do Brasil. Dessa forma, a luta por conquistas dentro do campo jurídico delimita a esfera de atuação do direito dentro do espaço dos possíveis. Ademais, adentrando-se nesse espaço, a decisão pelo aborto da gestação de feto anencéfalo demonstra um pequeno alargamento dessa área, pois simboliza uma decisão que influencia diretamente na vida social brasileira, especialmente a da mulher.
Desse modo, como muito bem evidenciado por Bourdieu, o direito não pode ser representado por um dever-ser em uma sociedade que é desvinculada de seu campo jurídico, mas o direito deve constituir-se em um fato diante da realidade, sendo um reflexo da sociedade. O corpo da mulher não deve ser uma jaula que nutre um ser que não existirá e que apenas irá feri-la; a anencefalia não deve ser tratada como um fardo, como uma penalidade para a gestante. É preciso muito ainda para expandir esse espaço dos possíveis, para principalmente haver um direito universalizante, em que a opção pelo aborto do feto anencéfalo – e o aborto de modo geral – não precise da ação do STF.

Lara Costa Andrade
1º ano de Direito (Diurno)

A força do Direito na construção do real

         René  Descartes discute que, deve-se fragmentar o todo para melhor conhece-lo, no entanto, esse pensamento contrasta com as ideias de Pierre Bourdieu sobre o sistema jurídico.  Para ele, o Direito está interligado a vários outros campos, assim, não se pode olhar isoladamente para uma problemática jurídica, quando ela está envolvida num contexto socioeconômico, político, psicológico, ou médico, pois mesmo que, metaforicamente, concerte-se essa peça, quebrará em um segundo, pois se ignorou o que está conectado a ela. Talvez, o campo jurídico seja maior que os outros campos, mas é sabido que nenhuma ciência é totalmente isolada, uma influência a outra. Por isso, o autor contrasta com as teorias cartesianas e Kelsenianas.
            Dessa forma, para Bourdieu, o campo Jurídico está totalmente ligado às mudanças da sociedade, assim, entender o campo jurídico significa entender os conflitos internos que o constituem, pois ele é um reflexo direto das relações de força existentes em seu interior. Não obstante isso, muitas vezes, o direito não está adaptado a realidade, ocorre então uma luta simbólica dialética, entre as fontes do direito, doutrina e jurisprudência, e a interpretação feita pelos juízes, que adequam as normas à realidade contemporânea, influenciando a doutrina.
            Vale ainda ressaltar que Bourdieu também argumenta que, embora não generalizando, aqueles que estão no campo jurídico têm afinidades com os detentores do poder temporal (político ou econômico). A proximidade de interesses e a afinidade de hábitos favorecem uma similitude de visões de mundo, o que explica que as escolhas do corpo jurídico tem poucas possibilidades de desfavorecer os dominantes.
            Um exemplo esclarecedor a ser citado é a ADPF 54 de 2012, que tratava sobre a interrupção da gravidez de feto anencéfalo. A interrupção foi considerada válida, pois era iminente o risco de vida da gestante, fator este, considerado como excludente da ilicitude. Dessa forma, o direito apesar de ter certa autonomia, também depende laudos médicos, ou seja, de questões médicas e psicológicas, para dar a decisão final. Assim, inúmeras vezes, como no caso, da definição do que é vida, o campo jurídico, invade o campo da medicina, ou outros.

            Contudo, é visível, que na contemporaneidade, as mentes estão mais “abertas” para o novo, assim, as questões discutidas pelo campo jurídico passam a ser mais complexas. Nessa linha, é preciso que a judicialização continue retirando certas questões polémicas da invisibilidade, para que, de fato, possam ser resolvidas, impulsionando pautas que já seriam possíveis, como o aborto de anencéfalos, que só foi possível pois estava dentro do Espaço dos Possíveis do Campo Jurídico. Assim, o direito mostrar-se-á cada vez mais sistematizado e interligado com outras ciências, contrariando as teses de Descartes e Kelsen.


Heloísa C. Leonel
1º ano de Direito Diurno