sábado, 5 de dezembro de 2015

O Ethos compartilhado (ou não)

As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas. (BOURDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 211).


O Direito é intrinsicamente ligado ao processo histórico de mudanças, uma vez que em cada momento revela-se como um estado de forças diferentes que têm necessidade de se adaptar à realidade, condicionando novas condutas e agindo conforme o chamado “espaço dos possíveis”.
Mas o que seria o “espaço dos possíveis” e de que forma tal espaço está relacionado com a prática e o discurso jurídico? Tal “espaço” tratado por Bourdieu diz respeito ao campo passível de abordagem pelo Direito, ou seja, o campo jurídico influencia e aborda outros campos científicos, que vão desde a economia até a medicina. Tal abordagem ao mesmo tempo que expande o campo jurídico salvaguardando uma relativa independência, também de certa forma o deixa dependente, pois em muitos casos é necessária a intervenção externa de outros campos para que o próprio direito possa agir (por exemplo, a espera por um relatório da perícia para averiguar se o réu estava ou não portando a arma do crime).
Exemplificando tal relação do Direito com o chamado “espaço dos possíveis” e também com o processo histórico de mudanças, pode-se citar a ADPF 54/DF. Nessa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde formalizou um pedido no qual demonstra ser improcedente a criminalização por via de ação penal pública de profissionais da saúde que haviam atuado em processos de antecipação terapêutica do parto – especificamente a interrupção da gravidez de feto anencéfalo – contestando para tal fim, os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, que criminalizam a ação de provocar o aborto em si ou consentir que outrem lhe provoque.
Mas onde está a relação que envolve o Direito? No caso proposto pela ADPF, há a chamada historicização da norma, ou seja, uma questão que anteriormente não seria discutida devido à indisponibilidade de tecnologia para avaliar as condições de vida do feto em questão, em 2004 já poderia ser debatida e adaptada, tanto pelo avanço do campo médico quanto pela transformação da própria receptividade da sociedade, ou seja, embora a fonte seja a mesma (a norma), a hermenêutica muda e possibilidades inéditas de interpretação passam a ser conferidas ao Direito.
Quanto aos sentidos de interpretação da norma, Bourdieu os vincula à dinâmica da “luta simbólica” no campo jurídico, de acordo com posições ocupadas em especial por duas categorias de “intérpretes”. Os chamados “doutrinadores”, que são os encarregados da elaboração puramente teórica e os “operadores”, responsáveis pela atividade prática, associada ao trabalho dos magistrados, que através da jurisprudência realizam atos e também contribuem para a construção jurídica.
O juiz, portanto, opera a historicização da norma, pois ao invés de simplesmente executar a lei, dispõe de certa autonomia para adaptá-la. Logo, o veredicto é o produto dessa “luta simbólica”, vinculado muito mais às atitudes dos agentes do campo que às normas puras. Sua enunciação, no entanto, embora possa significar novas criações, está ainda inscrita no âmbito de determinadas estruturas e produz efeito social, está atrelada também aos interesses sociais dos agentes formalizadores.
Por produzir efeito social e estar atrelado a determinadas estruturas, o texto jurídico apresentado tanto no veredicto, quanto na interpretação normativa, representa além da “luta simbólica” entre “doutrinadores” e “intérpretes”, uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial.
O Ethos compartilhado explica a expressão dos valores dominantes no âmbito jurídico, Bourdieu explica tal fenômeno expondo que a proximidade de interesses está ligada a formações familiares e escolares semelhantes, o que favorece que a visão de mundo dos aplicadores do Direito seja muito próxima. Daí, para o autor, há a pouca probabilidade de desfavorecimento dos dominantes, pois são eles quem majoritariamente aplicam o direito.
A moral existente do nosso tempo, embora possibilite uma discussão sobre aborto de anencéfalos, não permite ir muito além na discussão do aborto, por exemplo, pois a sociedade brasileira, no caso da ADPF 54/DF, ainda possui muita influência da religião, como demonstrado na contraposição do preâmbulo e do texto da Constituição, esse declarando o Brasil como laico.
Além da presença desse ethos compartilhado – o da moral cristã – a ADPF também traz outra questão tratada por Bourdieu, a do efeito simbólico, traduzido na Arguição como a reverência feita pelas pessoas aos ministros, por acharem que os mesmos, por serem aplicadores do Direito e ministros, são mais capazes. Tal efeito simbólico apenas reforça que há sempre uma hierarquia presente, seja no Direito, seja na sociedade, e que a mesma é responsável por atribuir uma espécie de contorno às discussões, afinal, a opinião mais valiosa pertencerá aos que estiverem mais acima na hierarquia, quase remetendo a hierarquia de normas proposta por Kelsen. O direito tem um poder simbólico, logo, mesmo que os movimentos sociais levantem questões, a última palavra é a do direito (como no caso da ADPF).
Tal fenômeno apenas reforça a necessidade da formação de juristas com senso crítico, que doutrinem e apliquem o Direito de forma consonante à Constituição mas ao mesmo tempo resguardando o princípio da dignidade da pessoa humana, seja ele aplicado a uma mulher grávida de feto anencéfalo (o qual não tem condições de vida fora do meio intrauterino) impossibilitada de interromper sua gestação; a uma transsexual à procura de sua cirurgia de mudança de sexo, seguida da mudança de seu nome civil; a homossexuais impossibilitados de contrair matrimônio; a cotas universitárias para negros ou para o direito de moradia de famílias marginalizadas e de baixíssima-renda. Afinal, se o direito perpetua os valores de quem o aplica e quem o faz, é necessário que essas pessoas possuam senso crítico e estejam atualizadas às mudanças e necessidades de toda a sociedade, afim de que o direito não se torne uma simples expressão perpetuadora de valores conservadores e falso-moralistas. 

Mariana Ferreira Figueiredo
1º ano de Direito (diurno)
Sociologia do Direito

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