sábado, 5 de dezembro de 2015

O espaço dos possíveis entre as leis dos homens e o corpo feminino

     The laws of man don't apply when blood gets in a woman's eye – The Black Keys

Um mero verso entoado pela banda The Black Keys na música Ten Cent Pistols contrasta com a realidade vivida pela mulher. Em uma tradução literal, o verso significa que as leis dos homens não se aplicam quando o sangue entra nos olhos de uma mulher. Metaforicamente, o sangue nos olhos das mulheres nada mais é do que toda a opressão vivida diariamente e positivada por leis que não foram elaboradas por elas e para elas. Verifica-se, portanto, que as leis dos homens aplicam-se também quando o sangue entra nos olhos da mulher. Uma sociedade ainda patriarcal, que ao tratar do aborto da gestação anencéfala tratou apenas de uma questão limitada dentro do espaço dos possíveis de Bourdieu, que parece ser restrita à vontade de uma minoria que encontra-se no poder. No entanto, um primeiro passo foi tomado com a ADPF 54, em que foi dada a constitucionalidade quanto a permissão do aborto para fetos anencéfalos. 
Segundo Bourdieu, o direito não deve ser instrumento da classe dominante nem autônomo diante das mudanças sociais. O direito deve apoiar-se sob os moldes da sociedade, adaptando-se a cada mudança e a cada reivindicação social. Isso vai de encontro com a ADPF 54 em que foi aprovado o aborto de feto anencéfalo, decisão esta que mostra uma certa dinamicidade do direito, mesmo sendo mínima e lenta.
A anencefalia apresenta-se no ser humano pela ausência do cerebelo e do cérebro, dessa forma, assim como verificado no documento da ADPF 54, essa má-formação pode causar a morte do feto ainda dentro do útero, sendo que são reduzidas as chances de sobrevivência na vida extra-uterina, mesmo havendo (poucos) casos em que o bebê anencéfalo viva por alguns anos. Além disso, a gestação pode prejudicar tanto a saúde física, quanto a saúde psicológica da mulher, causando um sofrimento que sempre será presente na vida dela. Como a medicina ainda não conseguiu sanar os males provocados pela anencefalia, cabe ao direito intervir e amenizar um sofrimento e oferecer suporte a uma necessidade – da mulher principalmente - que já deveria ser atendida, que é o aborto. A partir dessa constatação, associa-se a defesa de Bourdieu em O Poder Simbólico a um direito que se liga à outras forças externas, ou seja, o direito é como um campo aberto que deve ser influenciado por outros campos. Com isso, Bourdieu inclusive critica a autonomia jurídica que tanto é defendida por Kelsen. Assim, na visão de Bourdieu, o direito vigente em um país deve acompanhar as descobertas e evoluções medicinais, a fim de propiciar melhorias no âmbito jurídico para a sociedade. No entanto, sob a égide da laicidade do Estado, a religiosidade não deve interferir nesse campo, sendo o direito dirigido pelas forças sociais. Além disso, o direito não deve ser instrumento de controle das classes dominantes, pois não deve ser excluída a estrutura simbólica da sociedade, embora que ainda a decisão da ADPF 54 tenha sido feita pela elite intelectual do Brasil. Dessa forma, a luta por conquistas dentro do campo jurídico delimita a esfera de atuação do direito dentro do espaço dos possíveis. Ademais, adentrando-se nesse espaço, a decisão pelo aborto da gestação de feto anencéfalo demonstra um pequeno alargamento dessa área, pois simboliza uma decisão que influencia diretamente na vida social brasileira, especialmente a da mulher.
Desse modo, como muito bem evidenciado por Bourdieu, o direito não pode ser representado por um dever-ser em uma sociedade que é desvinculada de seu campo jurídico, mas o direito deve constituir-se em um fato diante da realidade, sendo um reflexo da sociedade. O corpo da mulher não deve ser uma jaula que nutre um ser que não existirá e que apenas irá feri-la; a anencefalia não deve ser tratada como um fardo, como uma penalidade para a gestante. É preciso muito ainda para expandir esse espaço dos possíveis, para principalmente haver um direito universalizante, em que a opção pelo aborto do feto anencéfalo – e o aborto de modo geral – não precise da ação do STF.

Lara Costa Andrade
1º ano de Direito (Diurno)

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