segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Bourdieu, o aborto de anencéfalos e a esperança no Ethos compartilhado

                 A ADPF analisada trata da interrupção da gravidez quando o feto em questão é anencéfalo, isto é, portador de uma má formação rara do tubo neural, diante da qual a expectativa de vida é baixíssima e muitas vezes resulta na morte do feto antes mesmo do parto ou de sua completa formação. Na legislação brasileira, à época do acórdão, o aborto somente era permitido em casos de estupro ou para proteção da vida da mãe sendo, portanto, a interrupção terapêutica da gravidez, decorrente da impossibilidade de vida extrauterina, considerada também um aborto pelos ministros e pelos órgãos investidos de oficio judicante, apesar de todos reconhecerem os malefícios inquestionáveis à saúde mental da mulher em questão. Tal interpretação era extraída do Código Penal, em artigos específicos, em detrimento da Constituição e toda sua disposição à respeito de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde.
              Felizmente, a relatoria decidiu por inconstitucional a interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada no Código Penal, respaldada em alguns fundamentos tais como a não retirada dessa norma (determinados artigos do CP) do sistema jurídico, nem a afirmação de que ela seja inconstitucional em seu relato abstrato, permanecendo em vigor com a interpretação que lhe venha dar a Corte; a noção de que apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito passivo do crime de aborto, o que não ocorre com os fetos anencéfalos com absoluta certeza médica; e a concepção de que impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que certamente não sobreviverá, causa à gestante dor, angustia e frustação irreparáveis, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a psicológica.
              Contudo, faz-se necessário interpretar e analisar com criticidade esse impasse ocorrido no sistema jurídico brasileiro. Sob a teoria de Bourdieu, por exemplo, verificamos, na peça em questão, a limitação desse debate complexo ao ‘espaço dos possíveis’. Isso significa que, apesar de todo o alcance que o Direito pode ter – como recorrer à sociologia, à filosofia, aos avanços e técnicas médicas e à ciência política, construindo uma decisão consensual que servirá como jurisprudência em todos os outros casos semelhantes, unificando a Justiça independentemente de classe social – ele continua irreparavelmente restrito a um campo limitado, no espaço dos possíveis, no qual a hermenêutica jurídica e a moral não possuem tanta liberdade e amplitude assim.  Assim, tais decisões são sempre condicionadas a um sistema e a uma burocracia, de maneira inflexível: é, afinal, legal o aborto de anencéfalos, entretanto, é compulsoriamente necessário a apresentação de dois laudos médicos comprovando a má formação, bem como era necessário também a autorização judicial prévia ou qualquer outra forma de autorização específica do Estado.
              Além disso, é possível visualizar também a presença e atuação de um campo jurídico definido, em que imperam valores, códigos e habitus específicos, conforme também preconizado por Bourdieu. Isso porque, o Direito deve ser entendido como uma ciência rigorosa, que tem por objeto de estudo a norma, mas que deve evitar tanto o instrumentalismo, isto é, a ideia de que a interpretação do Direito está a serviço somente da classe dominante, como também a ideia errônea do formalismo, que seria o entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais. Afinal, como mostrado na ADPF, a decisão de legalizar o aborto de anencéfalos será acessível a qualquer gestante sob tal condição, passando-se pelos mesmos processos instrumentais, mas também ocorreu nessa decisão uma luta simbólica do campo jurídico formalista entre o código penal e os operadores do direito; assim, o direito é capaz de estabelecer uma decisão importante para a qualidade de vida das mulheres, mas não consegue se desvincular de outros campos como a Medicina – por meio da apresentação dos laudos – e da própria moral cristã, que ainda impera forte, apesar do Estado laico, reprimindo ações de liberdade sexual, mesmo que legais.

              Mais do que isso, por essa decisão também é possível analisar como vive-se em uma sociedade que superestima o conhecimento científico e o exercício da razão: são os ministros do Supremo Tribunal Federal, que supostamente exercem esse cargo devido a uma superioridade de conhecimento escolar cientifico, que são constitucionalmente autorizados a terem responsabilidade sobre acontecimentos importantes da vida cotidiana de toda a população, os quais ela mesma também deveria ter total conhecimento e influência sobre. Por fim, talvez o aspecto mais interessante e produtivo dessa decisão, ao analisá-la sob a ótica de Bourdieu, é verificar a presença enriquecedora de um Ethos compartilhado. No Direito, há um habitus muito próximo entre os juristas e os magistrados, isto é, não há diversificação alguma e, ser mulher dentro desse espaço, portanto, é de uma liberdade e poder decisório restritos, quase inexistentes. Assim, esse processo de Judicialização de questões em pauta na vida social faz emergir discussões pontuais e fundamentais para o entendimento e regulação da sociedade complexa contemporânea, tirando da invisibilidade personagens outrora oprimidos pelo sistema jurídico, como a mulher e seu protagonismo sobre o aborto. Apesar das limitações sobre tal discussão e impedimentos advindos principalmente de um Congresso e uma Sociedade extremamente conservadores, pautados ainda na moral religiosa tão mais forte do que qualquer movimento social feminista, tornar visível e abertamente discutido - mesmo que minimamente - uma questão polêmica como o aborto é um avanço social significativo, que merece a renovação das esperanças no sistema jurídico brasileiro e a continuidade dessa luta. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário