segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Aula 3.1

A estrutura jurídica, longe do extremo formalismo – preconizado por Kelsen – encontra contato, como dito por Bourdieu, na sociedade, representada por conjuntos de morais, valores que se interagem de maneira a influenciar a concepção jurídica de maneira que este – o Direito – não pode, assim, se encontrar livre de qualquer viés social. Portanto, compreende-se que as transformações sociais – somadas às compreensões de mundo e história de uma determinada sociedade – de fato corroboram a um Direito que, por mais que busque uma neutralidade, possuirá vestígios das relações de poderes.

Parte 1: Reflexão sobre “A dominação masculina”

Logo, o caráter patriarcal permeado na humanidade terá seu correspondente no Direito, quando este – de qualquer maneira tentando retirar esses elementos que beiram muitas vezes ao machismo – teve sua evolução baseada em tais conceitos. De fato,
a dominação masculina está de tal maneira ancorada em nosso inconsciente que não a percebemos mais, de tal maneira afinada com nossas expectativas que dificilmente conseguimos repô-la em questão. A descrição etnográfica da sociedade cabila, verdadeira depositária do inconsciente mediterrâneo, oferece um instrumento realmente valioso para dissolver as evidências e explorar as estruturas simbólicas deste inconsciente androcêntrico, que sobrevive nos homens e mulheres de hoje.[1]
Bourdieu trabalha a forma como os meios sociais e culturais reproduzem uma realidade, embasada pelos seus princípios (“Quais os mecanismos e instituições – Família, Igreja, Escola ou Estado –, que realizam o trabalho de reprodução? É possível neutralizá-los para liberar as forças de transformação que eles estão conseguindo entravar?”[2]), os quais, como dito, são ramificações de uma evolução histórica. Os “mecanismos e instituições”, de maneira voluntária ou involuntária – por isso, quase imperceptível quando não se coloca em uma postura crítica – padronizam um comportamento, naturalizando-o e compondo um sistema reprodutor de ideologias, valores, etc. (por vezes da “classe” dominante/ mais influente); o que, atualmente, apesar de existirem aqueles cuja atuação é mais clara e temos conhecimento de sua “política”, existem outros – como a Escola – que, ao contrário do que se espera (produtora de alunos e futuros cidadãos de posicionamento crítico), atuam, na maioria, da mesma maneira que os outros sistemas – de modo que, por possuir esse filtro que esconde sua realidade, esta influência no pensamento humano pode ser colocada como “às escuras”.
A composição ideológica aplicada por estes meios reflete a presente – talvez mais influente – em nossa sociedade, de claro caráter androcêntrico e patriarcal, o que implica na crença em um papel “secundário” feminino. Como adverte Bourdieu, alguns mecanismos que perpetuam esse comportamento perderam força “e a dominação masculina tenha perdido algo de sua evidência imediata”[3], porém, mesmo com ligeiros avanços, “alguns dos mecanismos que fundamentam essa dominação continuam a funcionar, como a relação de causalidade circular que se estabelece entre as estruturas objetivas do espaço social e as disposições que elas produzem, tanto nos homens quanto nas mulheres.”[4] Estes, como tentativa de fundamentação revelam um sistema evidentemente preconceituoso.
As injunções continuadas, silenciosas e invisíveis, que o mundo sexualmente hierarquizado no qual elas são lançadas lhes dirige, preparam as mulheres, ao menos tanto quanto os explícitos apelos à ordem, a aceitar como evidentes, naturais e inquestionáveis prescrições e proscrições arbitrárias que, inscritas na ordem das coisas, imprimem-se insensivelmente na ordem dos corpos.[5]
Parte 2: Os símbolos
Sobre as aceitações, destaca-se – no caso proposto – a invasão masculina na decisão acerca o aborto de anencéfalos, parte específica de um assunto muito mais amplo: abortos. Trata-se de uma questão envolvendo em primeira instância: o feto e a mulher. Era de se esperar que a decisão fosse feita dentro desse círculo, ou seja, partindo da mulher; mas, como segunda instância, surgem outros atores que não deveriam se relacionar ao peso desta escolha. Surgem portanto, a força dos símbolos e das instituições que os carregam.
Como poder simbólico, compreende-se como aquele “poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)”[6]. É, pois, devido ao caráter estruturante que lhe é intrínseco – por ser ele próprio estruturado –, “uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências.”[7]
O elemento universalizante dos instrumentos simbólicos são claros quando se analisa conjuntamente a estes, a ideologia. Estas servem interesses particulares visando homogeneizar – universalizar – os interesses.
“A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante [...]; para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções.”[8]
Tem-se, pois, que o caráter simbólico de uma dominação objetiva tanto legitimar esta dominação quanto fortificação de quem domina – pela integração da classe dominante. O campo simbólico é um meio de lutas e tentativas de imposição de um “modo de ver o mundo” – símbolos – de cada classe.  Assim, os instrumentos simbólicos, como instrumentos de dominação, relacionam-se ao poder, às ideologias e à “classe” dominante.
Sobre a dominação masculina, um “fator determinante na perpetuação das diferenças é a permanência que a economia dos bens simbólicos (do qual o casamento é uma peça central) deve à sua autonomia relativa, que permite à dominação masculina nela perpetuar-se.”[9] Tal dominação, apoiada por sistemas diversos, estrutura um sistema simbólico, que – como já explicado – visa construir e manter uma organização baseada em uma legitimidade de violência simbólica. A família, como peça dessa organização de dominação e tida como “guardiã do capital simbólico”[10], recebe tanto apoio da Igreja quanto do Direito.
Retomando: o Direito – assim como outras instituições – tem, como elementos estruturadores, certas pulsões de instrumento simbólico; no entanto, o avanço das conquistas sociais – as lutas no campo simbólico – retiraram de sua substância parte de seu caráter androcêntrico; retirar este caráter significa desconstruir os valores e ideais – símbolos – do Direito.
O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar [...] um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social.[11]
O Direito, pelo aspecto ordenador – e principalmente pela rigidez normativa que este se aplica, muitas vezes em face às transformações – carrega consigo uma visão – leitura – de sociedade que dificilmente se altera; portanto, as tensões do mundo social forçam ao máximo transformações no mundo normativo, visto que “no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial”[12]. Porém, mesmo contra certos textos normativos, o intérprete encontra-se diante de um sistema duramente hierarquizado, em que “a Justiça organiza [...] não só as instâncias judiciais e os seus poderes [...] mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade e essas decisões.”[13]. Fica evidente portanto que a construção do Direito baseada nos símbolos – em sua estruturação simbólica – influencia na maneira de como este constrói um sistema normativo – estrutura as normas e a perspectiva de sociedade – de modo que esta instituição se fecha diante à mudanças. Estas sendo possíveis sempre dentro de um potencial, colocado normalmente entre a Razão e a Moral.
Parte 3: A decisão
A ADPF 54/DF demonstra o embate existente entre a Razão e a Moral existente no plano jurídico quando relaciona o caso de extrema complicação e risco à mulher com o ato do aborto – e as significações que este carrega, pelos símbolos que lhe são atribuídos pela Igreja, pela família e pelo Estado.
Ao sustentar a descriminalização da prática, o ministro e relator Marco Aurélio de Mello afirmou: “A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”. Para ele, “é inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição”[14]
Apesar da aprovação, alguns votos contra se destacaram, como são os casos de:
Ricardo Lewandowski votou contra a permissão do aborto, considerando que esse poderia ser um precedente para a liberação da interrupção de gestações em outros tipos de más-formações fetais. A sessão foi então encerrada com o segundo voto negativo, do presidente do STF, Cezar Peluzo, que considerou a descriminalização do aborto de anencéfalos um “massacre”.[15]
Por fim, “com a nova decisão, a anencefalia passa a ser equiparada à morte encefálica e, portanto, permitida na legislação brasileira, que considera atualmente o aborto como crime punível, exceto em condições de risco de vida materna ou decorrente de estupro.”[16] Direitos às mulheres foram garantidos com a nova decisão e, apesar de invisíveis, grandes alterações podem ser deduzidas no campo simbólico, quando se prevalece a integridade da mulher em detrimento da visão maternal que lhe é atribuída – em conjunto com outros diversos papéis e símbolos.

Roan Dias - 1º ano Direito diurno

 
Bibliografia: 

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 ed. 2
_____________ O poder simbólico. Rio de Janeira: Bertrand Brasil, 2004 ed. 7
OLIVEIRA, Flávia Ribeiro de; CAMARGOS, Aroldo Fernando. Descriminalização do aborto de anencéfalos: a conquista de um direito e o início de vários dilemas éticos Disponível em: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2012/v40n3/a3215.pdf; Acesso em 05/12/2015 as 17:52

[1] Comentário de Maria Helena Kühner sobre a obra A dominação masculina, presente na contracapa.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 ed. 2
[2] Idem
[3] BOURDIEU, Pierre. Op. cit p. 71
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeira: Bertrand Brasil, 2004 ed. 7 p. 9
[7] Ibidem
[8] BOURDIEU, Pierre. O Poder...  p. 10
[9] BOURDIEU, Pierre. A dominação... p. 115
[10] Ibidem
[11] BOURDIEU, Pierre. O Poder... p. 212
[12] BOURDIEU, Pierre. O Poder... p 213
[13] Idem, p. 214
[14] OLIVEIRA, Flávia Ribeiro de; CAMARGOS, Aroldo Fernando. Descriminalização do aborto de anencéfalos: a conquista de um direito e o início de vários dilemas éticos p. 1
[15] Ibidem
[16] Ibidem

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