domingo, 23 de março de 2014

Descartes e o Ser Perfeito

      
      O surgimento de dúvidas em relação ao mundo que nos cerca é inerente à condição humana. Desde o início dos tempos, incontáveis pensadores se ocuparam em tentar achar respostas para os mais variados questionamentos, implicando em uma profunda transformação do pensar e da racionalidade dos homens ao longo da história.
      Dentre toda essa gama de perguntas, talvez a que mais tenha despertado o interesse e a angústia da humanidade seja a possível existência de um ser superior, aquele responsável pelo surgimento de todos os outros, denominado Deus. Milhares de anos de filosofia, debates e estudos não foram suficientes para que se chegasse a uma conclusão aceita, porém foram essenciais para o surgimento de argumentos fantásticos, tanto em defesa como em crítica à essa possível existência superior.
      René Descartes, filósofo francês do século XVII, possui uma interessante análise sobre essa questão. Em alguns capítulos do seu livro ‘’ O Discurso do Método’’, o pensador inova ao tentar usar a razão para chegar à certeza da existência do ser divino. De acordo com seu raciocínio, Descartes nota que apesar de não ser perfeito possui uma ideia do que seria a perfeição.  Dessa forma, a simples noção do que seria perfeito é suficiente para fazê-lo acreditar que esse ser superior deva existir, afinal, como poderia ele ter a ideia de perfeição se é um ser imperfeito? Poderia suas qualidades e imperfeições terem surgido espontaneamente?  Poderia o menos perfeito ser a causa do mais perfeito?  Pois, se assim o fosse, poderia também surgir em si todas as qualidades que lhe faltam, tornando-o o próprio ser Deus.
      Apesar de a simplicidade desses argumentos os tornarem de certa forma brilhantes, há alguns pontos que podem gerar contradições dentro do próprio pensamento cartesiano.  Um deles, em minha opinião, é a noção dada por Descartes sobre a existência do Gênio Maligno. Para o filósofo, esse suposto gênio seria o responsável por nos fornecer falsas certezas, até mesmo as mais evidentes, nos levando a fugir do caminho da verdade e a criarmos uma realidade não comprovada. Como Descartes pode então ter a certeza da existência do ser perfeito e que não se trata de simples ilusão causada por seu Gênio Maligno? Talvez não fosse mais coerente com seu pensamento acreditar na possibilidade da existência de Deus, e não na certeza de tal?
      Retomando o argumento inicial de Descartes sobre Deus, quando diz que apenas noção da perfeição é garantia da existência de um ser que a possua, não estaria o filósofo ignorando suas principais convicções em relação a duvidar de tudo o que parece óbvio? Por que necessariamente a ideia de perfeição deve levar a conclusão da existência do ser perfeito? De fato, posso ter a ideia de uma pessoa totalmente bondosa, afinal conheço o conceito de bondade (ou talvez penso conhecer), porém nada me garante que tal pessoa exista. Penso que a existência de Deus possa ser tão incerta como a existência do ser humano bondoso em sua totalidade.
      Tal assunto é capaz de gerar incontáveis parágrafos e dissertações com as mais variadas opiniões, porém, é claro, não podemos ignorar a relevância histórica do pensamento cartesiano, tão importante no rompimento de dogmas e na inovação do modo de raciocinar do homem moderno. E quanto ao ser perfeito, talvez um dia cheguemos a uma solução.


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