domingo, 23 de março de 2014

Entre o racional e o sensível


Acordou três vezes aquela noite. Não sabia se estivera sonhando ou não, pois o real e o imaginário se confundiam em sua mente e dificultavam a ordenação de suas ideias. Pensava na filosofia, na matemática, na poesia e na teologia e pedia a Deus que afastasse do seu sono tais perturbações, ao mesmo tempo em que sua alma as alimentava.
Ele buscava em seus devaneios a Verdade indubitável, imutável, perpétua. Uma verdade filosófica que nada se assemelhava àquelas que serviam como vaidade aos filósofos, ou àquelas sem aplicação prática como a matemática. Uma Verdade metafísica, que pudesse explicar e sanar os erros e as contradições nas ciências e se adequar à realidade humana, despida dos exageros e extremismos do espírito. A Verdade que possibilitaria a elevação e o progresso do conhecimento real.
Fechado em quatro paredes, deitado na sua cama durante a madrugada silenciosa, distante da imposição ideológica e moral daquela Igreja corrompida e autoritária, daquela sociedade ignorante e obediente e mesmo dos autores ultrapassados nos quais durante anos se apoiara para formar seu caráter, era fácil criticar o conhecimento pré-concebido que acreditava estar vivendo. Secretamente, ele duvidada de tudo, questionava o que lhe fora ensinado pela sua era, pelas antigas cabeças. Afinal, havia estudado as letras, seus olhos percorreram as páginas dos mais célebres livros e, no fim, encontrara somente a própria ignorância.
Fazer parte da classe dos eruditos já não era suficiente ao jovem. Ele buscava autonomia, a libertação disso que sufocava seu corpo e sua alma. Já sonolento, pensava em uma revolução. Iniciaria com uma revolução teórica. A razão deveria ser superior, autônoma! Mas não podia publicar tal heresia... Quem sabe se o explicasse em francês, de forma acessível ao povo? Quem sabe se esclarecesse que Deus persistiria e ainda reinaria nessa nova realidade?

Seus olhos já ameaçavam se fechar novamente, mas sua mente resistia. Precisava dese método para que ele próprio e também seus leitores pudessem seguir contentes e sem desvios no caminho para um conhecimento verdadeiro e ascendente, no caminho para a liberdade. Neste ponto, ele mesmo já não entendia os próprios pensamentos, começou a duvidar da razão e, por fim, da própria existência. Perdido em um estado entre sonho e loucura, lhe ocorreu que o pensar em si, o fato de raciocinar justificava o ser. Anotou a epifania num bloquinho que guardava no criado-mudo e adormeceu se questionando como poderia discursar sobre o método e a correta condução da razão na busca da verdade dentro das ciências. Talvez esse seja o título do seu próximo trabalho...

Sofia Andrade - Noturno

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