segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Imparcialidade ou Conformismo

A modernidade se gaba por deixar de lado as explicações místicas e divinas para encontrar a verdade científica e racional de quaisquer fenômenos naturais existentes. Nas ciências humanas, podemos analisar a racionalização da cultura, o desenvolvimento do antropocentrismo e a valorização do poder de auto-determinação, no sentido de que o homem é capaz de decidir seu próprio destino. Mas e nas ciências sociais, especificamente? Podemos dizer que o Direito se racionalizou? Abandonaram-se as paixões humanas que o dirigiam e hoje se aplica uma lei cada vez mais em prol simplesmente do bom funcionamento da sociedade? Uso este termo “funcionamento” por ser esta a visão de Émile Durkheim. A sociedade é uma máquina, um organismo em ação que necessita que todas as partes trabalhem por um mesmo fim, levando o conjunto ao desenvolvimento, o bem maior.


Durkheim diz que sim, afinal, cada vez mais o direito deixa sua subjetividade ao hierarquizar crimes, especificando-os e classificando em categorias sempre menores. A subtração de um bem alheio, por exemplo, poderá ser um furto, um assalto, um latrocínio. A pena não varia apenas de acordo com o objeto subtraído, mas pela forma como foi subtraído. Deixa-se de lado, no campo jurídico, o desejo de vingança, movido pelo calor do momento em que acontece a ofensa contra um indivíduo. O Direito deve, de forma neutra, punir o indivíduo que praticou um delito contra outro, ou contra a coletividade, não pela comoção que o ato gerou, mas pelo ato em si.


O motivo dessa especificação é simples. Durkheim explica que a sociedade moderna (atualmente, pós-moderna) criou uma gama gigantesca de possibilidades e diversificou as atividades humanas. Considerando que a função do Direito é regular a vida em sociedade, ele deve abranger todas as ações que o indivíduo vier a realizar. Novas possibilidades exigem novas leis. Diversificação exige regulamentação. Logo, foi a modernidade que demandou uma evolução do Direito. Podemos citar em nossos dias os crimes cibernéticos, os quais não possuem uma devida regulamentação e requisitaram do Estado uma mobilização ágil para saná-los.


Contudo, a simples especificação do Direito não justificaria uma racionalização trazida pela modernidade. Se lembrarmos que na história do desenvolvimento jurídico essa sempre foi a real intenção dos legisladores e jurista, de maneira geral. Não se trata de uma racionalização da ciência do Direito, mas uma evolução. Creio que Durkheim comete um equívoco ao afirmar que o Direito sofreu uma mudança radical de valores. Na cultura grega, o Direito era muito mais debatido do que nos dias de hoje. Com os romanos, onde o Direito mais se expandiu e se especializou, de acordo com Georg Jellinek, temos a criação de um Direito totalmente utilitarista pelos pretores. Na própria idade média, com os glosadores, nota-se um apego a letra fria, alienado da vida social. O Direito sempre buscou libertar-se de paixões, admitindo para si apenas valores mínimos aceitáveis, capazes de estabelecer a ordem e manter a unidade social.


O que realmente se racionalizou foi o consciente coletivo. A modernidade trouxe uma individualização muito forte. As relações interpessoais se tornam aos poucos cada vez mais impessoais. Na mesma proporção que os indivíduos se interconectam, eles o fazem de forma mais superficial. Se eu não possuo mais tanta afeição ao meu igual, quando este for prejudicado, meu desejo de vingança não será tão forte. Nos transformamos em seres neutros, e quando algo acontece, agimos de forma mais e mais imparcial. Não é o Direito que abandonou as paixões, mas as paixões que estão desaparecendo. O Direito possui valores, sempre possuiu, e só com eles poderá manter a ordem e a coesão social. Diferentemente das paixões, que guiam instintos de vingança e fúria, naturais ao ser humano comum. Quando o Direito é imparcial, cumpre sua função. Quando a sociedade se torna indiferente, o conjunto perde a consistência. Dessa forma, o que aconteceu é algo muito mais perigoso para o bem social. Mas entraríamos em uma nova discussão que não convém neste momento, em que nosso objetivo é debater o Direito.


A Justiça sempre foi cega, com uma balança em suas mãos. Nada mais neutro do que avaliar uma vida como se fosse um objeto, pesando-o. Mesmo com essa busca incessante, a imparcialidade total sempre existirá somente no campo das idéias. Jamais a alcançaremos de forma plena. Todavia, nos aproximamos diariamente do ideal, por evolução da própria ciência. O Direito se especializou, especificou-se, como é natural a toda ciência. Não vejo grandes mudanças por causa da modernidade. A sociedade é uma massa amorfa que se desenvolve e caminha a um fim desconhecido. O Direito criado procura sustentar essa massa e impedir que ela caminhe além do que é capaz de suportar e se destrua.

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