segunda-feira, 3 de abril de 2023

O TEMPLO DA HUMANIDADE

 

Em 11 de maio de 1881, era fundada no Rio de Janeiro a Igreja Positivista do Brasil. Seu objetivo, disseminar as “boas novas”, o evangelho, de uma nova era que se aproximava velozmente sobre os trilhos de ferro e na fumaça expelida pelas locomotivas a vapor.

Seus membros não se congregavam para adorar uma entidade pertencente a um plano superior. Para eles, essa atitude seria minimamente antiquada para um mundo que acabara de passar pelo Século das Luzes. Vinham cultuar a Humanidade emancipada, a Humanidade da Razão e seus maravilhosos feitos.  

Não é de se admirar, portanto, que esse templo veio a ser erigido no coração do império, um símbolo de valores pretéritos que resistiam aos novos tempos. Na doutrina positivista, já não havia mais espaço para “reis sóis” ou “bispos de Roma”, assim como para direitos divinos e interpretações transcendentais da sociedade. Um novo catecismo, outro credo é instituído – “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”.

Assim, enquanto os cientistas ocupariam o lugar dos sacerdotes dando a moral e a explicação para o mundo, os industriais suplantariam o papel dos militares, uma vez que entenderiam que a paz é muito mais lucrativa do que a guerra. Paz e segurança para os negócios, como diria Hobbes.

Logo, possuindo tanto o domínio sobre a natureza quanto a paz, a humanidade teria o tempo e os meios materiais necessários para se dedicar a promover um progresso contínuo com vias ao aperfeiçoamento do gênero humano por meio da Ciência. Com efeito, era mui excelente este “evangelho neoiluminista”, salvo um detalhe doutrinário: o Paraíso.

O Paraíso de Comte, fundador dessa nova religião, possuía nome e período histórico demarcado, isto é, a Europa industrial do século XIX. A Humanidade emancipada é precisamente a “humanidade europeia”, e os maravilhosos feitos dela são na verdade os grandes feitos do homem branco. Dessa forma, a Razão é, pois, rigorosamente, a racionalidade eurocêntrica.

Em certo sentido, o positivismo é a manifestação teorética de um espírito de época que concedeu ao homem, ou melhor, ao homem branco, a centralidade no mundo. Destarte, a civilização é europeia.

Por mais que a Religião da Humanidade não tenha vingado, sua mensagem prosperou por longos anos e ainda é perceptível atualmente. Lamentavelmente, a história testemunhou e testemunha os terríveis efeitos dessas ideias sobre muitos povos e grupos. Pois, se por um lado o positivismo não representou a emancipação e valoração senão da ordem eurocêntrica, por outro, ele legitimou a sujeição de muitos que não correspondiam a ela.

Ordem e progresso. Ordem de quem? Sobre quem? A ordem eurocêntrica que se impõe, do centro do mundo, sobre aqueles que ela mesmo marginalizou.

E essa segregação que reparte continentes e entes de uma mesma sociedade é ainda mais violenta por pretender-se racional e científica, mascarando seu viés ideológico e, desse modo, cristalizando a ignorância, a desigualdade e a intolerância em uma sociedade que se entende acima desses males; males dos velhos tempos de escuridão da humanidade. O Paraíso e o Inferno são um, afinal.  

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