segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

 

O HC 154.248/DF sob uma ótica sociológica

 

 

O partido Cidadania, ajuizou a Ação direta de Inconstitucionalidade  (ADI 6987), em função do artigo 140, §3º, do Código Penal com o objetivo de tipificar a “injuria racial” como racismo de acordo com a jurisprudência (STJ), ou seja, para atribuição de interpretação constitucional do crime “ofender individuo em sua honra subjetiva por elemento racial” seja considerado como racismo, portanto enquadrada no artigo 20 da Lei ° 7.716/89 e de acordo com a Constituição federal “imprescritível e inafiançável (art. 5º, XLII, da CF/88). A ADI 6987 foi proposta diante do entendimento nesse sentido,  obtido  pelo STF com  julgamento do  HC 154.248/DF.

Desse modo,  de acordo com Pierre Bourdieu, “(...) no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial” (p. 213), Esse fenômeno é denominado por Boudieu, como “espaço dos possíveis” no qual demonstra que a interpretação jurídica possibilita que os juízes concebam o melhor entendimento para atender as demandas requeridas por grupos por hora injustiçados. Assim, o entendimento de equiparar a injuria racial ao crime de racismo, fundamentado pela Constituição Federal e à lei Lei ° 7.716/89  (Lei que Define os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor), não está dentro do rol de impossibilidades, já que injuria racial nada mais é que um uma forma de pratica racista direta.

Dentro do que Bourdieu chama de chama de “Universalização da Norma”, que é “recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas” (p. 215), o Ministro Edson Fachin ao declarar seu voto no HC 154.248/DF conclui seu raciocínio com a afirmação:

 

(...) na esteira de aproximar os tipos penais de racismo e injúria, inclusive no que se refere ao prazo para o exercício da pretensão punitiva estatal, aprovou a Lei no 12.033/09, que alterou a redação do parágrafo único do art. 145 do Código Penal, para tornar pública condicionada, antes privada, a ação penal para o processar e julgar os crimes de injúria racial. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Edson Fachin, p. 15)

Ou seja, o juiz fundamenta seu entendimento com base nas próprias normas, de forma impessoal e mantendo-se isento de paixões, o que Bourdieu também chama de Neutralização da Norma (p. 215).

Dado o momento em que o HC 154.248/DF, 2021 foi julgado, 133 anos após a abolição da escravidão (1888),ainda temos em nossa sociedade um racismo estrutural, no qual as pessoas negras ainda não foram inseridas de forma equitativa em nossa sociedade, principalmente quando se fala sob o ponto de vista socioeconômico. Como diz bem o Ministro Edson Fachin em seu voto no HC 154.248/DF, (2021):

 

Esse sistema é, sem dúvida, uma das marcas deixadas no país pela escravidão. Após a abolição da escravatura, a ascensão do negro à condição de trabalhador livre não foi capaz de alterar as práticas sociais discriminatórias e os rótulos depreciativos da cor de pele (muito embora, do ponto de vista biológico, não existam raças humanas). A falta de qualquer política de integração do ex-escravo na sociedade brasileira, como a concessão de terras, empregos e educação, garantiu que os negros continuassem a desempenhar as mesmas funções subalternas.  Assim, no Brasil, criou-se um aparato apto à manutenção da exclusão e da marginalização sem que fossem instituídas leis discriminatórias propriamente ditas. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Edson Fachin, p. 4).

            Dado isso, o equiparar a injuria racial ao crime de racismo, o STF estará realizando o que Bourdieu conceitua de “Historização da Norma” como ele bem descreve: “adaptando as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidade inéditas (...)”. (p. 223). Pois, passados mais de um século da abolição da escravidão, ainda existe a segregação velada entre negros e brancos, consubstanciada pelo racismo estrutural, portanto faz – se necessário que ordenamento jurídico preveja punição à todos que ainda manifestem reações racistas, incluindo a injuria racial.

            Desse modo, o que pode ser interpretado de ativismo judicial, busca-se apenas uma solução jurídica, com a equiparação da injuria racial ao crime de racismo com a viabilização do próprio direito em prol de um grupo historicamente não incluído de maneira igualitária (social, economicamente e politicamente) em nossa sociedade. Como esclarece Luiz Roberto Barroso: “Ao aplicarem a Constituição e as leis, estão concretizando decisões que foram tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, isto é, pelos representantes do povo”. (p. 11).

            Assim sendo, os sujeitos tutelados representam mais de 50 % da  população brasileira (entre negros e pardos segundo IBGE, 2020), não se tratando por isso, de paternalismo judicial, na verdade trata-se de uma interpretação jurídica para combater o racismo estrutural que existe no Brasil e é papel do STF, como guardião da constituição dar sua palavra sobre o tema, conforme Luiz Roberto Barroso declara:

“(...) o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um fórum de princípios – não de política – e de razão pública – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas”. (p. 12).

À vista disso, “O juiz deve colocar-se no lugar da autoridade faltosa para autorizar uma intervenção nos assuntos particulares de um cidadão.” (GARAPON, p. 150). Desse modo, ocorre o que Antoine Garapon caracteriza de “Magistratura do Sujeito”, na qual o juiz é requisitado para dar uma solução dentro do ordenamento jurídico dentro de uma falta de clareza explicita no mesmo. O que de certa forma, pode ser caracterizado como uma “antecipação” como esclarece Garapon “O direito do juiz não pode ser outro senão um direito para o amanhã.” (p. 146), pois se faz necessário conscientizar a sociedade que a injuria racial é um crime e ao ser equiparada ao racismo como “imprescritível e inafiançável “(art. 5º, XLII, da CF/88), o que na falta de uma iniciativa do congresso, o STF pode antecipar a norma através da interpretação jurídica.

O que  se observa com essa decisão histórica de jurisprudência no HC 154.248/DF (2021) é um fortalecimento do estado democrático de direito. Tendo em vista que a Constituição Federal não faz distinção em cidadãos de segunda categoria, como estruturalmente ocorre no Brasil com relação às pessoas negras. E a injuria racial é uma prática racista na qual ofende a dignidade da pessoa ao mesmo tempo que à inferioriza perante o ofensor, como o Ministro Edson Fachin disserta em seu voto no referido HC:

 

A injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra o grupo ao qual pertence. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Edson Fachin p. 13).

 

            O que acontece de fato, é o que Michael McCANN caracteriza como: “(...) mobilização do direito se refere às ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores.”. (McCANN, 2010), p. 182). Nessa perspectiva, o indivíduo sozinho, partidos políticos e os movimentos sociais, como no caso o movimento negro e LGBTQI+, podem ser os mobilizadores do direito em busca de reparação e equidade de tratamento.

            Sendo assim, ao equiparar a injuria racial ao crime de racismo, o STF, com essa decisão também poderá acender um alerta aos outros poderes, os agentes do estado e da sociedade como um todo sobre o racismo estrutural que existe no país e que deve ser combatido.  Essa mudança de acordo com MacCANN ocorre no nível estratégico e: “procura analisar como as ações judiciais configuram o contexto estratégico dos outros atores do Estado e da sociedade” (MacCANN, 2010, p. 184).

            Na mesma linha, essa decisão, de acordo com MaCANN (2010,p.188) permite a  promoção mudanças no “nível constitutivo” nas quais conjugam diretrizes que a sociedade deve entender e acolher, como pode se observar no excerto “...a interpretação constitucional dos tribunais afirma visões de uma boa e legítima sociedade, visões que outros são encorajados a aceitar” (p. 189).

            Não obstante, tem-se, não menos importante, o aspecto em que Sara Araújo (2016, p. 96-97) chama de “monocultura do saber e do rigor do saber”: “transforma a ciência moderna e da alta cultura em princípios únicos de verdade e qualidade estética”. Ou seja, parte-se de uma dogmática única, não abrindo espaço para outras leituras do conhecimento. Nessa lógica, temos o voto do Ministro Nunes Marques que proferiu “(...) pedindo vênia ao eminente Relator, entendo que a hipótese de imprescritibilidade da injúria racial só pode ser implementada pelo Poder constitucionalmente competente, o Legislativo.” Por outro lado, Sara Araújo (2016, p.110) fala também sobre o conceito de “Ecologia dos Saberes” onde se confronta a ideia dogmática do direito liberal, apresentando uma forma de entender o direito de acordo com concepções pluralistas. Essa ideia de Ecologia dos Saberes é vista no voto do Ministro Luiz Fux no HC 154.248/DF (2021):

 

O avanço no combate ao racismo, contudo, passou a ser contornado em razão do prazo ínfimo de prescrição do delito de injúria racial, inviabilizando tempo hábil para uma justa prestação jurisdicional e para a efetiva punição dos delitos de ódio tipificados em nosso ordenamento.

Mais do que isso, a própria concepção do que seja racismo vem passando por mutações, entendendo-se que se trata de um conceito com dimensão social, e não meramente biológica, mesmo porque inexistem raças na espécie humana. Assim se encaminhou a nossa jurisprudência, no julgamento de causas que envolveram antissemitismo e homofobia, de modo a conferir proteção permanente a todos os grupos vulneráveis – grupos que foram vulnerabilizados, ao longo da história, pelos poderes políticos e por maiorias eleitorais. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Luiz Fux, p. 2-3).

 

Por fim, outra análise que pode ser feita desse julgado é que a acusada procurou diminuir a vítima, pelo fato dela ser negra, como pode ser constatado na descrição dos fatos contidas no

 

No momento de efetuar o pagamento por meio de cartão de crédito, a acusada, voluntária e conscientemente, demonstrando nítida intenção de injuriar, referiu-se à vítima com as expressões preconceituosas ‘” negrinha nojenta, ignorante e atrevida’ (...)”. (HC 154.248/DF, 2021, voto: Ministro Alexandre de Morais, p. 1).

 

            Essa forma de anulação e descaracterização da pessoa negra pela cultura branca hegemônica são citadas por MBEMBE no capítulo I do seu livro “Crítica da Razão Negra” (2014, p. 25-74) como ausência, efabulação, alterocídio, desumanização, etc.

            Dado o exposto, uma visão sociológica do direito é importante para melhor compreensão dos fenômenos sociais da sociedade brasileira. Já que, é o mesmo direito que pronuncia as normas de conduta e pode ser usado tanto para equiparação social quanto para o contrário. No caso da jurisprudência firmada com o HC 154.248/DF (2021), espera-se que ocorram mudanças tanto no nível estratégico quando no nível constitutivo da sociedade, afinal injuria racial não deixa de ser um crime que realça o ódio, tanto quanto o racismo, portanto não devem ser entendidos de maneira distinta. Assim, espera-se que a ADI 6987, prospere.

Por: Joel Martins S. Junior

Aluno do 1º ano de Direito (Noturno) – UNESP/Franca – SP.

 

 

 Referências:

 

ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.o 43, set/dez 2016, p. 88-115.

 

BARROSO, Luiz Roberto. “Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática”. Revista Atualidades Jurídicas, n. 4, jan/fev-2009, Brasília: OAB Editora.

BOURDIEU, Pierre. “A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico”. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989 [Cap. VIII, , p. 209-254].

 

BRASIL. STF. HABEAS CORPUS 154.248 – DF. Pcte: Luiza Maria da Silva. Impte.: José Gomes de Matos Filho e Outros. Relator Ministro Edson Fachin. 18 de outubro de 2021. O Tribunal, por maioria, denegou a ordem, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Nunes Marques, que concedia a ordem para reconhecer a extinção da punibilidade da paciente (...). 118p.

 

GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia: O Guardião das Promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999. [Cap. VI – A magistratura do sujeito, p. 139-153]

 

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. [Cap. 1: “A questão da raça”, p. 25-74]

McCANN, Michael. “Poder Judiciário e mobilização do direito: uma perspectiva dos “usuários” In: Anais do Seminário Nacional sobre Justiça Constitucional. Seção Especial da Revista Escola da Magistratura Regional Federal da 2a. Região/Emarf, (2010) p. 175-196.

 

 

 

 


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