sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

ADI 6987 e a mobilização do direito.

    No atual direito brasileiro, observa-se certa controvérsia jurídica acerca do crime de injúria racial e sua diferenciação com o racismo. Mencionado no § 3º do artigo 140 do Código Penal, o crime de injúria racial nada mais é do que uma forma qualificada para o crime de injúria. De acordo com tal dispositivo, injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, utilizando elementos como raça, cor e etnia (dentre outros), implica na pena aumentada de reclusão de um a três anos e multa.  A distinção entre os dois crimes acontecia substancialmente á quem o delinquente racista estaria ofendendo, enquanto entendia-se que o crime de racismo tinha como objetivo discriminar toda a população preta, o delito de injúria racial possuía propósito de desonrar especificamente a vítima atingida. Especificamente sobre o crime de racismo, se observarmos o artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal de 1988, notamos que a prática do racismo, além de inafiançável, é crime imprescritível. Dessa maneira, até então, no que se referia à distinção entre o crime de injúria racial e o crime de racismo, prevalecia o entendimento de que a imprescritibilidade estabelecida pela Constituição Federal apenas atingia o segundo.
    Em agosto de 2021, foi ajuizada pelo partido Cidadania a ADI 6987, que busca atingir justamente a equiparação entre os crimes de racismo e injúria racial, incluindo o argumento da imprescritibilidade para ambos. Para o partido, é necessária a correlação entre eles, visto que, diferencia-los torna ineficaz o repúdio constitucional ao racismo. Assim, não igualar abre grande margem interpretativa do que é racismo, legando ao racista o argumento de que seu crime foi somente injúria racial, acarretando em penas menos adequadas ao infrator. Propagando, dessa maneira, uma realidade cada vez mais injusta a uma minoria ainda brutalmente afetada não somente pela discriminação cotidiana, mas também pelo racismo estrutural.
    Á vista do primeiro pensador debatido, a ação do partido e a contínua luta dos movimentos negros caracteriza um avanço, um maior ampliamento do que Pierre Bordieu designa como espaço dos possíveis. O pensador define espaço dos possíveis como tudo aquilo que é realizável em um meio, considerando o contexto e o campo jurídico em que os debates estão inseridos. Dessa forma, o espaço dos possíveis foi mais uma vez aumentado, expandido, e por meio do protagonismo judicial um grande e constante combate contra o racismo teve saldo positivo.
    Esse protagonismo foi muito enfatizado pelo segundo pensador, Antoine Garapon, que de forma racional constatou um maior fortalecimento do poder judiciário, pensando o texto constitucional de forma mais ampla. Esse papel, antes exercido pelo Legislativo por meio de leis ordinárias, caiu em certo desuso devida sua lentidão em alcançar resultados efetivos e atender demandas sociais, recaindo sobre o judiciário o papel de concretização de direitos coletivos. De nenhum jeito, e como muitos infelizmente desacreditam, esta e outras decisões judiciais não representam um possível risco para a legitimidade democrática. O que vemos é exatamente o contrário, o judiciário continua fazendo o que a própria Constituição Federal o definiu para fazer, é realmente uma consequência da nossa ordem, não uma prática puramente política. Como argumenta Garapon, cabe ao judiciário atribuir sentido aos termos pouco explícitos da ordem, uma vez que, incutir ao judiciário apenas a tarefa de decisão o torna meramente mecânico.
    Nesse caso, a mobilização do direito, conceito explanado por Michael McCann, foi fruto de longas e intensas lutas de um grupo excluído e oprimido durante séculos, que segue em busca da realização de seus interesses e valores. Essa ADI não foi gerada simplesmente por ideias deliberadas do partido, nem somente pelas lutas sociais dos grupos, foi sem dúvida um exemplo concreto da mobilização do direito, onde os tribunais representaram apenas um dos agentes significativos na batalha pelo progresso democrático.
    Ações de inconstitucionalidade como essa, buscam mitigar a linha abissal que ainda permanece na nossa atual sociedade. O racismo, a compreensão de que, como expõe Sara Araújo “o outro não é só selvagem, é atrasado, primitivo, arcaico”, e por isso não deve respeito, propagam e reforçam essa separação entre raças ainda presente no nosso país com a falsa retórica de que a mera igualdade formal contida no art.5 da Constituição Federal basta. O branco, nessa narrativa racista, como aponta Mbembe, é e sempre foi para quem o direito serve. Dessa forma, muitas vezes preservam e garantem apenas direitos que estão presentes na realidade branca, como se fosse a realidade vivida por todos os cidadãos. Conclui-se, dessa maneira, como importante e adequado atender à solicitação do partido, buscando, dessa forma, penalizar de forma mais justa os crimes de racismo e mitigar a diferença estrutural causada pelos acontecimentos escravistas.


Vinicius Alves do Nascimento

Direito Matutino

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