O racismo é um problema milenar que afeta negativamente toda a sociedade, e se tratando de um problema tão antigo, podemos dizer que suas bases estão presentes no cerne das estruturas que permeiam a sociedade, fazendo com que o racismo seja perpetuado de geração em geração. Visando esta questão, o partido político Cidadania entrou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI - 6987) para que a injúria racial fosse reconhecida como crime de racismo, tornando-o imprescritível e inafiançável, vez que, o não reconhecimento da injúria racial como crime de racismo leva, sobretudo a diversas impunidades e a permanência de condutas racistas.
Podemos relacionar os acontecimentos sob perspectiva das ideias do sociólogo francês Pierre Bourdieu sobre os espaços dos possíveis, começando pelo próprio conceito de Campo - formado por diversos agentes que se relacionam mediante diferentes hierarquias de poder, essas relações estão em constantes lutas entre agentes por multiplicação de seus capitais relevantes para o campo específico, relativamente autônomo, dotado de uma história própria; onde os indivíduos desenvolvem as identidades. No caso da ADI 6987 nota-se conflito nos espaços sociais que no que lhe concerne foram construídos sob habitus totalmente racistas, onde ofensas como “preta de merda” e “preta suja” não são consideradas racismo, e sim, como injúria. É evidente que a ação do Cidadania busca a racionalização do direito, acatando a uma demanda social de tamanha importância como a luta contra o racismo, e utilizando da ADI pretende transformar o problema que pessoas pretas sofrem diariamente, como as ofensas que muitas vezes são disfarçadas de piadas e nunca são “intencionais” em direito de proteção, criminalizando tais condutas como crime de racismo e não apenas como injúria racial. Neste caso, a necessidade de ações diretas de inconstitucionalidade, por si só, já demonstra que estamos muito longe de chegar à universalização do direito, porém, ações como essa constituem um passo importantíssimo na luta contra o racismo e consequentemente da universalização de fato. Vale atentar para o conteúdo histórico da norma, ou seja, considerar que a elaboração da ADI não somente seguiu o sentido literal da norma, mas também ponderou a influência que o racismo tem nos diversos campos sociais, econômicos e políticos da sociedade.
O partido Cidadania tinha o objetivo de criminalizar condutas de injúria de cunho racista, utilizando para tal o dispositivo de ação direta de inconstitucionalidade (ADI - 6987) forçando o judiciário a tomar decisões que podem interferir no espaço de atuação de outros poderes para a concretização de direitos e demandas da população que não foi escutada, seguindo assim o sentido das “magistratura do direito” de Antoine Garapon, o direito tutelado foi o da proteção da honra das pessoas pretas que sofrem diariamente e por conta da lei de racismo não criminalizar condutas como a injúria racial, a via utilizada para a efetivação deste direito foi a judicial. Cabe também ressaltar a importância da criminalização de injúrias raciais como crime de racismo, pelo desincentivo de práticas nocivas aos cidadãos que compõe nossa sociedade, e uma democracia não é de fato uma democracia quando pessoas pretas sofrem apenas por existir enquanto outros atentam contra sua honra e dignidade diariamente e não são punidos por isso.
Da mesma forma, McCann introduz a ideia de mobilização do direito ao relacioná-lo holisticamente a grupos sociais reivindicatórios, estendendo esses direitos conquistados a partir do momento em que suas demandas são ouvidas. Abrindo espaço para que novos requisitos sejam discutidos. Assim, a efetivação da criminalização da injúria racial permite novos debates acerca do combate ao racismo. Os resultados podem ser enxergados de diversos pontos de vista, das pessoas diretamente atingidas se tornaram um pouco mais seguras, pois acabam de garantir a proteção da lei contra pessoas que atentarem contra sua honra e sua dignidade, às pessoas que cometem estes crimes agora terão de pensar um pouco mais antes de cometê-los pois sua conduta pode acarretar um processo criminal, enquanto no ponto de vista social podemos enxergar melhora no panorama racista do país, que até então normalizava piadas e ofensas como "macaco" e "preta fedida", e agora os criminaliza.
Vemos a monocultura da naturalização da diferença como uma das principais causas dos problemas abordados. Isso, segundo Sara Araujo, segue a lógica da classificação social, hierarquia, desigualdade e injustiça, um país onde o cerne de suas estruturas tiveram apenas uma cultura aceita, e essa foi a branca, marginalizando todas as outras diferentes como a cultura preta e indígena, estes fatores corroboram para as desigualdades e injustiças hoje presentes. Para suprir estes desfavores acometidos por gerações racistas e tentar chegar a uma igualdade de fato, faz-se necessário ações como a ADI - 6987 para assegurar proteção aos atingidos e balancear os efeitos negativos causados por condutas frutos da monocultura.
Por fim, o filósofo Achille Mbembe faz críticas aos dispositivos de segurança que são muito válidos no contexto da ADI, constituindo-se como uma rede de relações constituída por elementos heterogêneos cuja formação atende à função de responder a uma urgência: a passagem da norma ao risco. Assim, os dispositivos de segurança passam a exercer a governamentalidade não apenas das delinquências, mas também de vidas que são reguladas por tais dispositivos. As pessoas pretas sofrem com este sistema a centenas de anos, considerando tudo que foi dito até então, sempre quando se trata de uma pessoa preta ofendida os dispositivos de segurança trabalham para lhe descredibilizar e age sempre visando a proteção do lado "branco", na grande maioria das situações o preto tem sua conduta criminalizada, fazendo com que ações diretas de inconstitucionalidade como a ADI - 6987 se mostrem de deveras importância para o combate ao racismo, pois são poucas as medidas que garantem algum conforto e proteção à população preta e ter a criação de dispositivos como este que visem criminalizar confrontos como a injúria racial tornem-se pilares para a desconstrução da imagem marginalizada que a pessoa preta carrega graças ao racismo estrutural.
Este é um espaço para as discussões da disciplina de Sociologia Geral e Jurídica do curso de Direito da UNESP/Franca. É um espaço dedicado à iniciação à "ciência da sociedade". Os textos e visões de mundo aqui presentes não representam a opinião do professor da disciplina e coordenador do blog. Refletem, com efeito, a diversidade de opiniões que devem caracterizar o "fazer científico" e a Universidade. (Coordenação: Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa)
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