segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

A injúria racial à luz do conceito de racismo estrutural

    Achille Mbembe vê o racismo através de lente profunda, complexa e histórica. Fala sobre as influências do Capitalismo, da Ciência na construção do conceito de raça, e a também discriminação, descarte e violência com base na diferença, o racismo. O autor descreve três momentos: a espoliação construída na escravização, em que africanos foram convertidos em mercadoria, objeto; no final do século XVIII, em que a população negra passou a articular uma linguagem para si e reivindicou, produziu muitas revoltas e obteve conquistas, da independência do Haiti em 1804 ao fim do apartheid da África do Sul no século XX; a globalização, com a hegemonia do neoliberalismo. Contudo, Mbembe acredita haver espaço para o pensamento crítico e para a epistemologia decolonial, de novas reivindicações, a que chama de devir-negro do mundo, um novo caminho do conhecimento e da percepção. Uma teoria importante de Mbembe consiste da necropolítica, adaptação da biopolítica de Foucault. Nesta, aspectos biológicos são utilizados para dividir a sociedade, de maneira que o Poder Público consiga conceder distintos tratamentos e serviços para cada segmento, é uma face do poder para o Foucault. No conceito de Mbembe, o tratamento diferenciado dado a alguns é o tratamento da morte, a política da morte. O autor também ressalta que, ao passo que a discriminação racial antes tinha como base ideológica ideias equivocadas da biologia, atualmente, a base é mais de caráter cultural e religioso.

O caso do Judiciário a ser relacionado com as noções de Achille Mbembe é o HC 154.248. A decisão define a injúria racial como tipo penal do racismo e que, portanto, é imprescritível, pode ser reclamada a qualquer prazo. Isso porque o inciso XLII do Art. 5º da Constituição Federal assume que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível”. O Supremo Tribunal Federal entende o racismo como estrutural, ou seja, algo presente em diferentes esferas da vida, presente nas instituições, que é reproduzido na economia, no imaginário social, na política, e que, dessa forma, afeta a cidadania e a dignidade da população negra. Nessa perspectiva, a injúria racial, enquanto ofensa que faz uso da raça para ofender, deve ser admitida como modo de reforçar a estrutura racista, que fortalece a ideologia de subalternização das pessoas pretas e de normalização da violência e da estigmatização sofridas. Assim, jamais a injúria racial ataca só um indivíduo, entretanto, ataca todos que pertencem ao grupo verbalmente agredido. Isso está em convergência com as noções da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Só por haver distinção entre a Lei 7.716/1989 e o Art. 140, § 3º do Código Penal, não quer dizer que a injúria racial não seja espécie do gênero racismo, uma vez que o rol não é exaustivo.

Como o Mbembe compreende o racismo em uma série de dimensões, orientado pelo Capitalismo, e construído no decorrer histórico, sem ser nada eventual, isolado, e utilizado para o proveito de certa elite branca, em privilégios, a visão do STF encontra abrigo na teoria do sociólogo. Pois, então, a injúria racial é evidentemente parte do racismo, a qual fortalece a ideologia racista, os preconceitos e o ódio. A admissão da injúria racial como espécie do gênero racismo é forma de promover mais cidadania, democracia, e corrobora com o devir-negro do mundo de Mbembe. É uma subversão do formalismo eurocêntrico, que vê o homem branco como parâmetro universal e ignora as diferenças e as condições materiais dos indivíduos e dos grupos. Além disso, para utilizar da fórmula de Antoine Garapon, a maior autoridade do Judiciário foi necessária neste caso, a fim de solucionar um pendente conflito, de vulnerabilização de sujeitos, só remediado com a atuação da Justiça, que se impôs sobre a autonomia frágil dos cidadãos e agiu de maneira tutelar. Com a fórmula de Bourdieu, tratou-se de disputa de leituras no espaço dos possíveis, em que as forças progressistas e os indivíduos afrodescendentes saíram vitoriosos, não estando o Direito de jeito algum isolado das lutas e problemas da sociedade. Então, a partir de Michael McCann, as ações judiciais, com aspectos políticos, são “ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses e valores”. Nesse sentido, grupos afetados ou interessados articulam-se com o Direito, travam discussões em Cortes, fazem uso de mecanismos institucionais para assegurar a efetivação de direitos, obter certo bem. Tomando como referência a teoria de Sara Araújo, através do formalismo jurídico, adota-se postura eurocêntrica e tradicionalista no Direito, que permite perpetuar sistemas de opressão e de exclusão de determinado grupo. Contudo, ao avaliar a situação do ponto de vista dos excluídos, ao considerar distintas teorias do Direito senão a liberal, ao observar a realidade fática, o “Direito achado na rua”, torna-se evidente o peso e a importância de incluir a injúria racial dentre os tipos penais do racismo.

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