segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

A ADI 6987, originada de uma petição do partido Cidadania, trata da possibilidade de equiparação da chamada injúria racial ao crime de racismo. Assim, o embate se dá na compreensão de quem é o ofendido por atos de injúria que se baseiam na raça ou cor, isto é, se apenas o indivíduo é lesado pelo preconceito ou se toda a coletividade é prejudicada. No que Bourdieu chamou de “espaço dos possíveis”, especialmente no campo legislativo, ambas as formas de ofensas raciais estariam cobertas pelas leis brasileiras, sendo, teoricamente, para o legislador, possível diferenciá-las. O problema, porém, se dá na prática, quando um magistrado comum tem de responder frente a um caso se o crime cometido pelo acusado é de injúria, crime prescritível e afiançável, ou racismo, crime que não prescreve nem admite fiança. Nesse caso, o direito não estava, nos termos de Bourdieu, racionalizado, posto que o espaço para a argumentação e decisão dos juízes era muito maior que o necessário, de modo a permitir decisões confusas e incoerentes. Sendo assim, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal pretende racionalizar e universalizar o direito frente às demandas por igualdade racial.

Quando se analisa o histórico da legislação brasileira sobre o tema, é possível observar que a primeira lei que diz respeito a ofensas direcionadas a alguém por sua raça e cor é ainda de 1951, porém, a contravenção penal dizia respeito apenas aos casos em que o acesso a serviços, bens e trabalho eram negados por motivações racistas, excluindo, por exemplo as ofensas verbais ou a violência derivada das mesmas causas. Além disso, a lei ainda previa o crime como afiançável e de penas de prisão curtíssimas, que variavam entre 15 dias e 1 ano, muito diferente da forma penal hoje estabelecida. Assim, é possível constatar primeiramente, que a primeira lei que tentava coibir o racismo no Brasil somente foi posta em vigor muitas décadas depois do fim da escravidão e, em segundo lugar, que a lei de 1951, apesar de sua importância, não seria capaz de impedir injúrias de origem racista atualmente, sendo de suma importância uma atualização dos conceitos de racismo e a consequente alteração das penas atribuídas àqueles que cometerem crimes desta natureza.

A ação do STF não pode ser considerada como um mero ativismo judicial, posto que o órgão foi instado a responder a um pedido formalizado pelo partido político. Além disso, apesar de à primeira vista parecer que os ministros estavam decidindo questões meramente penais, do ponto de vista de tutela de direitos apresentada por Garapon, o que se vê é a consolidação do direito à identidade racial, posto que se passou a compreender que uma injúria destinada a uma pessoa por pertencer a um grupo, é na verdade, uma ofensa a todos aqueles que partilham de uma mesma identidade. Outro ponto importante de ser destacado é o de que a decisão do STF não ameaça a democracia ou a separação dos poderes, até porque a partir dela, novos projetos de lei sobre o assunto foram protocolados nas casas legislativas, como é o caso do PL 4566/21, o qual tipifica a “injúria racial coletiva”, fortalecendo os debates sobre o tema.

Neste caso, quem mobilizou o direito foi um partido político, porém o faz em nome de toda uma coletividade para promover mudanças na vida social. No nível estratégico, a decisão judicial é capaz, como já se viu, de modificar os paradigmas legislativos de modo que as lutas posteriores possam se dar em campos diferentes do poder. Já no nível constitutivo, é possível vislumbrar a possibilidade de mudanças na cultura social e nos hábitos cotidianos, sendo a lei e o conhecimento da punição algo que, idealmente, inibe a prática desses delitos.

Assim, a equiparação, quando busca ouvir pessoas de diversos lugares e raças, é capaz de promover uma maior ecologia de saberes para que a monocultura do que se entende por justiça e saberes válidos possa ser quebrada. Por fim, a teoria de Mbembe é capaz de explicar, indiretamente, como a injúria racial é apenas uma das faces do racismo, isto é, que por mais que a ofensa pareça pessoal, na verdade, ela atinge toda uma coletividade. Isso porque, como explica o teórico, a efabulação e o alterocídio tentam criar uma figura que se pretende “universal” e única de um conjunto de pessoas, transformando toda a pluralidade e individualidade das pessoas pretas em uma construção única de o que é “o negro”, que é colocado como um diferente, um inimigo, ou alguém que deve ser eliminado. Dessa forma, a própria lógica preconceituosa justifica que o racismo e a injúria sejam equiparados.

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