segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

 A ADI 6987, o HC 154.248 e a valorização do olhar do Outro

O racismo é constitucionalmente citado enquanto “crime inafiançável e imprescritível”, conforme descrito pelo artigo 5º, inciso XLII da Constituição Federal. Nesse contexto, para atender à demanda constitucional e regular tal conduta, surgiu a Lei 7.716/89, a chamada “Lei Antirracismo”. Contudo, como trazido por Paulo Iotti¹, representando o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS) enquanto um dos amici curiae em processo posterior levado ao STF sobre a temática, mesmo com a descrição em lei específica, “ a jurisprudência se recusava a aplicar o crime de praticar o preconceito por raça, do art. 20 da Lei 7.716/89, para punir a ofensa ao indivíduo em sua honra por elemento racial”, comumente entendo o crime como mera “injúria simples”. Assim, uma suposta “diferença ontológica” entre uma ofensa à coletividade e uma ofensa subjetiva, ainda que motivadas pelos mesmos elementos discriminatórios, nas palavras do próprio Iotti, “[...] não foi criada pela lei. Foi inventada pela jurisprudência, de forma manifestamente ilegal, antes da existência do tipo penal de ‘injúria racial’”. Visando suprir essa lacuna de efetividade, surgiu a Lei 9.459/97, que criou justamente o chamado crime de “injúria racial” no Código Penal. Em uma análise contextualizada, percebe-se que essa tipificação não foi criada de forma a perpetuar uma banalização dessa conduta a partir do seu não entendimento enquanto racismo, mas sim o contrário, já que como trazido pela doutrina de Guilherme Nucci, utilizada pelo STF, e pelo próprio entendimento do tribunal, como observado na decisão de Agravo Regimental em Recurso Especial em 2020 mantida pelo STF “Nos termos da orientação jurisprudencial desta Corte, com o advento da Lei n. 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão”.

É nesse cenário em que se expressa o conflito do caso. Houve uma série de decisões, como no Habeas Corpus 154.248, em que, em um caso particular, a partir de um entendimento pelo STF de injúria racial como uma manifestação racista, negou-se a prescritibilidade da condenação; contudo, não se havia uma pacificação de repercussão geral e que impedisse entendimentos contrários da injúria enquanto uma conduta descolada do racismo. Nesse contexto, o partido Cidadania impetrou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, apreendendo a necessidade de um entendimento do tema também no controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, pleiteando por um enquadramento da injúria racial no artigo 20 da Lei nº 7.716/89, ou, subsidiariamente, por um entendimento à luz da Constituição que necessariamente entendesse esse tipo penal como uma manifestação de racismo.

Em todo esse processo, fica claro o chamado “espaço dos possíveis”, cunhado por Bourdieu, em que se percebe como as possibilidades jurídicas vão sendo delimitadas a partir da legislação vigente, dos entendimentos doutrinários e da jurisprudência. O “poder de dizer o direito”, nesse caso, está muito ligado à disputa pela definição de “injúria” e “racismo”: conflitam concepções formalistas, referenciadas por teóricos do direito penal, que afirmam por uma “diferença ontológica” de “bens jurídicos distintos”, como trazido pelo voto do ministro Nunes Marques no HC 154.248; assim como em sentido contrário, em um entendimento material e a partir de uma interpretação teleológica dos dispositivos em questão, preza-se por ressaltar o absurdo contraditório no entendimento de que “uma ofensa pessoal por motivação racista não seria racismo”, analisando-se o racismo em sua dimensão social, abarcando elementos de identidade e pertencimento coletivo.

Com essa historicização da norma a partir da busca de efetivação dos princípios constitucionais, percebe-se uma tendência de complexificação das demandas sociais e consequente ampliação do poder dos tribunais, como observado por Garapon. A ADI surgir de forma vinculada ao HC 154.248 indica justamente essa tendência dos tribunais de proteção e de tutela de direitos fundamentais dos indivíduos, o que Garapon chamou de “magistratura do sujeito”. A busca pela efetivação do direito à não discriminação é pleiteada principalmente por organizações do movimento negro e LGBTQI+, como observado pelos amicus curiae da HC 154.248, sendo exemplo o Movimento Negro Unificado (MNU), o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (IDAFRO) e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).

Nesse sentido, percebe-se como os tribunais canalizam essas demandas sociais latentes, mas não as criam; são um dos muitos agentes na mobilização do direito, que acontece em diversos âmbitos e em diversas formas, em uma interação complexa de atores e instituições, assim como observado por McCann. Com essa constatação, não se reduz a importância da figura dos tribunais, que permitem mudanças em nível estratégico (como se delimitassem o “estado dos possíveis”, estabelecendo as possibilidades jurídicas) e em nível constitutivo (já que as decisões reverberam em aspectos sociais, influenciando em condutas, como se observa com a própria decisão da HC 154.248); apenas se retira um entendimento de centralidade destes em processos marcadamente sociais e com diversas organizações envolvidas na afirmação e reconhecimento de direitos.

 No caso, quando se busca justificar a injúria racial como uma mera ofensa à honra individual, desconsiderando o evidente vínculo identitário e coletivo motivador da situação, nota-se um dos aspectos da chamada “monocultura dos saberes”, no qual se pretende afirmar o direito enquanto pretensamente universal, contudo, sempre partindo de uma premissa implícita de que o “homem universal” é o branco, que homogeniza sua perspectiva; uma epistemologia do norte que se infiltra nos discursos institucionais disfarçada de uma excessiva preocupação formal. Assim, como trabalhado por Sara Araújo, deve-se buscar traduzir uma epistemologia do sul, que permite que, em uma ecologia de saberes e justiças, vozes historicamente subalternizadas possam ser ouvidas e, como no próprio pedido protocolado na ADI, haja uma “epistemologia emancipatória decolonial e antidiscriminatória”, com foco na defesa de direitos fundamentais.

 Quanto à tentativa de desqualificar a situação discriminatória passada enquadrando-a de forma descolada do racismo, observam-se passagens relevantes da obra de Achille Mbembe:  “Um rosto humano autêntico traz-se à vista. O trabalho do racismo consiste em relegá-lo para o segundo plano ou cobri-lo com um véu. No lugar deste rosto, faz-se renascer das profundezas da imaginação um rosto de fantasia, um simulacro de rosto, até uma silhueta que, assim, substitui um corpo e um rosto de homem. Aliás, o racismo consiste, antes de tudo, em converter em algo diferente, uma realidade diferente” (p. 66). Nesse trecho, percebe-se como uma ofensa pessoal pautada na raça carrega um universo simbólico de violências muito mais profundas, como discutido pelo professor Adilson Moreira, de que a identidade individual também tem uma dimensão coletiva. Quanto a essa influência da raça na percepção individual e coletiva, também pontua Mbembe: “A raça está por detrás da aparência e sob aquilo de que nos apercebemos. É também constituída pelo próprio acto de atribuição- esse meio pelo qual certas formas de infra vida são produzidas e institucionalizadas, a indiferença e o abandono, justificados, a parte humana do Outro, violada, velada ou ocultada, e certas formas de enclausuramento, ou mesmo de condenação à morte, tornadas aceitáveis (p.66).  Assim, percebe-se nesse discurso de relativização de violências com a dissociação da injúria uma deslegitimação do Outro, do qual a desfeita não configura delito tão grave já que este não é, não existe, não é considerado semelhante; há o alterocídio. Da mesma forma, aplica-se o processo de efabulação: há uma perda da subjetividade até mesmo em aspectos epistemológicos, como observado, a partir de um “sistema de narrativas e de discursos pretensamente conhecedores” (p. 57). Portanto, entendendo a razão negra como um “[...] conjunto de vozes, enunciados e discursos, saberes, comentários e disparates, cujo objeto é a coisa ou as pessoas de origem africana e aquilo que afirmamos ser seu nome e a sua verdade (os seus atributos e qualidades, o seu destino e significações enquanto segmento empírico do mundo)” (p.57), observam-se duas perspectivas possíveis. A primeira, referente à “consciência ocidental do negro”, que normaliza sua “desqualificação moral e instrumentalização prática” (p.58), como observado na busca de brechas na dissociação da injúria racial do racismo, e a segunda enquanto panorama a ser alcançado, a partir da “epistemologia emancipatória decolonial e antidiscriminatória” trazida pela proposta da ADI, na qual “[...] o Negro diz de si mesmo que é aquilo que não foi apreendido”; há uma valorização de suas vivências, sua história, memória e identidade. Somente assim pode-se criar uma realidade emancipatória e mais igualitária, buscando valorizar o olhar do Outro e construir uma verdadeira epistemologia do Sul, a partir de uma ecologia de direitos e justiças.


1. IOTTI, Paulo. STF acerta ao reconhecer a injúria racial como crime de racismo. Migalhas, 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/11/B601E750F2054F_PRV-STFeinjuriaracialcomoracis.pdf>. Acesso em: 05\12\2022.


Isabella Neves- 1º ano de direito matutino

Nenhum comentário:

Postar um comentário